Para o senso comum, já dei.

O jornal Público de hoje, ocupa parte do seu espaço de comentário a glosar o tema da liberdade de expressão e por extensão, de imprensa.

O editorial de José Manuel Fernandes, coloca o dedo numa ferida pustulada e nunca fechada e que afecta o nosso tecido social: os limites da liberdade, naquilo que se pode dizer ou escrever sobre outrém.
Este ano, já são duas, as decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que condenam o Estado português, por causa de decisões de tribunais portugueses acerca da matéria.
O sentido das decisões do TEDH tem sido unânime e rotundo: a liberdade de alguém se exprimir na imprensa relativamente a figuras com relevância política e pública, é mais alargada do que os tribunais ( e a lei) portugueses entendem e interpretam.
Na mesma página em que se dá conta da notícia, é notícia também, a primorosa rectificação do ministro Santos Silva, sobre a declaração de extraordinário bom- gosto, sobre o “jornalismo de sarjeta”. Esclarece que nunca quis qualificar o jornalismo português como sendo de “sarjeta” e que a expressão tem paternidade incógnita mas indigitada a um antigo presidente do Conselho deontológico e uma antiga presidente do Sindicato dos Jornalistas. A gente calcula quem sejam e onde estão, para tão afincadamente defenderem a liberdade, aferrando-lhe o açaime da responsabilidade que aparentemente ninguém contesta, mas que serve na perfeição o desígnio contido de arreata.
A desgraça de Santos Silva, porém, mostra-se logo a seguir, quando reafirma a sua afincada noção que lhe permite distinguir e separar águas: “importa é distinguir com clareza o jornalismo de investigação e aquilo que vários jornalistas chamam e bem, jornalismo de suspeição e/ou jornalismo panfletário”.
Ora aqui temos o sumo da questão, espremido para sintetizar a contradição.
As reportagens jornalísticas, sobre os casos recentes da Eurominas, envelope 9, negócios tipo Ota, tipo aterros sanitários à moda da Cova da Beira, serão, muito naturalmente, incluídos no “jornalismo de sarjeta”. Como o serão também, estas arrelias recentes sobre o percurso académico impoluto e exemplar do primeiro ministro, enquanto estudante trabalhador esforçado, com professores de amizade reconhecida e exames ao Domingo, com provas feitas em casa, por professores estranhos à cadeira e pelo reitor de coisa nenhuma.
Já não serão de sarjeta as notícias que envolvem uma responsável do MIT que há dezenas de anos arranjou um curriculum académico, “à maneira” de outros que se vão conhecendo. Nem são de sarjeta as exigências de demissão desses nepóticos embusteiros estrangeiros, tipo Wolfowitz. Por cá, não. “Nós, por cá, todos bem”. A nossa ética é diferente, consoante se trate dos nossos ou dos deles. No primeiro caso, pára nas fronteiras do nosso proteccionismo de costumes. No segundo, exporta-se com toda a facilidade e ligeireza de comentários em causas que são nossas.

Assim, aquelas notícias de sarjeta, serão em breve sujeitos a descarga de agulheta pressionada, vinda do próprio Estatuto do jornalista e com alto patrocínio dos vigilantes, atentos e veneradores do poder situado, antigos sindicalistas reformados no sucesso da louvaminha habitual e crítica velada e respeitosa que a ninguém incomoda, porque a vidinha custa a todos e “estamos aqui uns para os outros”.
Esta frente de batalha pró-governamental, enfrenta a resistência do povo leitor que pretende saber mais um pouco do que se passa, nos meandros do poder delegado a uns tantos que se escondem para não prestar contas, além das fixadas em regulamentos que não funcionam. A lei serve de escudo a quem não quer dizer o que anda a fazer em nome de todos e os indícios que assim é, são agora preocupantes.
Entre esta tensão, sobre o que se pode ou não pode dizer dos governantes e afins, interpõe-se o aplicador da lei, o poder judicial, supostamente independente, afastado das querelas de partidos e sem ligações aos mesmos. Desgraçadamente, descobre-se sempre que assim não é, por ocasião da corrida a postos de prestígio na administração ou em tribunais de alto coturno Constitucional.
Diga-se assim, de chofre que é para não assustar ninguém: a independência do poder judicial em Portugal, nos casos que contam e são exemplo, assemelha-se cada vez mais a um mito grego, falsificado numa ópera bufa..
A Justiça simbólica de venda nos olhos, balança numa mão e espada na outra, nem símbolo já pode ser, nos tempos que correm. Tornou-se apenas em bibelot de regime, quando lemos certas opiniões de quem tem o dever de a aplicar nos casos concretos. Sendo manifesto que a independência pessoal e integridade de carácter, assegurados os pressupostos legais, são os ingredientes necessários ao exercício da independência judicial, como esperar tal coisa de quem se aproxima tacticamente dos poderes, defendendo publicamente amigos poderosos, contra a evidência do recato exigível? Como se admite por exemplo, um juiz tipo mediático que devendo figurar nas fileiras dos independentes, assume posição pelo poder de facto, sem qualquer pudor de dizer e afirmar amizades e inclinações políticas? Espera-se o quê, deste tipo de juízes ? Justiça nas decisões? Só se for por acaso…

