the art of the dark side
quarta-feira, agosto 23, 2006
Por curiosidade, entreti-me por estes dias a ler os estatutos da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Colecção Berardo e a confrontá-los com a nota da Presidência da República que acompanhou a promulgação. A Fundação resulta de uma operação em que simultaneamente está em causa o interesse público e o interesse privado, não necessariamente incompatíveis entre si, em minha opinião. Se por um lado ganha o privado – o comendador deixa de utilizar de um cêntimo seu com a manutenção, preservação e promoção da sua colecção e praticamente garante um comprador que a adquirirá por atacado e ao mesmo tempo assegura que o seu espólio, parte dele pouco ou nunca exposto, seja valorizado, inclusive aquele que fica fora do âmbito da aquisição pelo Estado – ganha também o interesse público – ficam à disposição do Estado um conjunto importante de obras (únicas) de arte contemporânea que poderão contribuir significativamente para a atractividade de Lisboa e do País. Pessoalmente, valorizo também o investimento num produto cultural contemporâneo exportável tanto como matéria-prima, como produto acabado, que ajudará a vender a imagem de um País moderno que não a transmitida por via do folclore, do fado, de Fátima e do vinho barato. Por último poder-se-ia também dizer que se ganha a possibilidade de adquirir num ápice o que levaria anos a constituir se o fizesse peça a peça, com os custos inerentes, embora como adiante se demonstrará poderá não ser bem assim.
Pode este ser um processo considerado isento de críticas? A minha resposta é não! Têm razão de ser os reparos da presidência? Também não! Entendo que é perfeitamente aceitável que, mesmo que depois de adquirida a colecção pelo Estado através do exercício de um direito de opção consagrado no decreto-lei, o comendador mantenha o cargo de presidente honorário da fundação com a prerrogativa de propor a nomeação e a destituição do director do museu, pela simples razão porque tanto fundação como o museu continuarão, mesmo depois da aquisição, a ter incorporada na sua designação o nome “Berardo”, constituindo por essa razão um direito absoluto do próprio zelar para que hoje ou amanhã um governante inconsequente não o vá arrastar pela lama, escolhendo para o cargo alguém sem vocação ou perfil para o cargo.
Li também a declaração sobre o assunto da deputada Zita Seabra "meio milhão de euros dos nossos impostos, na situação difícil em que o País vive, sejam destinados a adquirir novas peças para uma colecção que daqui a dez anos pode sair do País" esta, para além de ser um argumento de uma enorme pobreza franciscana, é algo que, em primeiro lugar, não é verdadeiro – as obras a adquirir serão propriedade da fundação (o comendador contribuirá com igual importância para o mesmo fim) e, em segundo lugar, porque se trate de um valor quase que irrisório se, comparado por exemplo com os 15 milhões ou mais que o MC transfere anualmente para o Teatro Nacional S. Carlos e que são dispendidos sem praticamente qualquer contrapartida patrimonial – que poderia existir caso o teatro fosse gerido com essa finalidade, o que também não acontece nos outros teatros nacionais e na Casa da Música, lamentavelmente.
