Incêndios

Carta aberta a S.E. a Ministra da Cultura


Senhora Ministra,

No momento em que, mais uma vez, o país arde, as prioridades são claras: combater os incêndios e apoiar as vítimas.

Nenhuma destas prioridades tem imediatamente a ver com o Ministério de V. Ex.a. Pode a Senhora Ministra continuar a abanar suavemente o distinto leque com que se refresca - dispensando o requinte burguês do ar condicionado e o risco de infecção por legionella – sem com isso se sujeitar à crítica que se abate sobre alguns dos seus colegas.

Porém, sendo Ministra da Cultura, V. Exa. não pode deixar de ser culta; e, sendo culta e Ministra, será certamente sábia. O governante sábio conhece as virtudes da prospectiva. Sabe que o bater de asas de uma borboleta (ou o abanar de um frágil leque) pode provocar terramotos nos antípodas. Tem sobre os seus ombros sábios a responsabilidade estratégica de antecipar, planear e prover, tudo quanto necessário seja à boa governação da sua pasta. E bem pesada é a pasta da Cultura, carregada que está com o património cultural que partilhamos e temos a responsabilidade de preservar para os vindouros.

Agora que S.E. o Secretário de Estado dos Bens Culturais está ocupado com as incontornáveis prioridades da mudança do seu gabinete para Évora - medida de tão profundo alcance que ainda ninguém esteve à altura de o discernir - é chegado o tempo de V. Exa. governar. E como V. Ex.a sabiamente já terá antecipado, uma das urgentes prioridades dessa governação tem a ver com os incêndios que nos assolam.

É que o património, mesmo o construído em rocha dura, arde. Ainda hoje ardeu em Lisboa parte do Convento do Beato. Recordará também V. Exa. os danos causados na Igreja Matriz de Oleiros, em consequência das elevadas temperaturas provocadas por incêndios ocorridos na sua vizinhança durante o Verão passado.

As medidas de prevenção contra incêndios não podem pois ser descuradas, a começar pelos monumentos nacionais mais vulneráveis às chamas, como é o caso, por exemplo, do Convento de Mafra. Pasmará V. Ex.a, Senhora Ministra, ao saber - como possivelmente já sabe - que a generalidade de tais monumentos, tutelados pelo IPPAR, não tem, sequer, um plano de emergência aprovado, como reconheceu o Senhor Presidente daquele instituto em recente entrevista à Rádio Renascença. Ao que parece, o dito instituto não conseguiu, ainda, dar prioridade a elementares exigências de prevenção e protecção contra o risco de incêndio nos monumentos à sua guarda. Ainda estará a “criar um plano de actuação por fases", sendo que, para a sua implementação, "vão ser necessários meios que, neste momento, o IPPAR não tem". Perante esta cândida confissão do Senhor Presidente do IPPAR, concluiu a RR que “o Instituto do Património espera que, este ano, as chamas se esqueçam dos monumentos nacionais”... Todos esperamos. Mas também esperamos que uma intervenção ministerial, esclarecida e musculada, venha finalmente a pôr ordem nas confusas prioridades dos que consagram dia e noite às responsabilidades do património...

A protecção do património arqueológico será também uma das áreas em que se torna necessário intervir com urgência e determinação, para inventariar as situações de destruição ou de risco e definir medidas a tomar. A acção directa do fogo, a erosão a que as áreas ardidas irão estar sujeitas, os revolvimentos de terras para acções de reflorestação, ..., envolvem um risco potencial de destruição de elevado número de sítios arqueológicos já inventariados ou até agora não detectados.

Já no ano passado esta questão se colocou com enorme acuidade. Ao ponto de o país, com incontido assombro, ter testemunhado uma das raras ocasiões em que o Ministro Dr. Pedro Roseta tomou uma decisão. Decidiu - e bem - o V. digno antecessor, inventariar e avaliar o problema e definir linhas de acção. Do assunto, não se voltou a ouvir falar. O que é mau sinal, num tempo em que as mais ínfimas realizações do Estado são publicitadas urbi et orbi e numa terra em que as preocupações com os incêndios esmorecem com o rescaldo dos mesmos, para só renasceram com o eclodir dos fogos do ano seguinte...

V. Exa. avaliará o que foi feito e decidirá o que há a fazer.

Falar das implicações na Cultura e no Património, no auge do drama dos incêndios, não será politicamente correcto ou consensual. Não esquecemos que as prioridades imediatas são outras. Que os dramas humanos a tudo se sobrepõem. Que as catástrofes ambientais põem em risco um futuro sem o qual nada faz sentido.

Mas também não esquecemos que a nossa congénita incapacidade de prever e evitar factores de risco, de planear, testar e coordenar intervenções, explica em muito o que está a acontecer. Acabar com a cultura do nacional-porreirismo, do improviso e da impunidade tem de ser, de uma vez por todas, um dos principais desígnios nacionais. Fazê-lo hoje – e já - também no domínio do património cultural, é imperativo.

Não podemos deixar de integrar medidas de salvaguarda dos bens culturais na estratégia nacional de luta contra os incêndios, tanto mais que a eventual perda de muitos desses bens seria irreparável.

A Cultura não está, neste momento, debaixo de fogo. Que a titular da pasta saiba tomar, serena mas firmemente, as medidas que se impõem para que não venha a estar, são os votos do cidadão que se subscreve,

com os melhores cumprimentos,


Publicado por Gomez 18:50:00  

1 Comment:

  1. Anónimo said...
    Parabéns pelo post.
    Meu Deus, GOMEZ, então você vai agora incomodar Sª Exª a ministra com estas coisinhas do quotidiano? Sª Excª está ocupada nas alturas em assuntos de "Estado" que isto é só cá com a "malta".

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