O Burundi não é Aqui.


Na sessão comemorativa dos 25 anos de autonomia do Ministério Público (em 21 de Junho), o Presidente da República desferiu uma das mais contundentes ofensivas a esta magistratura, cujo papel ele já noutra ocasião – algo contraditoriamente –, reputou de «insubstituível».

Devendo o evento servir de pretexto para sua excelência repor um pouco os termos de um debate público inquinado – em que a dignificação da imagem da magistratura do Ministério Público e o que tem sido o histórico contributo para o efectivo avanço da tutela judicial dos direitos fundamentais podia ter servido de leit motiv –, preferiu repetir os anátemas já avançados noutras datas de má memória, como na celebração dos 50 anos da Associação Jurídica de Braga e na abertura do Ano Judicial, onde zurziu vigorosamente na «falta de lealdade processual» dos magistrados.

Omitindo deliberadamente os inestimáveis contributos que, na área dos direitos fundamentais, trouxeram homens como Laborinho Lúcio, Mário Torres, Guilherme da Fonseca, Artur Maurício, António Caeiro, Vítor Carmo, Henriques Gaspar, Irineu Cabral Barreto, Lopes Rocha, Artur Costa, Simas Santos, Borges Pinho, Sousa Fonte (para citar apenas os que física ou funcionalmente já não estão no Ministério Público) e muitos outros continuam a trazer, o Presidente da República optou por, injustamente, «passar mais um ralhete» a uma magistratura que não se deve amedrontar perante mais esta afronta, mesmo provinda do «mais alto magistrado».

A maioria dos magistrados do Ministério Público não tem que se rever – e não se revê –, no quadro demagogicamente enegrecido que o senhor presidente traçou, da suposta sistemática violação dos direitos fundamentais nos nossos tribunais.

Não que façamos um exercício de avaliação autista e auto-elogiosa do que tem sido a prestação dos órgãos de administração da Justiça. Muito pelo contrário, cremos que muitas das disfunções e bloqueios decorrem da irresponsabilidade e alheamento de sucessivos titulares de órgãos políticos no que toca à sua modernização e desenvolvimento.

Além disso, pensamos que nenhum órgão do Estado deverá estar acima do escrutínio dos demais.

Mas custa-nos, quando a crítica é infundada e motivada por razões pouco claras. Quem inadvertidamente tivesse ouvido sua excelência, decerto pensaria, com naturalidade, que se referia a um país como o Burundi, o Ruanda, o Congo, quiçá Angola. Mas não. A pátria que retratava era a sua: Portugal.

Disse ele, entre outras coisas...

Ora o último ano veio evidenciar como é frágil a nossa cultura dos direitos fundamentais e como os agentes da Justiça, sem excepção, esquecem, com demasiada frequência, a comunidade de valores essenciais que lhes cabe promover, e cedem, amiúde, a meras preocupações de defesa de estatuto e de posições relativas de poder.

«Demasiada frequência»? «Cedem, amiúde»? «Meras preocupações de estatuto e de posições relativas de poder»? «Agentes da Justiça, sem excepção»?

É este o veredicto. Sem apelo nem agravo.

O Presidente da República ficou próximo da humilhação mais soez. Porque se atreveu a fazê-lo quando o lugar e o momento eram o de uma celebração, não de um confronto (mesmo civilizado).

Mais uma vez, o P.R. não conseguiu afastar o espectro do processo Casa Pia e do envolvimento (justificado ou não) nele de amigos e correligionários seus.

Se há «cabala» ou «urdidura», porque não a procuram, antes, no seio do próprio PS? Francisco Assis foi sovado por apaniguados de F. Felgueiras, lembra-se? Ana Gomes insinuou que José Lamego era pago por uma companhia petrolífera, lembra-se? Narciso Miranda e Manuel Seabra trocaram mimos numa lota célebre antes da morte de Sousa Franco, lembra-se?

É mesmo preciso andar à procura de «cabalas e urdiduras» fora do PS?

O esquecimento propositado do contributo que os respeitados magistrados já atrás mencionados e muitos outros, que quotidianamente neles vêm um exemplo, ilustra o desprezo e o injusto «puxão de orelhas» que quis deixar claro.

Por último, argumentar com a necessidade de o Tribunal Constitucional se ter visto na necessidade de emitir juízos de inconstitucionalidade da interpretação de certas normas, para justificar a tal sistemática violação de direitos fundamentais, é de uma elementar desfaçatez.

O papel do TC não é justamente esse? Ou, dizendo isso, quer retirar-lhe a sua razão de ser?


Apetece perguntar: o presidente errou no discurso ou a entidade promotora é que errou no convidado?

mangadalpaca©


Publicado por Manuel 02:32:00  

5 Comments:

  1. josé said...
    Cá está o tipo de comentário que me apraz ler: seguro na escrita; raciocínio de corte a direito e implacável na lucidez; divertido qb.
    Apareça mais, caro Mano Pedro.