Ao dizer acima que o processo não está isento de críticas, pensava em três aspectos que considero não terem sido devidamente acautelados. O primeiro em relação ao financiamento anual pelo MC das despesas de funcionamento e actividades da fundação. Pese embora um projecto desta natureza não possa prescindir do apoio financeiro do Estado para pagamento de despesas correntes, pensa-se que a operação ganharia em transparência se o montante a transferir anualmente fosse previamente determinado por um estudo de viabilidade económica e financeira e que o seu valor constasse já dos próprios estatutos, à semelhança do que se verifica nos da Fundação Casa da Música. O segundo prende-se com o exercício do direito de opção de aquisição da Colecção Berardo que o Estado, por decreto-lei (artigo 11º) atribui a si próprio quando na realidade não tem direito nenhum, pois só compra se o comendador Joe Berardo estiver interessado em vender ou dar-lhe preferência, o que em nenhum dos casos está garantido. O Terceiro relaciona-se com a redacção deveras estranha do artigo 30º , este na alínea d) afirma que em caso de dissolução da fundação as obras adquiridas através do fundo de aquisições revertem a favor do Estado, dizendo logo a seguir – no nº 3 - que as mesmas obras podem ser adquiridas por José Manuel Rodrigues Berardo ou por quem ele venha a indicar, pelo respectivo preço de aquisição. Independentemente da aparente contradição entre si, considero que nenhuma das soluções é boa, por um lado porque é abusivo que um conjunto de obras possam reverter a favor do Estado sem se considerar sequer a indemnização dos restantes fundadores que contribuíram para a sua aquisição ou a sua devolução aos doadores ou legadores que actuaram em nome de uma missão. Também não se compreende a prerrogativa de o comendador adquirir ou indicar comprador para as obras ao preço da respectiva aquisição, quando é por demais certo que essas mesmas se irão valorizar exponencialmente a partir do momento que passem a ser parte da colecção do museu. Uma outra crítica que pode ser feita à construção do artigo é que o facto de o destino das obras em caso de dissolução da fundação ser qualquer um dos descritos tal será um desincentivo para que outros possíveis fundadores venham a subscrever uma participação ou mesmo a contribuir para o fundo de aquisições, o mesmo se aplicando aos eventuais doadores ou legadores do museu. Tudo isto não me parece que seja um bom princípio, sobretudo quando o que se visa com a parceria pública e privada é o interesse público e não somente o das partes envolvidas.
Publicado por contra-baixo 00:29:00
13 Comments:
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Gostei.
No entanto, o que me parece é que o Estado partiu muito fragilizado para as negociações pelos seguintes motivos:
1- Os sucessivos governos das últimas décadas desprezaram as políticas públicas de aquisição de obras de arte destinados aos museus nacionais (não apenas de obras contemporâneas).
2 - Um Estado que nem sequer cumpriu as suas obrigações mínimas de "investimento" patrimonial, tem pouca legitimidade para fazer exigências a privados.
3 - A novela anti-negocial de anteriores governos permitiu a Berardo exercer pressão com ultimatos.
Uma vez obtido um acordo, para quem critica a preponderância de Berardo, convém lembrar que foi ele quem construiu a colecção e foi ele quem quis dar-lhe visibilidade pública. Além disso uma colecção não é apenas um valor de mercado, que se compra ou se vende. Por detrás da aquisição das peças, além de muito trabalho e saber, há a responsabilidade cultural de quem colecciona, há perseverança e capacidade de decisão e há laços de afecto que não têm preço.
apenas para lhe dizer que concordo com quase tudo que disse, aliás as minhas reservas ao processo, e utilizando a linguagem parlamentar, manifestam-se em sede de especialidade e não de generalidade. o “quase” que falta aqui é a injustiça de não se reconhecer o pequeno grande contributo dado por fernando calhau no extinto iac para a colecção pública de arte contemporânea. claro que alguém que nunca se fez valer da posição de adquirente para vender um único quadro seu (ainda há dias até a sua viúva ofereceu cerca de 200 obras criadas por si à gulbenkian); que não membro activo ou passivo de nenhum lobby, e que sempre cultivou a descrição tende a cair no esquecimento, e tal não é justo.
parabéns pelo seu blogue que hoje conheci e cuja visita recomendo.
Então o meu amigo desfaz-se em elogios em relação ao blog do ultrapreriférico... e nem a mínima referência ao meu blog que tem um artigo que aborda, em maio de 2006, de forma volátil, acordo, o caso Pinault, "fundação" hoje instalada em Veneza no Palazio Grazzio, depois da embrulhada com os projectos previstos para a Ilha Segin, na região parisiense... Ignorância, meu amigo, pior, cegueira... e não há pior cego do que aquele que não quer ver... então leia estatutos, dias a fio, e não olhe nunca mais para uma reprodução do Lucien Freud.
"Além disso uma colecção não é apenas um valor de mercado, que se compra ou se vende. Por detrás da aquisição das peças, além de muito trabalho e saber, há a responsabilidade cultural de quem colecciona, há perseverança e capacidade de decisão e há laços de afecto que não têm preço".
