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Pequena carta a José Sócrates




Senhor primeiro-ministro eu não conheço o caso senão pelas páginas dos jornais mas sei que Fernando Charrua é um professor de Inglês requisitado pela Direcção Regional de Educação do Norte (DREN) e agora suspenso por ter gracejado sobre o processo da sua licenciatura. Mais de meio país, seguramente, fez "comentários" sobre o assunto - graçolas, piadas, anedotas, coisas soezes ou apenas risíveis e imbecis. O senhor sabe. É natural, somos portugueses e conhecemos a injustiça do humor de Gil Vicente, mesmo que o assunto seja tão irritante e tão menor como esse. O tema não é tabu e o senhor mesmo foi à televisão por causa dele.

A responsável pela DREN, avisada por alguém (que achou por bem denunciar o caso, sabe-se lá porquê) achou que o comentário do professor era um insulto ao primeiro-ministro e resolveu suspendê-lo de funções e instaurar-lhe um processo disciplinar, com participação - creio - ao Ministério Público. O que apurará o processo não se sabe ainda, mas prevejo um grande debate sobre o que é e não é insulto e sobre os deveres dos funcionários públicos. A coisa promete. Como em muitas situações semelhantes, vamos ter mais anedotas sobre o assunto. Ele merece.

De acordo com a directora regional de Educação - é, portanto, a posição oficial do Ministério da Educação -, "o Sr. primeiro-ministro é o primeiro-ministro de Portugal" e os funcionários públicos devem-lhe respeito. Ora, nem que não fosse primeiro-ministro. Em declarações ao jornal "Público", Margarida Moreira acrescentou que a sua decisão (a de suspender o professor, a de instaurar-lhe um processo disciplinar e a de participar ao Ministério Público) se deve ao facto de "poder haver perturbação do funcionamento do serviço".

Dado que o processo se encontra em fase de "segredo", uma figura jurídica que serve para tudo, não sabemos que insulto lhe terá Fernando Charrua dirigido, a si, senhor primeiro-ministro, que pudesse perturbar tão gravemente "o serviço". Imagino que o senhor também não saiba. Mas, andando na política há tantos anos, suponho que nenhum insulto lhe deva ser estranho. Basta aparecer na televisão, ter um nome e ocupar um cargo. O senhor sabe como essas coisas se passam. De tudo fazemos uma anedota. O mundo é cruel.

Há, evidentemente, a hipótese de a notícia não ser totalmente verdadeira. Mas não vejo como a directora da DREN confirmou-a e o ministério da Educação não a desmentiu até hoje. Se o processo disciplinar ao professor continuar a correr neste segredo, aumentarão os rumores e as suspeitas. A principal delas, mesmo sendo injusta, é a de que o senhor autoriza o Ministério da Educação, através da DREN, a fomentar o autoritarismo, o culto da personalidade ou a perseguição política a funcionários públicos que contem anedotas sobre José Sócrates.

Seja como for, acho que a directora da DREN se excedeu. Foi mais papista do que o papa e causou-lhe, a si, um problema o de poder passar a haver despedimentos por "delito de opinião", o que é muito grave. O senhor dirá que não se trata de um despedimento mas, na pobre linguagem da pequena política, já se sabe que não basta "ser" - é também necessário "parecer". Ora, isto parece, exactamente, "delito de opinião". Argumentarão alguns que o comentário foi feito "nas horas de serviço" e "nas instalações da DREN"; teria sido assim tão grave que as paredes da DREN coraram de vergonha?

Sei que o senhor primeiro-ministro não concorda com este tipo de perseguições. Não deixe que isso aconteça no seu, e meu, país. De contrário, o senhor será responsável pelo reaparecimento de milhares de pequenos ditadores e papistas, um pouco por todo o lado. Eles detestam-no a si porque o senhor é de uma nova geração de políticos que nasceu para a política já em liberdade; mas aproveitarão a boleia que este caso pode dar-lhes para satisfazer a pequena tentação portuguesa da intolerância.

Francisco José Viegas, no JN







O humor
Domingos de Andrade, hoje no JN

Não se sabe se a tirada foi pior do que a do ministro das Obras Públicas, que, em sessão de esclarecimento sobre o novo aeroporto da Ota, puxou dos galões e disse, para gáudio da assistência, ser engenheiro civil… inscrito na Ordem. Pensa-se que Mário Lino terá passado incólume à graçola sobre o primeiro-ministro.

Já os contornos da notícia que se segue não são totalmente claros. Faltam elementos, falta perceber o contexto da piada e o contexto da delação. E o que se poderia saber mais está resguardado no silêncio do autor e enquadrado pelo segredo disciplinar. Mas o que se sabe, segundo o apurado pelo "Público", é suficientemente preocupante. Um professor, destacado há quase 20 anos na Direcção Regional de Educação do Norte, foi suspenso por ter gracejado com a licenciatura de José Sócrates.

Em primeiro lugar, é preciso perceber que o dito professor, Fernando Charrua, já foi deputado pelo PSD na Assembleia da República. E um ex-deputado, aos olhos do poder dominante, para mais do PSD, não tem estaleca para dizer piadas. Sucede que o humor sempre foi, à luz das teorias das ciências sociais, um tubo de escape para aquilo que nos aflige. Um relativizador. A forma possível de criticar a sociedade e de criticá-la nos seus próprios fundamentos, muitas vezes protegida pela máscara, pela figura do bobo.

Mas o bobo desta história não é o professor. Somos todos nós, que assistimos impávidos ao enquadramento e ao alinhamento pelo pensamento único desta sociedade civil já de si fraca de espírito crítico.

O Governo não tem culpa deste caso específico? Não teria se não assistíssemos, como nunca na nossa democracia recente, ao culto da personalidade, à concentração de poderes, ao controlo do que se diz e faz, na Função Pública, nas Forças Armadas, nas polícias, em suma, na vida dos cidadãos. Perante o exemplo, a cadeia hierárquica não faz mais do que prostrar-se com subserviência a quem manda.


P.S. - Nem de propósito. O primeiro-ministro deu ontem as boas-vindas a 324 novos portugueses na cerimónia de entrega dos certificados de nacionalidade. E justificou o acto por contribuir para um país "mais justo, mais pobre" perdão, mais evoluído. Bem-vindos e boa sorte". Desejamos o mesmo.

Publicado por Manuel 17:06:00  

1 Comment:

  1. Unknown said...
    O "coitado" professor de inglês Fernando Charrua (há 20 anos na DREN!!) jocoso, prazenteiro, ingénuo piadista, exercia afinal o cargo de Director de Serviços de Recursos Humanos da DREN e tinha já exercido funções de deputado "independente" pelo PSD.

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