os dentes da reacção
sábado, agosto 12, 2006
"Evocar Marcello Caetano é, antes do mais, recordar o homem e o amigo de minha família, desde o final dos anos 3o do século passado. O homem. Impoluto no carácter, determinado na personalidade, austero, aparentemente distante e frio, inteligência rigorosa e metódica, grande sistematizador e expositor, cultura clássica e moderna sólida, de claro pendor francófono, facilidade e recorte estilístico na escrita. Na intimidade, ainda, afectivo e atencioso, muitas vezes nos mais pequenos pormenores. Sempre de uma persistência (aqui e ali talvez teimosia) de um critério meticuloso no trabalho, de um sentido de responsabilidade pessoal, cristã e cívica marcada por uma educação conscienciosa, uma carreira inicial a pulso, uma militância católica e de serviço comunitário (de que a Conferência de S. Vicente de Paulo foi exemplo), marcada pela doutrina social da Igreja e o neotomismo. O amigo de família desde o final dos anos 30. Mestre de vida e superior do meu pai. Na Mocidade Portuguesa, onde o teve como colaborador e ajudante de campo até 1944. No Ministério das Colónias, onde beneficiou do seu secretariado até 1947. Novamente, conselheiro no Governo, nos anos 6o, Marcelo Caetano como ministro da Presidência, meu pai como subsecretário de Estado da Educação Nacional. Ou, no início dos anos 70, Marcello Caetano presidente do Conselho de Ministros e meu pai ministro de várias pastas. E, antes e para além de tudo isto, com sua mulher, a inexcedível Teresa Barros, filha do escritor e pedagogo liberal João de Barros, padrinhos de casamento de meus pais (em 1947), seus filhos Ana Maria e Miguel padrinhos de meu irmão Pedro, em 1955, e eu próprio devendo-lhe o nome, apesar de Marcello Caetano ter entendido que o padrinho deveria ser da geração do pai e não mais velho do que ele (escolhendo Camilo de Mendonça). Como não lembrar a narrativa que me chegou da lua-de-mel de meus pais em S. Martinho com carro emprestado pelos padrinhos, os sucessivos Natais na velha casa junto ao Camões, os passeios na Quinta do Linhó, as sugestões dadas no liceu, a apreciação de trabalho do 5° ano sobre a Constituição Francesa de 1791, as obras oferecidas estimulando (e pesando decisivamente) na ida para Direito, os sábados à tarde na Choupana (entre 196o e 1966, ouvindo, a sua tertúlia política), o rigor com que impôs o afastamento da Choupana e do convívio pessoal enquanto fui seu aluno (de 1966 a 1968), o modo paternal como me acolheu em jantares semanais entre 1968 e 197o, na ausência moçambicana de meus pais? São centenas de episódios ou histórias familiares, que continuaram no Brasil, onde, no Rio de janeiro, Marcello Caetano conviveu com meus pais e meu irmão Pedro, e de onde respondeu a cartas minhas até à sua morte, em 1979. Mas, para além desta dimensão pessoal - sem dúvida a mais importante para mim e minha família -, como não lembrar a do cientista e professor de Direito, a partir da década de 30? Cientista, que criou uma verdadeira Escola de Direito Público na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, escola essa que teria como seus sucessores André Gonçalves Pereira e, depois, Diogo Freitas do Amaral, e influenciaria, de modo impressivo, o ensino de Direito Administrativo na sua Faculdade, na da Universidade Católica, na da Universidade Nova de Lisboa, na do Minho, na do Porto, assim como a legislação e a jurisprudência mesmo após 1974. Embora tendo cultivado o Direito Constitucional, a Ciência Política, a História do Direito, o Direito Internacional Público, o Direito Colonial e Ultramarino, o Direito Comparado, o Direito Penal e até a Economia Política e a História da Filosofia Política, foi o Direito Administrativo o seu domínio de eleição, cabendo-lhe a fundação da correspondente Ciência, em termos globais, desde o Curso, depois Manual, de 1936. "
Este retrato de Marcello por Marcelo Rebelo de Sousa, ( um com um L a mais e outro a menos...) hoje no Expresso e que se estende nas páginas da Actual num artigo insosso de 4 colunas e várias fotos, assinado por Manuela Goucha Soares, vale o seu significado. É a primeira vez, que me lembre ( e tenho boa memória arquivada) que se pode ler este desvelo quase familiar e intimista por Marcello C., vindo de Marcelo R.S. Em trinta anos( não teve tempo antes, lê muito...), chegou a vez da verdade afectiva se sobrepor a uma verdade funcional? Haja Deus!
