"Como à espera do comboio na paragem do autocarro*"

Música visual na rotunda da Boavista

Passado o entusiasmo inicial, a doutrina dividiu-se entre a reverência ao arquitecto e a indignação face aos custos, pelo que vale a pena olhar para o edifício da Casa da Música sob outro ponto de vista. Reconheça-se que estamos perante um impressionante exercício de virtuosismo no domínio do design arquitectónico, que, por ter sido pensado e construído como tal, se revela incapaz de funcionar como pólo de renovação urbana e lugar de vivências memoráveis.

Não será por acaso que o logótipo da Casa da Música é feito como um pictograma do próprio edifício, ou que a actividade mais persistente da instituição pareça ser a organização de visitas guiadas, precipitando o estatuto de monumento a um edifício acabado de construir (parece que, afinal, Venturi sempre tinha razão). Este estatuto, baseado exclusivamente na espectacularidade visual do objecto, confere-lhe uma legitimidade semelhante a qualquer outro monumento arquitectónico. Assim, em vez de se tratar de um edifício construído para um determinado fim que, por ser particularmente bom, é progressivamente reconhecido como um monumento, trata-se exactamente do contrário. Trata-se, antes de mais, de um monumento e, como tal, os usos e funções que ali são instalados devem submeter-se ao facto consumado da sua monumentalidade.

Mas a acústica!…”, dirão os entusiastas.

Bem, parece que os donos da obra terão dito ao arquitecto: “Faça o que quiser, mas na acústica seremos intransigentes”. Ora a acústica é reconhecidamente um factor de grande especificidade na vocação dos auditórios. Está internacionalmente estabelecido que uma sala para música sinfónica não serve para música de câmara, que, por sua vez, não serve para música pop, que, por sua vez, não serve para canto gregoriano…

Tratando-se de uma instituição que procurava desde o início uma espécie de ecumenismo musical, a acústica nunca poderia ser o cavalo-de-batalha da respectiva sede, pois esta é precisamente o que divide os diversos estilos musicais e não o que os junta debaixo de um mesmo tecto. Não cabe aqui, evidentemente, discutir os méritos da programação musical que se consiga vir a promover. Mas é forçoso notar que o edifício, do ponto de vista simbólico, não vai muito além de um auditório com garagem, pesem embora os variados bares que orbitam nesta caixa de sapatos. Ora, para que o nome de Casa da Música se justifique, em vez, por exemplo, de Auditório da Boavista, era absolutamente necessário que a instituição projectasse na cidade uma presença diferente da de um simples auditório, com melhor ou pior programação, com melhor ou pior design, e mais como a de um espaço de produção e de interacção com os públicos e utentes.
O edifício deveria organizar-se em volta de um espaço do tipo café-concerto ou praça interior, colocado ao nível da rua, que estabelecesse intensa promiscuidade com o espaço público, animado pelas lojas e bares, bibliotecas, bilheteiras e espaços de performance abertos à comunidade, estúdios de gravação e ensaio, workshops, etc. Mas a organização espacial do edifício dá o contributo decisivo para que tudo seja o contrário.

Se a intenção é conseguir fixar algum comércio, prevê-se desde já que este fique convenientemente amolgado debaixo de uma deformação da plataforma onde se implanta o volume principal do monumento. O espaço a que, com boa vontade, se pode chamar praça é o espaço que escorre à volta do grande cristal sem que nada de significativo se passe para além do torcicolo provocado pela obrigação de olhar de lado para cima, ao fazer a inocente circunvalação do meteorito. Um grupo de capoeira na praça não provoca entusiasmo, porque esta foi feita para servir de pedestal ao monólito e não, evidentemente, para que alguém pare, se sente ou se encoste a observar um acontecimento, mesmo que este seja programado. As funções instaladas ao nível da praça são as que normalmente se remetem para um segundo plano na organização do espaço público. O acesso às garagens e elevadores, os gabinetes admnistrativos, os acessos técnicos e de segurança ocupam, neste edifício, o lugar de destaque ao nível da rua. O próprio espaço produtivo do ponto de vista musical, estúdios de gravação e salas de ensaio, encontra-se completamente enterrado.

Há quem encare esta perversão de tudo o que são as regras de organização da vivência urbana como uma estimulante provocação intelectualmente legitimada pela obra teórica do autor e pela globalização. Mas, na verdade, trata-se de um conjunto de erros de sintaxe resultantes de uma hipervalorização infantil da figuração megalítica do edifício.