Nesta encruzilhada de ideias e noções, avultam as que a lei fixou como parâmetros de referência. Quem os conhece? Os especialistas divergem na sua interpretação. Os aplicadores afastam-se da unanimidade ou até da sensatez comum e os visados, rejubilam ou resmungam, sempre que se encontram em posições delicadas.
Os requisitos da lei civil não coincidem, como é natural, com os da lei penal e estes são tão restritivos dos direitos à liberdade que só os intérpretes afinam os critérios, segundo critérios que se afiguram muitas vezes manifestamente subjectivos, numa matéria em que isso é fatal, para não se recair na discricionariedade de quem julga.
Os exemplos apontados no editorial do Público de hoje, são redundantemente exemplares. Há tribunais que estendem a liberdade de expressão e há tribunais que a restringem, numa contradição interpretativa que deveria ser inadmissível e que provoca a perplexidade que vemos, sempre que lemos, anos depois, a denegação dos fundamentos dessas restrições, cada vez mais subjectivas, apresentadas no entanto, como o nec plus ultra do rigor e qualidade jurisprudenciais.

Assim, torna-se cada vez mais notória a necessidade de debate dos fundamentos e limites actuais, do direito ao bom nome, boa imagem, honra, consideração e outros valores conexos que sustentam os artigos do Código Penal actual. O tema, de grande dificuldade conceptual, para fixação da precisão dos seus contornos exactos, não pode continuar a balizar-se apenas nos estudos dos anos sessenta do professor Figueiredo Dias ou dos mais recentes, de Costa Andrade, ambos professores de direito penal de Coimbra e da jurisprudência que se limita a reastear esse caminho.
A noção jurídico-penal dos crimes contra a honra, do código penal, assenta em bases teóricas que já mudaram ao longo dos anos.
A compressão ou expansão dos direitos de liberdade de expressão, dependem demasiadas vezes de entendimentos subjectivados, dos intérpretes e aplicadores do direito e da lei, como é patente nas últimas decisões dos tribunais.
A jurisprudência sobre o assunto, abundante e luxuriosa, permite a comprovação fácil da afirmação sobre suspeitas de arbítrio no modo de julgar, ancorado em concepções rígidas de costumes subjectivos.
Há decisões para todos os gostos e feitios, nesta matéria. Já houve quem considerasse ofensivo o epíteto “fascista” e houve o contrário, por exemplo.
No capítulo do direito da informação, a existência de crime pode aferir-se como a imputação de um facto ofensivo à honra – que é a dignidade subjectiva de cada um- e á consideração- que é dignidade objectiva da estima e reputação sociais.
Discutiu-se a intenção de ofensa, para se afastar a sua exigência, como de especialidade, para se dizer que basta a consciência lata de ofender. Igualmente irrelevante foram considerados os motivos determinantes de ofensa. Mas já o não são, os motivos que podem excluir o propósito de ofensa.
Se alguém pretende brincar com outrém, poderá fazê-lo nos limites do ridículo e do mau gosto, dos graçoleiros profissionais que se apresentam em tonalidade fedorenta ou bem cheirosa. Quem definirá depois, se um ofendido deve sê-lo juridicamente? Os tribunais. Com que critério? Ora…os do “bom gosto”, da “graçola permitida” e outros conceitos assim tão engraçados que a subjectividade reside no senso comum. E se o juiz falha neste senso comum? Recurso em cima? E se ainda assim, o senso superior não prevalece? Nada a fazer, como adivinharam os ofendidos de um tribunal militar que se há uns anos se queixaram de um boquejão politicamente bem posicionado.
Também não haverá ofensa criminal, digna de crédito jurídico, se o propósito se limitar a narrar o acontecimento ou o facto, com veracidade informativa.
Mas, neste caso, que dizer da decisão cível, sobre a informação pública das dívidas fiscais de outrém que existem mas parecem não existir e que apenas poderão existir?
Como conciliar o direito a uma informação, com o critério de indemnização vigente no código civil?
Nestas perplexidades, residem muitas das preocupações de quem informa, comenta ou escreve sobre assuntos da sociedade em geral.
Perante uma ideia geral e comum de que os políticos eleitos e figuras públicas que vivem da publicidade à sua imagem, se restringem voluntariamente em alguns dos seus direitos de personalidade, os teóricos de Coimbra citam teóricos alemães, como Roxin e Herdegen, para sustentar que na luta política diária e de formação da opinião pública, há por vezes o recurso a formulações bombásticas exageradas e até picantes. Chamar “homem sem carácter” ou mentiroso, a um político, é difamatório? Pode ser. E será punível criminalmente? Não pode ser.
Diz o teórico de Coimbra, Vieira de Andrade, num parecer antigo:
os direitos fundamentais não podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes de que são titulares, antes valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade como valores ou fins que esta se propõe prosseguir”.

Ao criticar os políticos e ao levantar questões que envolvem suspeitas naturais, pela ordem do senso comum, de um político como o primeiro ministro, acerca das suas habilitações académicas, um jornal não pode ser considerado como media de sarjeta.
Tal como não o poderá ser, o deputado que ao abrigo da sua imunidade, faz inquirições ao executivo ou contesta ideias alheias e adversárias. Mesmo que o faça com deselegância ou falta de urbanidade. Nem tudo pode ser crime, como nem tudo se pode resolver em tribunais institucionalizados. Muitas vezes, o melhor tribunal, ainda é o da opinião pública. Mesmo manipulado pelos media, consegue geralmente um melhor tom de justiça do que aqueles que se instituíram para aplicar a mesma em nome do povo.
Talvez por isso, o ditado antigo, se deva lembrar: vox populi, vox dei. Dei, como senso comum.

Publicado por josé 12:20:00  

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