O escândalo

O artigo 30º do Código Penal, configura legalmente o que em doutrina penal se entende por crime continuado. Ou seja, e de modo simples, situações em que a realização de um mesmo género de crime, várias vezes , pela mesma pessoa, pode ser julgado como tendo sido apenas um único crime e portanto com uma pena substancialmente reduzida.
A versão deste artigo 30, antes desta recente reforma penal, era assim:

Artigo 30.º
Concurso de crimes e crime continuado

1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Redacção dada pelo seguinte diploma: Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março

Agora, ficou assim:

Artigo 30.º
Concurso de crimes e crime continuado
1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima.
Por isso, a reforma acrescentou apenas um segmento que parece inócuo e que diz assim:

Artigo 30.º
[...]
1 - ...
2 - ...
3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima.

José António Barreiros, advogado, acaba de dizer na Sic Noticias que este pequeno acrescento é escandaloso. E mediu bem a palavra, antes de a dizer, a instâncias da entrevistadora que lhe perguntou expressamente se estas leis não tiveram por motivo principal o processo da Casa Pia.
José António Barreiros, foi cuidadoso e referiu que se assim não for, a verdade é que o segmento da norma, agora acrescentado, conjuga-se às mil maravilhas com esta situação desse processo particular, porque os arguidos e acusados se forem condenados, só o poderão ser por um único crime, mesmo que tenham abusado repetidas vezes da mesma vítima. A lei nova é mais favorável.
Citou ainda Costa Andrade, para dizer que este professor de Coimbra já o dissera antes: estas leis tiveram como inspiração directa o que se passou no processo Casa Pia.
Há quem o tenha já admitido, procurando fugir para a frente da realidade oculta, mostrando que afinal esse processo mostrou o que estava mal e esta revisão serviu para isso mesmo. Mas não foi só isso, como se prova pelo pormenor do artigo 30º do C.Penal.

Com esta norma, o gato fica todo à vista e já não é só o rabo.
JAB ainda sugeriu que a responsabilidade por este escândalo deveria ser devidamente avaliada e denunciada por quem de direito. Direito?

Fonte das leis transcritas: PGD Lisboa.

Acrescento em modo de correcção:

Pese embora toda a carga crítica do postal, colocado após a prestação de José António Barreiros, na Sic Notícias, vale a verdade que se diga que o problema do crime continuado, e o acrescento concreto mencionado, foi já equacionado durante a discussão das alterações a essa lei.
Odete Santo
s, do PCP, congratulou-se então, com a modificação, assim como tal constava já das intenções do governo, tal como se escreve no respectivo portal:

O crime continuado é objecto de uma restrição que supera dificuldades interpretativas. Assim, determina-se que o seu regime se não aplica a crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, se estiverem em causa diferentes vítimas, de acordo, aliás, com o entendimento da jurisprudência.

Por outro lado, a jurisprudência andava atenta ao problema, como se confirma por este acórdão do STJ aqui mencionado:


I - A doutrina e a jurisprudência têm sempre entendido que o crime continuado não existe quando são violados bens jurídicos inerentes à pessoa, salvo tratando-se da mesma vítima: na 1.ª Comissão Revisora do Código de 1982 foi proposto e aprovado um acrescento ao art. 30.º com uma redacção expressa nesse sentido, mas o Prof. Eduardo Correia referiu que esse acrescentamento era dispensável, uma vez que a conclusão que ele contém já se retiraria da expressão «o mesmo bem jurídico» (BMJ, 144.º, p. 58).
II - Estando em causa vários crimes de roubo praticados contra pessoas diversas e outros crimes instrumentais em relação àqueles, não existe um único crime continuado.
III - No crime continuado existe uma unificação da pluralidade de resoluções criminosas baseada numa diminuição considerável da culpa; ao contrário, a execução de vários crimes de roubo só aumenta o grau de culpa, já que a reiteração de condutas violentas contra as pessoas indica uma firmeza de intenção e um destemor perante o perigo, de todo incompatível com qualquer diminuição de culpa.

Nestes termos, a menção ao "escândalo", parece manifestamente exagerada e por isso, se apresentam as desculpas da praxe a quem se sentiu enganado pelo escrito.