Será capaz de dizer isto, neste tom, na tv? Esperemos para ver.
Em 31 de Outubro de 1980, por ocasião da morte de Marcello, o Jornal, pela pena de José Freire Antunes, traçava um obituário menos personalizado, com o título “Marcelo e o fantasma de Salazar”:
Caetano viveu, mal, entre 1968 e a rendição no Carmo, com o fantasma de Salazar às costas, o pai político que três vezes negara para melhor amar. Quis renovar para subsistir. Rebaptizou a PIDE e a União Nacional, jogou os liberais, soltou as rédeas de certa oposição , abrandou a Censura, tomou banhos de multidão e falou em apanhar o comboio da Europa. Antigo ministro das Colónias, teórico ultramarino abalizado, começou por serenar os espíritos, jurando a defesa do património africano. Sabia quão desfasada era já a arenga do velho mestre, os tempos mudavam afinal, por mais penoso que fosse dizê-lo a um velho. Mas acabou por perder a cartada : deixou-se embrulhar pelo ultramontanismo; a sua Primavera política teve um invernoso epílogo e acabou a carreira, pouco gloriosamente, dentro de um Chaimite.”
Ao ler estes textos, carrega-se-me a perplexidade ao lembrar que ainda esta semana passada, o Consultor Vítor Dias, do PCP, escrevia no Público a recalcitrar que este agora retratado continuou a obra de Salazar, dando substãncia política ao regime que não hesita em continuar a reivindicar de “fascista”… Os argumentos de Dias, aliás, podem exemplificar-se com esta pérola da lógica argumentativa: “(…) há centenas e centenas de coisas e pessoas a quem o PCP nunca chamou fascista”! Isso para responder à pergunta retórica sobre se havia alguém ou alguma coisa em Portugal a quem o PCP não tivesse ainda chamado “fascista”…
Assim, continuando a saga da recolha de artigos sobre o nosso “fascismo” e quem o crismou, apresentam-se hoje mais uns episódios da epifania dessa celebração semiótica que nos ensaiou o discurso politicamente correcto.
Em Setembro de 1974, alguns descontentes com essa epifania e alguns apaniguados do antigo regime, apanhados com as calças na mão, na vertigem do 25 de Abril de 1974, decidiram-se pela reposição da sua voz, julgando ainda que sintonizava com a do povo em “maioria silenciosa”. Erro fatal!
Em menos de cinco meses, Portugal, com a ajuda preciosa de todos os media e as manifestações de rua de todos os partidos organizados para a luta popular, vivia a uma só voz: a do antifascismo! Os que ansiavam por outra coisa que não uma república popular democrática, à maneira de uma Cuba bem edulcorada nos media e que desejavam um governo escolhido por um parlamento eleito e um regime de efectiva separação de poderes, com controlo democrático feito de pesos e contra pesos, e a recolha dos militares às casernas, tinham pela frente os pesos pesados do antifascismo militante que os apodavam, sem qualquer rebuço de “fascizantes”, ou mesmo fascistas puros e duros. Ultramontanos, como também se dizia.
Não foi assim? Então ficam as imagens que substituem as palavras. São imagens desses primeiros seis meses após o 25 de Abril. Algumas referem-se aos acontecimentos de 28 de Setembro. Nessa data, a “maioria silenciosa” que não tinha voz nos media e que tinha vindo do 25 de Abril, sem lhe detectar o estigma fascizante, tentaram a sua vez. Fizeram uma tourada no Campo Pequeno, como costumavam fazer antes do 25 de Abril e que passava na tv e convocaram uma manifestação da tal “maioria silenciosa”.
Apareceu-lhes pela frenta a maioria ruidosa do 25 de Abril, capitaneada pela vanguarda revolucionária do poder popular, em diversos cambiantes, mas com predominância comunista já instalada nos media.
O Diário de Lisboa( dirigido por A. Ruella Ramos e José Cardoso Pires) e o Sempre Fixe( dirigido por A. Ruella Ramos e outros anónimos), fizeram-lhes a folha.
O cartaz de convocatória foi completamente aproveitado e redesenhado, passando a designar uma “minoria tenebrosa” , com o apelo expresso “abaixo a reacção”.
A manisfestação, patrocinada pelo “fascizante” Spínola que meses antes tinha sido o herói nacional com a imagem estampada em t-shirts, fracasssou e foram presos, numa leva inédita desde o 25 de Abril, os celerados conspiradores fascistas.
