"Caro Doutor Felgueiras"


A esperança e curiosidade em saber o que pensava o SMMP da tão badalada autonomia, pela pena do seu presidente, arrastou-me há dias para a leitura muito atenta de um texto que publicou no Diário de Notícias.

A epígrafe prometia, o autor, a priori, certificaria a qualidade da dissertação.

Pois, olhe, fiquei, ao menos frustrado e profundamente desapontado.

O presidente do SMMP não tinha a apresentar ao público, que eu também sou, uma ideia sobre a dita autonomia, antes dispensava o tempo a nutrir num diário uma querela inútil com alguém cujos princípios são, em demasia, conhecidos. E vazios1.

Você sabe que, para mim, o foro laboral não faz parte daquele núcleo fundamental das competências do Ministério Público (MP) e que, por isso mesmo, não visiono qualquer entrave a que tal matéria seja discutida com o poder político e com os advogados. Já disse isso publicamente e não vou repetir as razões dessa minha posição2.

Mas a autonomia do MP, isso sim, é um princípio nodal, diria mesmo que, nos tempos actuais, natural, para que exista uma verdadeira e independente exercitação da acção penal que é do Estado, mas não é do Governo.E devo dizer-lhe, com mágoa, que me atrevo a pensar que muita gente, mesmo no MP, altifalando sistematicamente a autonomia do MP, não faz uma adminícula ideia do que isso seja.

E o Sindicato a que preside, se me lembro bem, no seu programa eleitoral tinha lá escarrapachada a defesa intransigente dessa autonomia.

Mas se os conceitos e as práticas se não acomodam, como exercitar, como disse, a autonomia? Para muita gente, "autonomia" é exercer a acção penal de qualquer modo, esquecendo os direitos, as liberdades, as garantias e vestindo a pele de acusador implacável que só vê condenações, como realização da política criminal dos órgãos de soberania.

Para muita gente, meu caro, o êxito da acção penal mede-se por baixo: o número de condenações.

Você sabe disto e não vamos ser fariseus. As vozes que nos criticam têm, muitas vezes, razão de sobra.

Se não é assim, visite umDIAP, ou uma Procuradoria da República e veja como, no concreto, se exerce a acção penal, ponto em que, nos dias que correm, mais premente se torna a independência do MP face ao executivo.

Não tenha a autonomia como um dado absorvido pelo MP. Se tiver, penso eu, é capaz de se enganar. A autonomia do MP, ao contrário do que parece transparecer das ideais que publicitou, não é um privilégio ou prerrogativa do MP, nem uma conquista a manter com alianças sabe-se lá com quem, é uma das garantias dos cidadãos que saberão que, com um MP autónomo, não há acusações "por encomenda", arquivamentos por "atenção ª.", mas saberão que o exercício daacção penal é levado a efeito por uma magistratura que, como tal, e por natureza, não recebe, no direito penal, ordens de ninguém, nem via telefone, nem via ofício confidencial, nem mesmo via decreto-lei ou circular ministerial.

Entendida com alguma abrangência, a autonomia do MP, no processo penal, fica paredes meias com a independência dos juízes. Um magistrado doMP que se preze, com consciência política, não mero despachador de processos para os relatórios, desempenha as suas funções com inteira independência, salvas as restrições, de fonte constitucional, estatutária e processual, onde releva a hierarquia exercida de modo legítimo e legal.

Assim dita, a autonomia do MP é mais um direito dos cidadãos do que um "poder" do MP, coisa que, não poucas vezes, se esquece e se lateraliza. Desse modo, o SMMP ao lutar, e bem, pela autonomia em causa, está a pronunciar-se, com toda a legitimidade, pela defesa dos cidadãos que esperam do MP uma acção livre, independente, mas responsável. Não um exercício abusivo de poderes autónomos que, num estado democrático, não tem cabimento algum.

Suponho que, meu caro, salva a questão da questão laboral, estaremos de acordo.

Se tiver atenção, e sei que tem, à Constituição e ao Estatuto do Ministério Público e ligar isso tudo com o processo penal, vai ver que a autonomia do Ministério Público só tem fundamento teórico-constitucional porque o legislador imaginou uma magistratura isenta, independente e imparcial, sobremodo no processo penal, onde se jogam, com maior acuidade, as garantias, as liberdades dos cidadãos e, óbvio, o dever do Estado na repressão e prevenção da criminalidade.

Mas não por um qualquer meio maquiavélico de conseguir decisões jurisdiconais que condenem, antes na óptica de conseguir a realização da justiça penal, com um MP que é órgão de justiça, colaborador do tribunal e que tanto acusa, como defende. Em consciência e segundo a Constituição e a Lei.

Por isso é que, há muito, Calamandrei escreveu que...

...Advogado sem paixão, juiz sem imparcialidade, tal é o absurdo psicológico no qual o Ministério Público, se não adquirir o sentido do equilíbrio, se arrisca, momento a momento, a perder, por amor da sinceridade, a generosa combatividade do defensor ou, por amor da polémica, a objectividade sem paixão do magistrado...

Por isso,acrescentava que

...Entre todos os cargos judiciários, o mais difícil...é o Ministério Público...3


Não é isto que, na sequência da autonomia do MP cifrada na Constituição se explicitou no artigo 53, CPP? Cá vão as minhas saudações, não sindicais, mas de colega solidário.

Alberto Pinto Nogueira

1 Entrou no vício que acusa ao título do jornal. Também Você deu um título que está separado de facto do texto.
2 post "Bem vistas as coisas", de 6/11/04, neste site.
3 "Eles, Os Juízes, Vistos Por Nós, Os Advogados"

Publicado por josé 10:00:00  

1 Comment:

  1. Anónimo said...
    O COMENTADOR podia escrever aqui um tratado sobre o MP.

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