Publicado por josé 21:26:00  

9 Comments:

  1. lusitânea said...
    Temos que ser condescendentes e compreensivos com os negociadores do pacto.Os homens ainda não tinham os assessores para fazerem o trabalho como devia ser...
    Claro que nas partes que interessavam parecem não ter falhado uma...
    Leonor Nascimento said...
    Jos� l�-lo � um prazer.
    Reflectir sobre o que escreve � um imperativo.
    Fica um excerto apropriad�ssimo de um outro espa�o de elei�o - sobre o tempo que passa de Jos� Adelino Maltez.
    "De pouco vale que a opini�o cr�tica, dos que pensam de forma racional e justa, tente resistir a este rolo compressor, onde o que parece, e aparece, s�o aquilo que realmente se oferece ao consumidor de audi�ncias, com os seus figurantes de pr�s e contras. Ningu�m j� consegue furar o bloqueio deste poder infra-estrutural que marca a encena�o dominante, at� porque ela est� totalmente dependente daqueles donos do poder que sempre nos condicionaram, desde que fingimos que j� n�o existia o chicote do absolutismo."
    guy said...
    ATENÇÃO: Penso que o inciso acrescentado ao art. 30.º do C.P.- o n.º 3 - deve ter outra interpretação, qual seja a de que, relativamente a comportamentos contra mais do que uma vítima (violando-se bens jurídicos eminentemente pessoais), nunca se poderá considerar haver um só crime continuado. Haverá, quando muito, tantos quantos os ofendidos. Mas a ideia é precisamente a de afastar a regra da continuação criminosa nos crimes contra bens eminentemente pessoais.
    A alteração em nada interfirá com a solução o processo referido (ou de qualquer outro) pois que esta fórmula (apesar de incorrectamente expressa)não é mais favorável do que a interpretação jurisprudencial que era feita e consentida pela versão anterior do artigo.
    josé said...
    A questão parece-me mais subtil e complexa.

    Dantes, não se admitia a continuação criminosa relativamente a bens eminentemente pessoais, certo? Ou seja, por exemplo crimes em que as pessoas e a integridade física sejam os bens a proteger.

    Agora, explicita-se o que dantes nem era explicitado porque não se interpretava desse modo e acrescenta-se a excepção da admissibilidade da continuação relativamente a crimes desse género se se tratar da mesma vítima.

    Por exemplo, no caso dos maus tratos a cônjuge ou equiparado ou nos casos de crimes sexuais, como disse JAB.

    Estou certo ou estou errado, como dizia o outro?
    rb said...
    Eu cá, também me parece que este aditamento em nada é mais favorável para quem praticou um crime contra bens eminentemente pessoais, com várias vítimas. Nesse caso não será crime continuado mas vários crimes.

    Mas se o José diz que é um escândalo, serei eu que não estou a ver bem.
    Manuel said...
    Quem praticar um crime sobre cada uma de várias vítimas comete tantos crimes quantas as vítimas...
    Mas isso já assim era entendido, mesmo no que se refere a crimes que ofendessem bens pessoais.
    Por isso, nessa parte o acrescento não acrescenta nada.
    A novidade está no resto: salvo se for apenas uma vítima.
    Ora a verdade é que assim se abre a porta para que no caso de o agente praticar em três ocasiões actos de violação, ou de abuso sexual, ou de agressão física, sobre a mesma vítima, vir a ser condenado como autor de um único crime na forma continuada, e não de três crimes.
    Como é evidente, é uma solução altamente favorável ao agente.
    Por exemplo, para aqueles que estão acusados de ter cometido 10, ou 20, ou 30, crimes de abuso sexual sobre uma mesma criança...
    rb said...
    A lei limitou-se a reproduzir aquele que era o entendimento da doutrina e da jurisprudência já em 1982! Sendo que o acrescento, já equacionado na altura, era tido como supérfluo segundo o eminente penalista Eduardo Correia, porque a solução já resultava do art. 30.º, n.º 2.
    Mas quem é Eduardo Correia ao lado do JAB, advogado, que por acaso, e se não me engano, é apenas o advogado das vítimas do processo Casa Pia.
    Manuel said...
    E o que será JAB ao lado dos inúmeros advogados dos arguidos do processo Casa Pia?
    Nada, evidentemente...
    Alexandre Vieira said...
    Por acaso o Dr. José António Barreiros, já nem sequer é advogado do processo Casa Pia.

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