"Presumíveis Inocentes"

O Venerável Irmão Gandalf acordou mal disposto e vá de derrubar mais uma vaca sagrada, no caso a presunção de inocência. O seu coração, grande e franco, não deve estar a suportar os que, hipocritamente, ressalvam a presunção de inocência dos arguidos, ao mesmo tempo que os imolam em autos de fé televisionados, a forma suprema do moderno julgamento na praça pública. Ou a hipocrisia dos que, escudando-se na presunção de inocência, recusam tirar ilações que a ética política exigiria, mesmo com inocência presumida. Ou a hipocrisia ainda maior dos que apenas exigem tal tomada de posição aos seus adversários, dispensando-a, benignamente, quando estão em causa correligionários.

Até aqui tudo bem. Mas a veneranda ira vai mais longe. E Gandalf parece defender que a presunção de inocência é, no fundo, uma ficção. Salvo o muito apreço e estima fraternal que tenho pelo nosso Mago, não posso deixar de discordar (e nem ele me perdoaria que, em consciência, o não fizesse). Aqui vão pois, em jeito de contraditório, algumas modestas razões de discordância, em fatias de limianos comentários, improvisados à papo-seco.

Afirma Gandalf (bom título...) que os arguidos acusados ou pronunciados não poderão ser tidos, em bom rigor, como inocentes. Decerto, os magistrados que os acusam ou pronunciam os têm por quase-culpados e podem até sujeitá-los a prisão preventiva. O argumento do Venerável Gandalf pretende provar demais. A presunção de inocência consagrada na Constituição é uma trave-mestra do nosso Estado de Direito. