Os Intocáveis

Os irmãos P. ainda conseguiram falar antes do juiz Rui Teixeira chegar à Assembleia da República. J.P. terá dito: «O Guerra está incontactável, deve estar naquela reunião que sabemos». Ao que P. P. respondeu «O procurador-geral disse ao António que achava que já tinha ido tudo para o TIC». In Portugal Diário de 17.10.03

Já nem vale a pena disfarçar. A classe política, de modo geral e em concreto alguns dos seus oficiantes e acólitos que escrevem e comentam os acontecimentos, não gostam nem toleram o actual sistema de escutas telefónicas, legalmente existente e que possibilita às entidades policias, ao MP e ao Juízes de Instrução, a investigação da criminalidade.
Muitos dos que escrevem nem sabem muito bem como se ordenam e executam essas escutas. Mário Soares(!) disse publicamente, há umas semanas atrás que ninguém sabe quem ordena as escutas!!
Através de sucessivas declarações e escritos de políticos e comentadores, como é o caso notório de Pacheco Pereira que hoje, mais uma vez, regressa ao tema, no Público, a preocupação com a transcrição do teor das escutas a políticos assume já laivos de paranóia e de ataque frontal contra quem tem o dever estrito de investigar crimes.
Pacheco Pereira, na crónica no Público de hoje, secundando integralmente o que outro comentador , Miguel Sousa Tavares escreveu, acusa abertamente “alguns juízes e magistrados”, por utilizarem as escutas como instrumento de defesa e ataque…corporativo!

Não será altura de lhes pedirem, para esclarecerem publicamente afirmações como essa, que são obviamente, de enorme gravidade?! Mesmo que a seguir se doure a pílula da certeza com a introdução de um elemento de dúvida ( “Mesmo que não houvesse uma intenção perversa, há certamente grave negligência”), como se isso fosse compaginável com o teor da acusação…que elementos de prova ou meramente indiciários têm esses comentadores, para formularem essas acusações graves contra “alguns juízes e magistrados” que nem nomeiam, enlameando milhares deles na acusação infundada?! Que autoridade e conhecimento prático e concreto lhes permite escrever e dizer, redizer e impunemente passarem a mensagem de aviltamento geral e colectivo aos magistrados, polícias e tutti quanti?!
Por mim, respondo sumariamente e sem cuidado de maior: uma grande irresponsabilidade e uma grande vontade de acusar…porque sim. Mais uma vez, um reflexo de julgamento segundo as leis de Pecos e os códigos tipo Roy Bean. E depois ainda atira para cima, a lama da arrogância corporativa que será maior "no seio da justiça" do que noutros lados!

Mas vejamos então, algumas razões da inquietação desses comentadores.
Parecem preocupados com o número de pessoas escutadas, em primeiro lugar.Porquê? Num universo de cerca de 700 mil processos de Inquérito por ano, o que esperar?

Um curioso, manhoso qb, há uns dias atrás, veio lançar um número à sorte, para assustar escutados: 40 mil! Não! -Disseram-lhe- São antes 30 mil! A PGR num esclarecimento pouco feliz e muito sintético, veio aprimorar: serão cerca de 8 mil! Mas ficou por esclarecer em que âmbito se efectuam essas escutas. Daí que a classe política militante, mais os seus adjacentes que dela vivem, mostre preocupação, em debates quadrados e em círculos concêntricos de poder.

O problema das escutas telefónicas, tal como enunciado por estes preocupados, tem exclusivamente a ver com a divulgação pública, do teor das escutas de conversas de políticos. Mas quem é que as divulga e as põe a circular?! É o Público; o Correio da Manhã; o Diário de Notícias; o 24 Horas e outros media que reproduzem as notícias. Não ocorre a estes preocupados, sindicar os mensageiros, apontando-lhes as violações dos segredos que são objectivas, indiscutíveis e...ilegais ! Atiram-se antes a quem entrega aos mesmos o fruto proibido. E atiram-se cegamente e sem ver quem são. Deitam-se a adivinhar e apontam a quem lhes interessa apontar. Daí a hipocrisia. Que se torna evidente quando reparamos nos motivos das preocupações e nos processos a que respeitam.

Têm a ver, além do mais, com o processo da Casa Pia; com o processo dos sobreiros Portucale e com o processos que investiga a fuga de milhões para off shores, sendo suspeita uma parte importante da banca portuguesa.
Quem investiga essa criminalidade que dantes se chamava de colarinho branco?!
O MP e a PJ, legalmente. E o JIC controla-a em aspectos fundamentais de direitos, liberdades e garantias. O sistema português, segundo os teóricos que o gizaram ( Figueiredo Dias, Costa Andrade e tal) é um bom sistema. Não precisa de mudanças de maior.
Basicamente, a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só deve ser ordenada ou autorizada pelo juiz no seguinte condicionalismo:
- estarem em causa crimes puníveis com pena de prisão de máximo superior a três anos, ou relativos ao tráfico de estupefacientes, a armas, engenhos, matérias explosivas e análogas, ao contrabando ou de injúrias, ameaças, coacção ou de intromissão na vida privada quando cometidos através de telefone;
- revelar grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
Este quadro já vem dos anos noventa, pois o excerto é retirado de um Parecer da PGR dessa altura.
Mas escreve JPP no Público que “ As escutas divulgadas, puramente do âmbito político, mostram que alguém, ( e esse alguém só podem ter sido polícias,magistrados ou juízes) abusou de um instrumento especialmente delicado, desviando-a da sua finalidade exclusiva, sem cuidar da regra que impõe o seu uso apenas en casos de necessidade justificada.

Talvez seja ocasião para lembrar a quem escreve estas enormidades nos jornais, impunemente e assim passeia a importância de comentador encartado e pago por isso, o seguinte passo de uma comunicação do advogado José Miguel Júdice, ainda em 2003:
(…)
7. Mas, para além disso, por razões evidentes de praticabilidade e de eficiência, algumas das determinações legais não estão a ser cumpridas nem podem realisticamente sê-lo. É o caso, por exemplo de (1) a PJ levar ao Juiz de Instrução em regra já transcrito o que entendeu dever sugerir, e não como determina a lei as gravações com a indicação das passagens que entende relevantes, (2) mesmo quando a PJ as faz acompanhar das gravações é materialmente impossível a qualquer Juiz de instrução ouvir tudo para ver se a selecção transcrita ou até as indicações das passagens relevantes são as adequadas e se, por exemplo, não foram desvalorizadas passagens que podiam beneficiar a defesa. E (3) as escutas são coordenadas a nível central em Lisboa – o que está bem e não era assim antes da chegada do novo Director Nacional, tornando ainda mais difícil o auto-controle – e podem ser autorizadas por Juízes desde Bragança a Vila Real de Santo António, de Porto Santo às Flores. O que significa que a PJ não tem qualquer controle de ninguém – que não seja dos serviços de inspecção do M. Justiça, desde que erradamente se tirou ao MP o poder inspectivo – sobre estas tarefas.
(…)10. As fitas gravadas das escutas telefónicas devem ser levadas “imediatamente” ao “Juiz que tiver ordenado ou autorizado as operações” (art. 188, nº1 do CPP). A jurisprudência definiu que dez dias é o prazo máximo que cumpre o preceito legal, mas infelizmente todos sabemos que não é assim que se passam sempre os factos. Acresce que a lei nada diz sobre a necessidade de regularmente se reexaminar a necessidade ou a possibilidade de manter escutas, o que faz com que – de novo a jurisprudência o revela – se renovem automaticamente (chegando – como foi contado no debate organizado pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados – a durarem 2 anos para terminarem com o arquivamento, sem que o escutado tenha vez alguma sido interrogado). É preciso legislar no sentido que proponho no texto que enviei para o Congresso da Justiça ou de outra forma idêntica.


