Vocês há-dem ver!


Vasco Pulido Valente, adianta hoje na sua crónica no Público, razões para os portugueses votantes num concurso televisivo, terem escolhido Salazar e Cunhal como os maiores portugueses de sempre.
E conclui, em glorioso corolário, que os portugueses rejeitam liminarmente a democracia.

VPV é sociólogo e ensinará algo de sociologia, numa escola superior da dita disciplina.
A sociologia, não é uma ciência exacta e nunca o será, pelo que o exercício analítico de VPV, hoje no Público, admite refutação com base em meras opiniões. São estas, aliás, as que aprecio em VPV, desde sempre. O meu respeito pelo escriba opinativo , advém da sua educação cultural, da sua inteligência analítica e do saber acumulado na leitura livresca.
Para mim, basta como cartão de visita das suas crónicas, que conto entre as melhores de sempre, na escrita de jornal local.
Mas não sendo guru, meste ou professor de opinião, a falibilidade do que pensa, assemelha-se à dos demais mortais que escevem ou comunicam, em jornal ou sítios virtuais.
A prova da sua análise falhada de hoje, reside na foto que encima este escrito. É do dia 25 de Abril de 1974 e resume a essência do que o povo português quer , desde sempre: liberdade! A sério! “Quando houver, a paz, o pão, habitação, saúde, educação”!
Cunhal, em dois ou três anos , que se estenderam por mais uns dez, bem contados e votados, logrou enganá-los.
Como dizia o outro estrangeiro, não se engana toda a gente o tempo todo. O PCP tem hoje um peso eleitoral de significado simbólico, com um núcleo duro de fiéis indefectíveis.
Porém, com estes votos anónimos num concurso trivial de tv, o que os portugueses rejeitaram, ao contrário do que afirma VPV, não foi a democracia. Esta deveria significar mais liberdade e isso, toda a gente o pretende. Agora, como há 32 anos.

Então o que rejeitam os portugueses ao escolherem, paradoxalmente, o obreiro principal do jugo ditatorial que nos oprimiu a liberdade durante mais de 40 anos? E ainda aquele que nos preparava um destino bem pior?
Rejeitam a ilusão de democracia, voilà! Rejeitam o nepotismo dos amigos e correligionários e a corrupção geral que todos sentem instalada no próprio seio do aparelho do Estado e sentem impotência para a desinstalar. Rejeitam o arrivismo e oportunismo dos resistentes ao salazarismo e caetanismo e que lhe retomaram os tiques mais perversos para manutenção do poder.
Rejeitam a cleptocracia de uma classe política que se privilegia em nome da putativa imagem e importância do Estado, passeando e circulando da Assembleia para o partido e deste para as empresas do Estado dominado pelo partido do poder que desnomeia para nomear quem lhe agrada e faz os fretes. Rejeitam deputados que duram há mais de trinta anos em comissões de poder e cujas habilitações passam quase sempre pela luta política na oposição, de entrega de panfletos e reuniões conspirativas que os atiraram durante uns meses para uma prisão política. São esses os príncipes deste regime a que os portugueses não reconhecem pedigree.
Rejeitam por isso este sistema de poder que instalou uns poucos milhares e desinstalou milhões de um progresso que se poderia viver, como outros vivem, por essa Europa fora.
Os portugueses sentem que este sistema político não os serve e é, pelo contrário, o mesmo sistema quem se serve deles, de há trinta anos a esta parte.

Escolheram então Salazar, porquê, exactamente? Por nostalgia? Não, não parece nada. Parece, antes, que escolheram uma ideia difusa de valores sólidos que ultrapassam a própria liberdade. Como não sentiram, na sua maior parte, a ausência de liberdade real, imposta pela censura que era branda e cercada pela ausência de alternância partidária numa Assembleia que se queria nacional, mas restrita a classes, votam agora no nome que lhes parece merecer aprovação pelos valores que apregoava. Salazar deixou uma obra que é visível e outra invisível. O sistema salazarista deixou um sistema de educação que permitiu o aparecimento de um Vasco Pulido Valente e muitos outros que aliás, o vilipendiam por ter cerceado liberdades de associação , expressão e reunião, mas isso para quem agora vota em liberdade pouca importância tem. Ficou ainda a obra real, visível, em edifícios, na coerência dos serviços prestados por uma Administração Pública pobre mas algo agradecida e principalmente ancorada num sistema de valores que pura e simplesmente desapareceu. As pessoas notam esse desaparecimento, porque sentem a falta disso, mesmo que nunca o tenham experimentado: a seriedade, a formação profissional, o respeito pela autoridade de quem tem poder. Rejeitam por isso a bandalheira que se instituiu a seguir e que perdura no Estado mastodôntico que a democracia consistentemente construiu. Ficou ainda uma coisa bem tangível e que tende a desaparecer: ouro. Os cofres cheios de ouro e que agora servem para nos salvar o couro e a pele, ou seja, os dedos. Os anéis, já foram.
Quem votou em Cunhal, disciplinadamente, escolheu o mito que nunca se cumpriu. Escolheu a promessa feita dos amanhãs a cantar. Se fosse na Hungria ou na Polónia, ou mesmo na Rússia, pátrias do socialismo real, Cunhal nem figuraria na lista. Assim…