Os jornais moderados ( Expresso, República e outros, poucos) vertiam tinta de crocodilo, ao ecoar o chavão de que a “revolução, implacável, costuma devorar os seus filhos”…
Estas imagens, copiadas da edição do Sempre Fixe, de 30 de Setembro de 1974, revelam as peculiaridades idiossincráticas da linguagem que nem é sequer a "madeireira".
Mas nos dias, semanas e meses que se seguiram, até ao 25 de Novembro, quem se lembra, sabe que houve muito mais e melhor.
Para quem não se lembra nem quer lembrar, aqui ficam mais alguns exemplos:
Conforme se pode ver ( e ler, ampliando a imagem), começava mesmo nessa altura a caça efectiva aos reaccionários e "fascistas" de várias matizes e cores. Alguns deles foram mesmo apanhados e colocados em "boas mãos". Nomes bem conhecidos, podem ler-se nestes recortes amarelecidos pelo tempo. E por aí se pode ver o rosto do verdadeiro "fascismo" português, aquele que Vítor Dias e ainda uma São José de Almeida, porventura querem manter na memória viva de quem perdeu algumas memórias residentes.
Publicado por josé 18:11:00
Que diabo, só por estes artigos já se podia dizer que a blogosfera bate aos pontos todos os nossos media.
Parabéns. Recordar estas coisas é impressionante.
E aquela rusga no Hotel com as perguntas do reporter ahahha que coisa tremenda.
"Vínhamos buscar uma grande ave mas escapou-se. No entanto, não faz mal, porque apanhámos três chilenos”
Da Cia? Perguntou o repórter
- Evidentemente, respondeu o oficial"
Fico agradecido pela atenção. Mas, na verdade, escrevo isto para mim, em primeiro lugar. Para refazer memórias exactas e precisas sobre o que ocorreu.
Tenho muito material de papel que revisito de vez em quando, para descobrir coisas.
Quando me lembrei de associar os acontecimentos dos primeiros seis meses de Revolução - que são os fundamentais e que conduziram à lógica do 11 de Março e depois ao 25 de Novembro ( uma vitória dos fascistas...)- fui consultar os arquivos e deparei com coisas muitíssimo interessantes:
O comunicado do PSD a repudiar os acontecimentos de 28 de Setembro de 1974, fala mesmo em "fascismo", para associar os "conspiradores".
O PSD! Até o PSD já tinha embarcado, em menos de seis meses, na cantilena revolucionária esquerdista-comunista!
O CDS era o partido maldito. O Partido do Progresso era a extrema direita, mesmo que fosse autor da propaganda que associava o comunismo ao...fascismo!
Alguns da esquerda ( exceptuando o PS), não hesitavam sequer em classificar o partido "rigorosamente ao centro" ( definição de Freitas do Amaral, já então um exemplo de verticalidade e firmeza de carácter identitário) de partido fascizante.
Estes acontecimentos que se desenrolaram num ano e meio, fixaram muitas cabeças pensadoras a chavões que ainda perduram e a ideias fixas que nunca abandonaram, mesmo que o disfarcem.
Os Joses Manueis Fernandes que contratam opnionistas onde estavam então?!
Na esquerda extrema, voilà!
Acha que vão agora rever as crenças de adolescência e renegar-se naquilo em que pelo menos uma vez acreditaram com fervor, mesmo que se tenha revelado uma perfeita utopia catastrófica?
Qual quê! Reciclam posições e inventam explicações.
Pergunte-se ao Pacheco...
Mas esse risco corro sem temor de maior, porque me lembro muito bem do tempo que vivi e sou fiel a essas memórias quando escrevo. Por outro lado, nunca me associei a extremismos de espécie alguma.
Até tive alguma curiosidade pela aparente sensatez do MES...e cheguei a comprar o Esquerda Socialista. Tenho para aí...
Nunca naveguei nessas águas turvas e nunca senti por perto quem o fizesse clandestinamente.
Mas compreendo muito bem a mentalidade de um cónego Melo e sei por que terá feito o que fez. Compreendo.
O artigo era tão bom que até o PCP veio ladrar que se estava a preparar um "branqueamento" de Marcello.
Urge repor a verdade histórica e colocar Marcello Caetano no lugar que lhe pertence na História de Portugal - Um dos grandes Portugueses do Século XX"
NOTA: Omelhor retrato da sua grandeza é que passados 32 anos do 25 do A, ainda ninguém conseguiu dizer nada de novo no Campo do Direito administrativo.
E quais são os que os jornais publicam? Os opinantes! Os que preferem a “julgar” a história sem a conhecerem! E por onde param os nossos semióticos de jornais e blogosfera? que dizem eles quando se lhes colocam questões tão pertinentes como estas que o José anda a fazer?