Só é pena que o personagem (comendador berardo) que adquiriu a "famosa" colecção seja o mesmo que tem neste momento uma acção em tribunal promovida pelo IPPAR, por ter destruido património valioso da quinta da bacalhoa, para plantar vinha.
Ou será que neste caso o "amor" ao negócio ultrapassou o valor do "amor" ao património cultural?
Parabéns também pelo seu blog, que é, realmente, de aconselhar vivamente.
Também posso felicitar o ultraperiférico pelo seu blog... pas de problème !
Fique a saber, se não sabe ainda ou finge não saber, o "amor ao negócio" é, de longe, mais importante para essa "gente" que o amor à arte. O caso Pinault é exemplar, e, o Berardo, no fundo, é como dizem os franceses: "un pinardier" (um taberneiro). Tem o mérito, com todos os acessores que o rodeiam, de ter feito uma boa jogada...
De arte ele não percebe nada, ainda há 30 anos não fazia a distinção entre uma má reprodução da Mona Lisa e o quadro de mestre e, não é a destruir a Bacalhoa que ele provou que percebia alguma coisa... de património, ou de arte.
Se desse tanto dinheiro ir pastar porcos pretos para o Alentejo, como coleccionar "obras de arte" ele ia... com as passadeiras de veludo vermelho, há conta do contribuinte, claro, para não tropeçar nas bolotas...
Concordo em absoluto com o papel relevante de Fernando Calhau à frente do extinto IAC, rumando contra a maré da ignorância estética quase generalizada da nossa classe política. Infelizmente, a colecção que Calhau reuniu ficou-se pelas nossas fronteiras devido aos parcos meios de que dispunha.
Corremos, é certo, o risco da memória curta quando generalizamos. No entanto o meu comentário partiu de um pressuposto diverso:
Portugal não teve, ao longo de todo o século XX, uma política de aquisições compatível com a escala europeia, quer no domínio da arte contemporânea quer no da arte antiga. Desde sempre se ficou à espera de doações, à espera que os coleccionadores morressem deixando generosamente ao Estado os seus bens artísticos.
A justificação, antes como hoje, é sempre a mesma, porque somos um país pequeno e tal..., porque não temos capacidade financeira para competir nos leilões e tal..., porque ainda há aldeias sem saneamento básico e tal..., mas a verdade é que enriquecer o património museológico português, dotando as colecções do estado de obras que complementassem o património herdado ou confiscado, nunca foi uma prioridade. Do mesmo modo que ainda não é uma prioridade acabar com a ideia-feita de que o investimento cultural prejudica a economia.
Os atentados ao património histórico são sempre lamentáveis e o caso da Bacalhoa não é único. Os Loridos são outro exemplo.
De facto, Joe Berardo não prima pelo bom gosto nem pelos conhecimentos estéticos, como o próprio confirma. Mas prima pela intuição do essencial e pelo saber do negócio. E também por saber rodear-se de gente que sabe daquilo que ele não sabe, coisa que devia ser tomada como exemplo pelos nossos ignorantes estabelecidos na política.
No campo do património arquitectónico, porém, é que a porca torce o rabo, aqui os conselheiros do comendador estão ao nível da patobravice ao serviço do novoriquismo.
Contradições? Seguramente. Mas insisto nas qualidades de Berardo enquanto coleccionador. Se muitos outros empresários lhe tivessem seguido o exemplo, outro galo cantaria.
E aqui, não querendo ser injusto, devo referir o grande coleccionador-empresério Jorge de Brito, recentemente falecido, que as televisões e alguns jornais apenas referiram no dia da sua morte como "presidente do Benfica", ignorando por completo que ele foi, talvez outra contradição, uma figura marcante no panorama artístico português da segunda metade do século XX (e que além disso percebia apaixonadamente de arte).
Seria melhor inteirar-se dos valores gastos por Berardo na aquisição de obras de arte, sem qualquer participação dos concidadãos contribuintes.
Quanto ao grande chapéu dos "nossos impostos", só posso falar por mim, pelo que o Estado me cobra (e não é pouco): seria uma honra que os meus impostos não fossem para esbanjar em coisas menores ou em favorecimentos individuais, sem estratégia e sem futuro.