A menção ao distinto cultor da lígua pátria que se pronunciou publicamente pelo famoso “vocês há-dem ver!” tem a ver única e simplesmente com o valor simbólico daquilo que os portugueses também me parecem rejeitar: não o homem concreto e contentinho com as suas empresas prósperas. Apenas e tão-só, a pessoa que saindo da Carris, passou pelo sindicalismo e alcandorou-se, em púlpitos e palanques, num discurso infalível e por um mérito muito próprio, a “patrão” do PS. ( alguém dixit).
Se alguém simboliza bem o estado actual do nosso Portugal- são esses heróis! O problema é que parece que o povo real, agora, não os compreende...

Publicado por josé 14:47:00  

6 Comments:

  1. josé said...
    A extrema-direita,tal como o "fascismo", só existe enquanto enunciador taxionómico, para quem se associa à esquerda mais extremada e que é a comunista.

    Se os extremos se tocam, então só me parece de extrema-direita quem seja racista, adepto de partido único, defensor de censura geral, de ditadura de uma classe de esclarecidos sobre todos os outros.

    Aos comunistas, provavelmente, só lhes falta assumir abertamente o racismo porque todas as coutras características as têm.
    Ainda assim, quem esteve em Angola no tempo dos cubanos, sabe que talvez não seja assim tão simples, descartar essa hipótese e outras raças, para além da caucasiana, em países de leste, tal como por cá, não são propriamente a prata da casa...
    josé said...
    Neste país de pensamento unificado, quem se atrever a enunciar algo de positivo e que possa associar-se ao regime de Salazar/Caetano é simplesmente apodado de "fascista".

    O condicionamento da linguagem castrou a diversidade semântica sobre o discurso dos valores.

    A palavra "honra" tem configuração diferente consoante é usada num ou noutro lado. A palavra "honestidadee" não vem associada a nenhum valor. Deixou, aliás, de existir enquanto valor autónomo para efeitos políticos.


    E por aí fora.
    Maria said...
    José,

    Mais um post brilhante. VPV fala muito no ar; é cansativo encontrar tantos cronistas que julgam conhecer bem o povo mas não conhecem nada. Nunca vêem nada de bom e chegam a ser ofensivos. Afinal, como José conseguiu mostrar tão bem aqui, eles é que são ignorantes e incompetentes "opinadores". Para o povo que somos, mereciamos muito melhor.
    Kane said...
    A leitura que VPV faz dos resultados do tal concurso televisivo é, no mínimo, simplista. Como se fosse uma fatalidade, como se estivesse inscrito no código genético do povoléu, para VPV esta reacção “ popular” vem mostrar que esta república só funcionará, a mando “ do pau nas costas “! É esse o pulsar geral…
    O cerne desta reacção está sem dúvida nas questões que José aflora, e bem. O resto é conversa!
    Ljubljana said...
    Sabe José, não sei bem qual a minha orientação política, mas este seu texto remete-me novamente para uma perplexidade que cada vez mais me perturba. Nasci em 65 numa família de condição humilde. Levei em cima com o sistema de ensino caótico do pós Abril, vejo agora que a geração que tomou conta do poder em Abril, pela usurpação e pela má gestão da riqueza deste país, se remediou, juntamente com uma função pública bem engordada, que se vai (ou foi) reformando aos 50, atirando a minha geração, a dos seus filhos, portanto, para uma situação de incerteza relativamente ao futuro. Um ilustre deputado, bem remediado, por sinal, lhe chama pomposamente, "solidariedade intergeracional", uma bela e mui conveniente expressão, sem dúvida. Todos os anos em Abril, quando os "senhores da revolução" fazem questão de me relembrar a factura da minha dívida para com eles e para com a preciosa liberdade que supostamente me trouxeram me questiono, o que é que Abril me deu que eu não tivesse já? Os meus pais, (que eu saiba, não eram "bufos") nunca me disseram que a ditadura fosse o paraíso, mas também nunca me disseram que fosse o inferno. Quanto a VPV e ao seu profundo conhecimento da realidade portuguesa, ele ficou bem patente num debate há alguns anos atrás, com José Magalhães, se não estou em erro, eram ambos deputados. VPV não fazia então ideia de quanto era o valor do salário mínimo nacional. Hoje provavelmente também não saberá. Já agora, José, bem-haja por esta sua reflexão.
    António Balbino Caldeira said...
    Excelente descrição do clima da geração no poder. Daí que tenha tomado a liberdade de verter um extracto do seu texto no meu lagar Do Portugal Profundo.

    E sinto também a desventura geracional (nasci em 1964) do comentador anterior Augusto Martins.

    Não adianta rotularem-nos de que, se somos contra o sistema corrupto, somos fascistas ou estalisnistas. Queremos democracia real em vez da corrupção que temos.

    É preciso teimar além da esperança.

Post a Comment