A classe dos políticos

Aqui fica um texto extenso , mas valioso, sobre um problema que nos afecta, enquanto cidadãos de um país que tem o nome de Portugal.
Ficam aqui elencados alguns dos problemas básicos que a democracia que temos não conseguiu resolver nos últimos trinta anos. Um deles, tem a ver com a classe política que nos tem governado desdes há trinta anos.
O texto é de 1978 e foi publicado num jornal.
Mais logo colocarei a conclusão e o nome do autor e local de publicação.

À força de viverem quatro anos e meio de permanente agitação, encontram-se os portugueses hoje com o problema adicional de terem de aturar elevado número de activistas, pseudo-revolucionários, marginais, inúteis ou simplesmente doidos, entre os membros da nova classe política nacional e regional. À custa de suportarem uma política virada para o comício, o eleitoralismo, o verbalismo e a "luta de advogados» pela conquista do poder, acham-se governados por elevado número de "bacharéis em direito», os tais inúteis de que falava Ramalho, e têm de ouvir, em vez de propostas concretas, discursos ocos de conselheiros Acácios; em vez de ideias e actos - pois política é pensar e agir - palavras de duvidosa qualidade. O discurso político começou por ser, após o 25 de Abril, um discurso de todos, em espontaneidade e liberdade; foi depois o discurso das escassas centenas de milhares de portugueses, e da micro-sociedade empenhada na política; é hoje o solilóquio oco, vagamente irritante, desprezado pela revolta perante as condições de vida ou apagado pelos problemas reais da vida, do que se tem chamado a "classe política».
O discurso político que hoje suportamos é, pois, o discurso da classe política. Situacionismo (1), ressurgimento ou reconstrução nacional, autoridade nacional - para a classe política de direita; defender Abril, construir o socialismo, antifascismo - para a classe política de esquerda. De tudo um pouco para os que só querem o poder. E, enquanto os preços sobem, não se discute a política económica ou social; enquanto há desemprego não se discute como criar empregos e apoiar os desempregados: discutese bipolarização ou tripolarização, PS ou PSD ou CDS, eleições antecipadas ou normais, referendo ou actividade legislativa indirecta. Ou seja, coisas da classe política, que não são coisas concretas nem problemas reais dos portugueses... A classe política confiscou o discurso, e fala perante o povo não dos problemas essenciais - que são problemas de competência - mas dos seus problemas próprios de estrato (no sentido que à palavra stand deu Marx Weber). Todo o discurso é uma ("expressão de classe", neste lato sentido, como exemplificou J. Pierre Faye a propósito do discurso económico: a razão principal por que o povo não pode ouvir os políticos é porque estes falam apenas, cifradamente, dos problemas deles, políticos (os agrupamentos partidários, as federações, as bipolarizações...) e não dos problemas reais do povo; ou se destes falam, não passam duma demagogia (que é como quem geme, diante do doente por causa das dores que ele certamente há-de estar sentindo). Ao dizer isto, não vou criticar a "classe política do 25 de Abril», mas só a que vemos no seu crepúsculo; nem ser, como bem disse Magalhães Mota, candidato a "político único" como certos críticos.
Por isso proponho uma reflexão Sobre a actual classe política. Aqui ficam alguns tópicos, pois só se abrirmos os olhos à realidade poderemos melhorá-la. As críticas vagas só servem a antidemocracia; a crítica precisa serve a democracia.