    His Excelency, devia ser o presidente de todos os portugueses, a saber, dos dez milhões que por cá andam e que trabalham, aprendem, ensinam, gozam reformas e ainda os muitos que nada fazem, mesmo que façam de conta.
    His Excelency, à semelhança de muitos outros, tem os dias e horas ocupados com agendas que lhes marcaram reuniões e encontros, viagens e estadias.
    Terá pouco tempo para reflectir, ler ou estudar.Por isso, é só ouvir. É um auditor com vozes escolhidas.
    Assim, a decisão já lhe advirá do reflexo condicionado de anos e anos a despachar " faça-se assim" ou "faça-se assado", conforme a idiossincrasia que se foi incrustando.
    Sendo dirigente político, há muitos anos, está habituado ao mando e o poder assim adquirido cedo se habitua a olhar para quem o mantém.
    No caso da Lídia Franco, é o poder mediático e do momento McLhuano, de alguns meses de fama por causa de umas...telenovelas! Isso afecta His Excelency, porque sim! Poderia lá ser o contrário! Então, a senhora aparecia todos os dias na TV e nas publicações gravitacioniais! COmo admitir que um presidente se preocupasse com os direitos individuais de arguidos sem eira nem beira, sem direito a foto em publicações lustrosas e postergasse os legítimos direitos à segurança de gente famosa que aparece nas capas e encartes?!!

    No caso do correligionário, dum lado, há umas vítimas de anos e anos de desinteresse e abandono pelos correligionários de partido e companheiros de classe ( política) e que foram alvo de abusos sucessivos e graves. Pouco lhe interessam, aparentemente, porque não aparecem na TV; não são figuras públicas; não têm poder de influência e por isso virtualmente não existem ou são relegados para existências virtuais.
    Se ainda por cima, os seus mais chegados correligionários lhe asseguram que são mentirosos compulsivos, como não acolher tão confortável teoria?

    Do outro lado, aparece o correligionário que chora em público, jurando a sua completa inocência, assegurando a sua verticalidade impoluta. Tendo sido ministro avalizado por His Excelency e tendo ambições comuns, como olvidá-las e esperar que o renegue, renegando os companheiros que o acolheram em plenas escadas da Assembleia, perante as tv´s e rádios rendidas à evidente inocência do dito?
    COmo esperar de His Excelency os parabéns e votos de felicidade a uma instituição que se atreveu a pôr em causa essas eminências de colunata e de sala alcatifada e que são acolhidos como heróis nacionais, apesar de indiciados por crimes gravíssimos?

    COmo dizia o Orwell, todos os porcos são iguais.
    josé said...
    A alegoria Orwelliana sobre o triunfo dos porcos, refere-se aos "animais" em geral...e era isso que deveria ter ficado escrito: que há uns mais iguais que outros!
    Gomez said...
    O Venerável Mangadalpaca tem razão em quase tudo. A alocução do PR é na verdade lamentável, como quase todas as que fez depois de “contaminado” pelo vírus Casa Pia. Em todo o caso – e como já aqui antes comentei - não creio que o MP se deva orgulhar de algumas das interpretações que de forma reiterada e generalizada vinha fazendo, com a conivência de uma boa parte dos magistrados judiciais e que foram objecto da censura do TC a propósito do caso Casa Pia. Demasiados magistrados, durante demasiado tempo, terão dado prevalência às conveniências da investigação/acusação, em relação à defesa da legalidade e de direitos fundamentais que lhes competia, em qualquer circunstância, promover. E isto também tem que ser dito. E não deve ser confundido com uma normal intervenção do TC num qualquer processo, para dirimir em última instância uma intrincada ou específica questão de eventual inconstitucionalidade. O eficaz exercício da acção penal é fundamental para a defesa do Estado de Direito e dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Constitui uma das mais nobres missões do MP, à qual muitos magistrados hipotecam, corajosa e abnegadamente, todas as suas capacidades, a sua vida pessoal ou até a saúde, quantas vezes com escasso reconhecimento e com a frustração de, a final, ficarem com a íntima convicção de que não se fez Justiça. Mas, ainda assim, num Estado que se quer de Direito, no exercício da acção penal não vale tudo - e em algumas matérias parecia que valia. É certo que Sexa o PR manifestou uma valoração diferente destas problemáticas depois da prisão do seu correlegionário Dr. Paulo Pedroso. E que as algumas das suas intervenções públicas não podem deixar de ser entendidas como inaceitáveis intromissões num processo criminal em curso. Mas era escusado ter dado a Sexa o PR alguns dos argumentos que agora vem esgrimir, com razão mas, ao que tudo indica, por más razões...
    josé said...
    Meu caro Gomez:

    Essa tão badalada e assinalada intervenção do TRibunal Constitucional, verificou-se concretamente em relação a quê?
    Pois...em relação ao facto de se ter de comunicar aos arguidos, logo após a detenção, dos factos que lhes são imputados. Muito bem! Agora, talvez fosse bom debulhar o ouriço do acórdão e da matéria sobre que se pronunciou. E principalmente tomar conhecimento dos factos concretos que foram levados ao Constitucional. Por exemplo, falar nos factos que terão sido imputados ao arguido Ritto, por todos os ofendidos.
    Falar em todos os nomes que lhe foram referidos e publicitá-los! Sim, porque a decisão do Constitucional manda relatar ao arguido tudo, tudinho que lhe é imputado pelos ofendidos...
    Sempre gostaria de ver se nesse caso o Constitucional se pronunciaria como pronunciou...

    Por outro lado, é fácil fazer demagogia com estas coisas ( note que não estou a acusar o meu amigo de o fazer, estou apenas a mencionar a possibilidade e o facto de alguns já o terem feito).O princípio parece básico e a violação dele grosseira.
    Mas tanto quanto me foi dado ler, não se passou nada disso. Os arguidos ficaram muito bem cientes do tipo de crimes e dos factos concretos que lhes eram imputados, caro GOmez! E a defesa, pelos vistos, não lhes adiantou por aí grande coisa.Ao dizer-se que o MP não deve usar todos os truques, está a fazer-se passar a mensagem de que o faz- e isso, quanto a mim, não corresponde minimamente à verdade.
    De resto, ao MP e polícias compete neste como noutros casos ( por exemplo corrupção), reconstituir factos. Torná-los aparentes aos olhos e ouvidos de quem estiver em julgamento.
    As regras que existem no processo penal português protegem muito mais os arguidos do que por exemplo as dos americanos ( e não quero voltar com isto à velha discussão), que permitem a validade plena de certas provas que aqui pura e simplesmente não são admissíveis, por serem da Inquisição.

    Perspectivas...que o Tribunal COnstitucional tem tomado conforme as épocas e as pessoas. É preciso não esquecer que o Código de Processo Penal tem dezassete anos! Só agora é que aparece a interpretação dada como inconstitucional?!! Só agora porquê?!!
    O Constitucional sofre do mesmo síndrome de His Excelency, parece-me bem. E as pessoas já entenderam isso há muito tempo.
    Há decisões para todos os gostos.

    A mais escandalosa de todas e que um dia distes porei online, é a da Leonor Beleza e o caso do hemofílicos. É uma vergonha, assinada por um tal Bravo Serra. Exactamente.
    Gomez said...
    Caro José:
    Apenas algumas clarificações, que isto de abordar questões complexas em comentários rápidos tem conhecidas limitações.
    Não conheço os detalhes do caso Casa Pia e como tal não o quero comentar especificamente.
    Creio que resultou implícito do meu anterior comentário o apreço que tenho, em geral, pelo desempenho da magistratura do MP e o meu desacordo genérico com as despropositadas afirmações de Sexa o PR. É com base nesse apreço que, enquanto cidadão, gostaria de ter visto o MP a bater-se por interpretações que tenho como correctas (e que foram perfilhadas pelo TC), no tocante ao chamado segredo interno e no que sirva de fundamento à aplicação de medidas de coacção. Estão em causa, nessa matéria, garantias básicas do direito de defesa e, não sendo o MP “parte”, sempre me custou a entender que o que tinha por elementar evidência fosse entendimento minoritário nas magistraturas. Como sabe não foi só agora e a propósito do caso Casa Pia que surgiu este juízo de inconstitucionalidade. Não foi sequer “inventado” para estes arguidos (embora o caso tenha proporcionado interessantíssimas “invenções” jurisprudenciais...). Em tempos já escrevi contra a “síndrome da grande descoberta” que alguns queriam construir em torno destas recentes decisões.
    Em abstracto (e apesar dos meus fracos conhecimentos e experiência destas matérias), estou em crer que a doutrina do TC é correcta, equilibrada e não põe sequer em causa a eficácia da investigação criminal.
    Nos casos concretos que referiu, pode até haver decisões aberrantes (ultimamente abundam...). Não estou em condições de saber. Compreendo a frustração e a revolta de quem convictamente assim pense.
    Em anotação à prosa brilhante do Mangadalpaca quis apenas registar que, o MP, como todos nós, não é perfeito e não está isento de críticas. Em algumas matérias particularmente sensíveis no domínio dos direitos fundamentais, vinha perfilhando e praticando reiteradamente interpretações julgadas inconstitucionais. Nessa medida, deu o “flanco” às críticas do PR. A generalização do PR em matéria de inobservância de direitos fundamentais foi abusiva – e até ofensiva. Não vale a pena, a meu ver, incorrer num “fundamentalismo” de sinal contrário, afirmando que tudo está e sempre esteve bem no exercício da acção penal pelo MP.
    Saudações cordiais do,

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