Já leu alguma coisa? Eu não. Continuo a assistir ao compadrio das vedetas de cabeça vazia mas de boca a transbordar de verbo.
Como muito bem diz, foram muito mais estas palavras que ficcionaram o passado. E os herdeiros delas não só se reciclam como se reproduzem. Que nem coelhos.
O problema é que esta “fassismo” já passou para o lado da tipologia dos anátemas e entranhou-se com a própria informação que o Ministério se encarrega de transmitir nos programas oficiais.
Falar nisto ainda dá direito a ser-se apodado de branqueador da ditadura. Até quando? Não sei; os mitos prevalecem sempre.
Que em 2006, num país europeu, um blogger ainda tenha de necessidade de se justificar que não foi simpatizante da ditadura, apenas por mostrar uns textos da época.
E recebo muitos outros à conta de muita outra coisa.
A última veio de uma patrulha pública do politicamente correcto que me detectou, por via de psicanálise virtual, uma qualquer pulsão homofóbica que devia reconhecer.
Provavelmente para me retratar publicamente, pedindo desculpa pelo pecado inconsciente...
Veio do mesmo lado dos anti-"fassista" que ainda por aí andam a lutar...
Teve azar: se Salazar correspondeu ao anseio de uma vigorosa fatia profunda da população portuguesa -- Viva Salazar, Angola é nossa!... --, um modo de ser e estar que se arrastava desde que Neanderthal recusou ser, neste rectângulo, substituído por Cro-Magnon, e que emerge, de quando em vez -- eles sentam-se ao nosso lado, nos restaurantes das sandes de leitão, na plateia das pipocas, em qualquer cinema, nas coxias apertadas dos "charters" das Finais dos Mundiais de Futebol, nos "viva Cavaco!...", nas caixas de comentários dos blogues, nos lacrimejantes rastejos de Fátima -- "dizia eu de que", quando fui ao "Google" à procura de uma imagem do homem, a coisa já estava fenomenalmente apagada (O pior que me apareceu até foi isto -- as senhoras que evitem ir ver... --, o que, por si só, indica obsolescência e uma clara rotura de paradigma...), porque, se Salazar correspondia ao difuso anseio de uma vigorosa fatia da população portuguesa, já este não passava do sucedâneo de um sucedâneo, o sucessor de um semi-morto que oscilava na sua cadeira moribunda, onde, de acordo com a "Encyclopédie du Bizarre", até morrer, lhe encenavam ficções, como a de fingir que ainda governava, que continuava a assinar decretos, e ainda era o homem mais importante de Portugal. Nada de inovador, se pensarmos em Fidel Castro, ou João Paulo II, entre outros dos ogres da nossa época de amanhãs que cantam.
Era um tempo sem Coca-Cola -- e, muito menos... Coca... sem cola, e democratizada -- poucos "jeans" e de televisão a preto-e-branco, como o "RTP-Memória" bem nos lembra, a mostrar um Carlos Cruz tão novinho que se diria capaz de se pedofilizar a si próprio, a Maria de Lurdes Modesto, a ensinar os famélicos de aldeia a fazer Cozidos à Portuguesa simples, com couves e solas dos sapatos velhos dos vizinhos ligeiramente mais abastados, o Poeta Pedro Homem de Mello a andar por tudo quanto era feira e bailarico, a apalpar e a mamar nas maçarocas dos mancebos, antes de que a Guerra os destruísse, e... sim... ah, sim... estou agora mesmo a ter uma visão... sim, é ele... um cavalheiro de cangalhas de massa preta, vestido de gato-pingado, "avant-la-lettre", à Cavaco Silva, e sentado numa poltrona de alicerces bem sólidos -- lagarto, lagarto, lagarto... -- a falar longas horas fidelizadocastradas para enormes plateias de analfabetos.
Não sei para que é que a poltrona servia, mas na altura devia ser para assistir às muitas marés de mutilados e mortos, que, diariamente, chegavam do lado de lá de todos os nossos Oceanos, tradição que, infelizmente, conseguimos prolongar até aos dias presentes, nos "racings", nas contra-mãos e nas "overdoses" de "raves" de discoteca.
O gajo da foto podia ter transformado Portugal numa pequena España próspera, evitando a bomba-relógio em que ele se tinha transformado, mas, realmente, não tinha mesmo nascido para isso: era um mero pré-Sócrates em potência, e a História concedeu-lhe um justo epitáfio menor.