1.° - É uma classe política jovem, dividida, inexperiente, indiferenciada.
Em contraste com a classe política do regime anterior, a actual é jovem - com alguns velhos oposicionistas cuja coragem não tem par com a capacidade - à semelhança do que aconteceu na Europa após a guerra: falta aos jovens, todavia, a experiência da luta pelo poder (o regime anterior caiu de podre e não por assalto ou luta), que também não seleccionou os seus elementos. É significativo, para quem conhece os valores principais das gerações mais recentes, que o regime democrático conta com os melhores valores das gerações de trinta, quarenta anos - e, salvas raras excepções, só agrupou mediocridades acima dos cinquenta (onde os melhores valores em regra foram absorvidos pelo antigo regime). Ela é pouco coesa: a falta de uma experiência de luta (salvo para os comunistas, alguns velhos oposicionistas - entre os quais, por assimilação, os fundadores do PS - e a Acção Católica Operária) fez que as pessoas se não conhecessem "antes de Abril», não soubessem como eram, como pensavam e como reagiam: havia a Acção Católica, a Sedes; certos grupos de amigos e pouco mais, como "meios inconformistas»; e isso é pouco para gerar uma coesão e camaradagem política entre os dirigentes dos partidos democráticos.
Por outro lado, trata-se de uma classe política relativamente inexperiente: chegaram a assumir responsabilidades de Governo pessoas sem qualquer experiência profissional concreta; e, ainda quando se trata de gente com alguma e variada experiência, na maior parte dos casos, inventar magras "biografias antifascistas", como fazem certos recém-políticos: reconhece-se abertamente que a maior parte dos novos políticos moderados eram "opostos" ao antigo regime, mas não tinha militância notória de oposição, o que aliás corresponde a um fenómeno comum na queda de ditaduras conservadoras deste tipo) os opositores situavam-se, em regra, do MDP para a esquerda... Faltou à classe política portuguesa a transição que permitiu a políticos profissionais, franquistas convictos, virarem "democratas-cristãos" ou “sociais¬democratas" por Graça Divina, como se a morte de Franco fosse alguma estrada de Damasco ou revelação sobrenatural: o que propiciou em Espanha uma transição moderada limitou, em todo o caso, o fenómeno do vira-casaquismo em Portugal (houve decerto muito virar a de casacas; mas creio que menos, ao nível dos responsáveis de topo do período democrático, do que na passagem da Monarquia para a República, em 1910, e na Espanha contemporânea). Enfim, é uma classe política com diversas origens sociais, culturais, e profissionais, tanto nos políticos activos, como nos tecnocratas candidatos a políticos, na “contraclasse política” nos analistas, nos áulicos e nos políticos de bastidores que formam, ao mesmo título e com as mesmas ambições e possibilidades de intervenção, a nossa classe política. Neste aspecto, surge menos seleccionada por "aristocracia, dinheiro, Universidade, Igreja e Forças Armadas" do que a classe política salazarista, em boa parte por ser nova e flutuante; é regionalmente tão diferenciada, ao nível central, e muito mais descentralizada, no nível regional (ao contrário do que se diz ao falar do predomínio acentuado de Lisboa: ele existe, como o de Paris em França, e pode ser limitado; mas pensar numa idílica “libertação de Lisboa", salvo no que toca às possibilidades económicas do Grande Porto, é revelar ignorância histórica, económica e geográfica do que é Portugal: quanto mais dividido estiver Portugal, mais a chave da nacionalidade, das dicotomias complementares ou dialécticas Norte-Sul, do campo-cidade, do progressismo-conservantismo, do poder militar, cultural, religioso, económico e administrativo passa, como sempre passou, por Lisboa, desde que Portugal se abriu ao exterior. Não foi em vão que se disse que Filipe II teria consolidado definitivamente a união Ibérica se tem feito de Lisboa a capital... da Península.
Algumas semelhanças existem, é certo, com a classe política salazarista, sobretudo se pensarmos na ascensão desta e não na sua queda ou nas falhadas tentativas de renovação marcelista: trata-se de uma classe política de extracção universitária, de origens sociais e regionais diversificadas. Mas existem múltiplas diferenças (veja-se as pinceladas dadas por Jaime Nogueira Pinto, em “Os anos do fim”), que desfavorecem a nova classe política em estabilidade, experiência, competência (por vezes), homogeneidade e coesão, mas a favorecem em juventude, espírito europeu, abertura a inovação, capacidade técnica e energia. Isoladas do povo, seleccionadas por rigorosos critérios de moralidade e rigor - isso estão uma e outra; mas a sociedade aberta em que vivemos é mais implacável, e ainda bem. Uma nota curiosa, notada por Múrias: a classe política actual é de "herdeiros de políticos» (são-no os líderes ou partidos portugueses, excepto Cunhal; não o era Salazar nem os seus principais colaboradores). Ponto marcado a favor das regras de selecção do Estado Novo.

2- É uma classe política, mais do que uma parcela da classe dirigente.
Admitindo que existem - com qualidades de maior ou menor mobilidade social – “classes dirigentes” em todas as sociedades indus¬triais, ditas modernas, a classe política portuguesa definiu-se mais como um grupo fechado e restrito que como uma parcela da classe dirigente. Na generalidade dos países - com as vantagens e inconvenien¬tes que isso tem - os elementos do escol político são, em simultâneo ou em momentos diferenciados da sua vida, elementos profissionalizados de outros grupos sociais dirigentes: gestores, universitários, profissionais qualificados. Entre nós, a dedicação exclusiva ao nobre trabalho de destruir o país na osição “todos os azimutes” ou de o desgovernar no governo levou a que praticamente os moinhos de palavras, intrigas e refeições, que são hoje os políticos “mediocrizados” só muito limitadamente tenham qualquer actividade profissional válida (excepto alguma advocacia de negócios, em que a actividade política “dá uma ajuda”.., ou lugares meramente nominais ganhos por in¬fluências).