Nada me choca em paredes inclinadas, revestimentos de alumínio ou espaços obtusos, pois não se trata aqui do gosto visual ou do valor plástico, aspectos em que o edifício revela a sua força. Mas importa concluir que, pelo que acima foi dito, tudo se conjuga para que tenhamos a instituição ao serviço do edifício, em vez do edifício ao serviço da instituição. A cultura ao serviço da arquitectura, em vez da arquitectura ao serviço da cultura. A cidade ao serviço da música, em vez da música ao serviço da cidade.

Nuno Lourenço, Arquitecto
in
Jornal “Público”- Terça-feira, 6 Setembro 2005

Entretanto, fica-se a saber que a Casa da Música poderá ser uma empresa pública, que a fundação (que poderá não ser) terá um CA com 7 administradores, que a assembleia geral da actual sociedade já foi adiada duas vezes por falta de comparência de alguns sócios (CMP ou Estado) e que o actual director artístico Antony Withworth-Jones, que assumiu o cargo de director artístico em Fevereiro de 2004, deverá passar agora a deslocar-se ao Porto apenas uma vez por semana, exercendo o cargo à distância.


*Sérgio Godinho

Publicado por contra-baixo 12:22:00  

6 Comments:

  1. Luís Bonifácio said...
    Quem desenhou a casa da música nunca teve o ecuminismo musical em mente. Nela nunca se poderá representar uma opera, ou um bailado, pois quem desenhou desconhecia que nesse tipo de arte é fundamental a existência de um fosso de orquestra. Particularidade que a casa da música não possui!

    Pelos menos os skaters do Porto têm agora um bom sitio para as suas habilidades
    josé said...
    Caro Luís Bonifácio:

    A ópera, no Porto, passa no Coliseu- e muito bem, diga-se. Casa quase sempre cheia e ambiente antigo, de qualidade suficiente.

    Em 18 de Outubro próximo lá vai a Carmen!

    Já lá estou, se Deus quiser. E não preciso de obras de rico em bolsa de pobre, para nada.
    O Valentim não foi o maior, na Casa da Música?!! Está tudo dito, sobre Portugal e alguns portugueses.

    Aqui há dias, contaram-me como certo,- e eu acrecito em quem mo contou- que um antigo ministro das Finanças, tinha perguntado se Vivaldi não seria russo...
    Se este tipo se limitasse a atacar o Cavaco, como putativo pai do défice, quando até foi ministro do governo dele, ainda vá lá. Mas passar além da chinela é o problema de muitos.
    Costumo chamar-lhe diletância, mas é pior do que isso: é semi-analfabetismo.
    Mas como dizia o outro, Jesus Cristo foi quem foi e não consta que tivesse biblioteca...
    Anónimo said...
    Um mistério que nunca se aclarou na minha mente, foi por que razões o "Monumento à Música" não foi encomendado a arquitectos portugueses uma vez que os temos e excelentes, cheios de solicitações para projectos no estrangeiro. Que eu saiba até há uma famosa "Escola do Porto" em Arquitectura.
    Náo me digam que foram questões de prazo, porque me fazem rir, dado que ainda andam a tratar HOJE das questões acústicas.....
    E esse cliché de "Casa de todas as Músicas" é como diz o artigo postado um logro populista.
    As mentes brilhantes que foram na conversa da "caixa de sapatos" ou do "cristal" deviam ser responsabilizadas publicamente e afastadas destas coisas de concepção e gestão cultural, pois não têm preparação científica nem potencialidade neuronal para prever a multitude de efeitos divergentes e custos dramáticos e inúteis que uma coisa destas implica. Uns por politiquice servil, outros por tacho e amiguismo, umn ou outro por criminoso narcisismo fizeram o seu "monumento", que temos de pagar. E os grandes intérpretes e as grandes orquestras (que não cabem no Auditório 1) como não vêm a custo zero só para ver o "monumento", vão passando por sítios e nações onde se valoriza realmente a Música e não vaidadezinhas e solidariedades inconfessáveis.
    Teófilo M. said...
    Nuno Lourenço? Arquitecto? Quem?
    contra-baixo said...
    Ó Teófilo, o importante, se pretende saber, não é o "quem?" mas o que tem para dizer!
    Capisce?
    Anónimo said...
    Ó Ti Ófilo, vê-se bem que só conheces a Lili Caneças e os "names" da "Caras".

Post a Comment