Este panorama de 2003, melhorou com o tempo?! De quem é a responsabilidade pela falta de legislação e pela regulamentação precisa da legislação existente?! Dos juízes?! Dos magistrados do MP?! Das polícias?!
E como compaginar esta legislação existente, com afirmações recentes de Rui Pereira, o mentor da Unidade para a Reforma de leis penais, no sentido de o SIS poder ser autorizado a realizar escutas telefónicas?!
E então como compreender que ainda em Junho de 2004, o Governo tenha sentido a necessidade de legislar neste sentido:
(...) a) Por um lado, consagra-se expressamente, num novo n.º 2 do artigo 187.º, uma delimitação normativa do universo de pessoas ou ligações telefónicas passíveis de ser alvo de escutas telefónicas, deste modo se definindo, ainda que de forma elástica, um arrimo valorativo, que, expressão harmónica das opções axiológico-constitucionais, oriente as decisões jurisdicionais.
b) Adicionalmente, atribui-se às secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça a competência para ordenar ou autorizar a intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações efectuadas pelo Presidente da República, pelo Presidente da Assembleia da República ou pelo Primeiro-Ministro. Trata-se de uma solução que se justifica pela posição constitucional cimeira destes titulares de cargos políticos e pelo interesse público cuja prossecução superiormente lhes está cometida. No mesmo sentido, atribui-se às secções criminais das Relações a competência para ordenar ou autorizar a intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações efectuadas por titulares de órgãos de soberania.
Com vista a assegurar o máximo secretismo, indispensável às operações de intercepção, prevê-se um regime especial de articulação entre o Ministério Público que as promove e o juiz que as ordena ou autoriza. Assim, o Ministério Público apresenta o respectivo requerimento, por ofício confidencial, ao presidente do tribunal superior competente, que o classifica e remete à distribuição sem especificação dos actos requeridos e das pessoas visadas.
c) Por outro lado, determina-se, num novo n.º 5 do artigo 187.º, que o despacho judicial que ordena ou autoriza as escutas fixa o prazo máximo da sua duração, por um período não superior a três meses, sendo renovável por períodos idênticos desde que se mantenham os respectivos pressupostos de admissibilidade. A título complementar, prevê-se no n.º 1 do artigo 188.º, que os autos de intercepção e gravação de conversações telefónicas sejam levados, de quinze em quinze dias, juntamente com as fitas gravadas ou elementos análogos, ao conhecimento do Ministério Público que as tiver promovido e do juiz que as tiver ordenado ou autorizado.

A César o que é de César…

Parece-me no entanto que esta hipocrisia patenteada por alguns comentadores, num certo desconhecimento voluntário, procura, no entanto, outros objectivos bem mais precisos e relevantes: criar uma ilusão de luta de classes entre os detentores do poder político legislativo/executivo e outro poder do Estado que é o Judicial, nele se envolvendo de modo indirecto o MP.
A expressão desta luta é, aliás, assumida pelos referidos comentadores. JPP intitula a sua crónica “Os direitos do Estado e os nossos”. Inevitavelmente, aqui “os nossos”, adquirem uma estranha conotação siciliana. E não devia. Os “nossos” deveriam ser os de Todos! Começando pelos direitos a que todos sejam tratados de igual modo perante a lei, como manda a Constituição.
Por uma estranha e já patente perversão democrática, que se vai adensando, o que se pretende já abertamente, com a condenação das divulgações das escutas, é matar dois coelhos de uma só vez e com uma única cajadada:
Por um lado, mata-se um coelho, atribuindo a divulgação às entidades do costume – “só podem ser ( o outro diria "como não pode deixar de ser"…) polícias, magistrados ou juízes”. Ficam de fora, neste elenco conveniente, todos os outros intervenientes processuais, - funcionários e advogados, em primeiro lugar, mas ainda outros de natureza acidental, como ficam de fora os divulgadores públicos e mais óbvios que são obviamente os jornalistas.
Por outro lado, mata-se um outro, ao inculcar na opinião pública a razoabilidade de uma solução mais radical para o problema e que tem a ver com o aparecimento do mesmo: as próprias escutas em si e a sua admissibilidade para certo tipo de pessoas impolutas e incorruptíveis, por natureza. Isso começa a tornar-se evidente e perpassa em alguns artigos de jornal e opinião publicada, como é o caso do artigo de JPP em que se alude expressamente a um existente “backlash contra as escutas”!
Será isso que se pretende? Excluir aqueles que por natureza se arrogam a impoluição e a incorruptibilidade? Matar dois coelhos e deixar outros de fora?!
Se for isso, estamos conversados e escusam de pôr mais na carta. Toda a gente o perceberá rapidamente- se é que já não o percebe. E percebe ainda melhor de onde vem toda a arrogância.

Publicado por josé 19:41:00  

2 Comments:

  1. av said...
    Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
    av said...
    .. se calhar é do amianto do palácio da justiça. Afectou o cerebro de muita gente

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