3.° - É uma classe isolada e mal seleccionada.
É este um factor de isolamento de selecção negativa. De isolamento, pois a classe política vive entregue a si mesma, nas suas conversas e encontros, no isolamento de casas luxuosas, e nunca ou quase num vive concretamente a vida do cidadão comum, anda em transportes colectivos, anda pelo meio da rua, sente regularmente um local de trabalho colectivo ou um mercado. E selecção negativa, pois os melhores passam a desejar entregar-se a trabalhos concretos - e a política em Portugal tornou-se um misto de palavras e intrigas... E assim vão ficando os piores - como já estão e a confirmarem-se certas notícia que correm, ainda mais o será em tempos próximos.
Algumas consequências mais. A falta de diálogo que hoje existe entre as cúpulas partidárias resulta as mais das vezes, de tricas, questões e rivalidades puramente pessoais (se o público às vezes soubesse...). A mediocracia (expressão criada por Balzac para designar “ nova classe política burguesa”) É hoje pior que nunca: a partir de 25 de Abril tivemos políticos e técnicos capazes, que a revolução inutilizou; hoje temos... o que temos à vista de todos. E, se as coisas não muda¬rem, cairemos na identificação de políticos com incompetentes, particularmente má numa sociedade onde a selecção foi abalada.



4.° - É um grupo social profissinalizado, não ao serviço do Estado e do povo, mas das máquinas partidárias.
Requisito fundamental para que os políticos não sejam "classe política» é que não estejam profissionalipados em exclusividade. Os políticos não devem ser os donos e titulares de uma perniciosa burocracia partidária, os especialistas de «palavras gerais», que nem às ideias gerais conseguem chegar: devem sim ser pessoas capazes de administrar uma Câmara, um Governo regional, um Governo, de legislar ou integrar órgãos competentes de controlo do executivo e defesa dos cidadãos. A função política tem que ver com a fidelidade ao mandato recebido, com a responsabilidade perante o bem comum; e exige um apetrechamento concreto, nas diversas áreas em que o aparelho de Estado procura resolver problemas concretos dos cidadãos. E certo que importa um enquadramento geral, em prio¬ridades claras e numa linha de acção geral - é isso o que distingue o político da euforia de decisão sem critério, própria do simples tecnocrata; mas esse enquadramento existe para a acção competente, e não para a agitação inconsequente para governar ou candidatar-se ao Governo, não para o meio do partido». Mandar telegramas, ir a recepções, pronunciar banalidades e repetir inflamadas orações às massas (que, de tão fartas, vão escasseando), tudo isso é o acessório com o instrumental da actividade política. Daí que político sem experiência administrativa, sem capacidade de gestor e sem suficiente enquadramento cultural seja, só por isso, incapaz. Dirão os demagogos que o que importa é dizer o que sentem as massas. Disso nos livre Deus, que tais efeitos de "medium» serviram para justificar Hitler e tutti quanti, que se fizeram à custa dos seus dotes carismáticos.

Daqui concluo, portanto, que o político deve ter prestado provas fora da política, deve ter feito de válido alguma coisa - na empresa, na Administração, na Universidade, no Exército, em câmaras municipais. Não lhe basta que tenha intrigado para se promover junto das secretárias dos patrões dos partidos. Daqui concluo que o político poderá profissionalirar-se em tempos limitados, mas deve ter sempre outra profissão, com a independência e a altura necessária pelo prestígio profissional para não precisar o da política como de um "tacho” para viver. 0 prestígio social que acolheu lheu Nobre da Costa e, até certo ponto Mota Pinto resulta precisamente disso: sabe o povo que não são políticos profissionais, mas gente que tem a sua carreira profissional, e com êxito. A política não é um sucedâneo de subsídio de desemprego, nem uma maneira de ajudar a viverem melhor cábulas inflamados que antes da revolução tinham escasso êxito profissional. Todas as medidas concretas que limitem a profissionalização da politica, de que falava Jacques Julliard, contribuirão para que a democracia portuguesa tenha políticos prestigiados e acabarão de vez com a mediocracia. No início da revolução, tivemos, às vezes sem condições de acção, políticos com qualidades que foram abandonando para “írem à vida”: hoje, quase só veio à tona, nos diversos partidos, o rebotalho, dos incapazes profissionais, dos mestres da intriga, dos que vivem melhor de “ordenados de partido” do que da vida profissional. Daí, também, que seja fácil excitar a gula de outros incapazes ou ambiciosos, para lugares de deputados que, escolhidos em 1975 e 1976, ainda o foram por critérios de coragem e adesão aos programas dos partidos que certos neófitos repescados no oportunismo da “direita infiltrada” nem sequer garantem.
A profissionalização é, todavia, ainda pior por ocorrer ao serviço dos partidos e não do Estado. À força de querer evitar a pulverização partidária e prestigiar a instituição partidária, tão censurada pela crítica do Antigo Regime, a Constituição e as leis concentraram nela o quase exclusivo da representação política. A classe política é o pessoal da burocracia dominante dos partidos, donos do Estado e da nação: por isso tantos portugueses pensam deles hoje exactamente o que sempre ouviram de mal dizer deles antes do 25 de Abril. Os partidos tendem a usurpar o exclusivo da intervenção e do poder social - num “totalitarismo pluripartidário” de que bem falou o Prof. Vitorino Magalhães Godinho; apresentam¬se como leque fechado, forte, dos condicionamentos clubistas que criaram e dos financiamentos que em tempo de austeridade duvido muito se justificam. São máquinas que, internamente, praticam a an¬tidemocracia, tomadas por pequenos grupos de pressão, e que, a pretexto da prática totalitária do basismo e do culto de um chefe qual¬quer, manipulam a vontade dos próprios militantes e falseiam o resultado eleitoral. A máquina tem "senhores” - os escassos áulicos da corte do chefe, que dominam o máquina manipuladora - e “capatazes” - os quadros intermédios. Por vezes, chega a ter locutores, actores e figurantes - num espectáculo do Estado dominado pelo “star system” em que tudo vive em função da vedeta “vamp” cujo filme se quer lançar. Se houvesse eleições agora, o povo não escolheria deputados, nem projectos sociais: escolheria no fundo entre quatro ou cinco senhores. A oligarquia partidária atingiu em Portugal extremos de caricatura, em virtude da antidemocraticidade da vida interna dos partidos, da invasão partidária de tudo (da vida sindical à escolha de gestores de empresa); e é mais do que a “poliarquia electiva” de que falou Sartori, porque é uma verdadeira monarquia electiva legitimada pelo pseudobasismo, caricatura da democracia. Ora, concentrar assim os poderes de decisão é, perdoe-se mais uma citação, entrar mediocremente no caminho de algum dos inimigos da "sociedade aberta” que Karl Popper tão bem estudou; é, em suma, ser totalitário.
A profissionalização e a burocratização partidária dão razão à direita quando dizem que temos hoje em Portugal uma partidocracia, não uma democracia: se fecharmos os olhos à realidade, esta democracia morrerá de podre e bem podemos acordar estremunhados com o que não queremos. O nepotismo e a colocação de funcionários incompetentes e incapazes, ou o possível ocultar de escândalos relacionados com os tempos agitados do PREC, são disso sinal. Como sinal é a negação aos deputados da sua consciência, dignidade e responsabilidade pessoal, pela lei ou pela prática partidária: o País começou a percebê-lo quando o grupo parlamentar do PCP esperou por um telefonema de fora para saber como votar a questão de confiança de Dezembro. passado. Mas, porque todos os partidos se vão tornando PCP's imperfeitos, a pública desautorização dos grupos parlamentares, dando-lhes ordens sem diálogo em matérias da sua competência, desvalorizando o papel dos deputados em Congressos partidários, uma decisão na cúpula, ouvindo com surdo ouvido o grupo parlamentar, toma quase intolerável exercer em consciência a função de deputado. Por mim, penso que está a chegar ao limite da dignidade a capacidade de ser um moço de recados alheios, de locutor dos discursos de qualquer chefe ou burocracia partidária, do prescindir da própria consciência e dignidade para ser, não eleito do povo, mas mandarete teórico de alguns milhares de militantes partidários contro¬lados por máquinas centralizadas: as minorias partidárias falseiam assim o resultado da eleição, impedem o contacto do deputado com os eleitores (que não são, claro, as bases partidárias). Como se admirarão que o povo não sinta que os deputados não são representantes dele, pois são de facto servos da gleba dos senhores dos partidos? O prestígio da democracia impõe que se ponha cobro a isto de qualquer maneira. E leva a pensar: quem assim trata titulares de órgãos-de soberania, aplicaria o mesmo princípio aos membros de Governos designados por partidos: os ministros seriam também paus mandados dos directórios partidários (invocando as bases) e não responsáveis perante o país e as suas funções; e as decisões seriam tomadas nos directórios dos partidos dominantes, e não no Governo. Agora se percebe, afinal, por que recusam os partidos dialogar entre si: querem o poder todo. Irá o povo português consentir que quem devia representá-lo esqueça as responsabilidades de Estado - no Governo, na Assembleia, nas autarquias (onde também os partidos pretendem mandar em gestores e conseguem afastar alguns dos melhores) - e seja um mero ocupante à ordem de qualquer condotierismo partidário? Até quando veremos na televisão dirigentes partidários dizerem que “dão” ou “não dão” os seus militantes (até para actividades profissionais...), como se estivéssemos na feira a vender gado?



Publicado por josé 16:03:00  

1 Comment:

  1. Tonibler said...
    José,

    Desde o dia em que passou a ser impossível a quem não seja funcionário público, jota ou advogado rico exercer a política, o destino do país ficou traçado. Chamou-se lei das incompatibilidades. Hoje são todos compatíveis. Uma nódoa, mas são compatíveis....

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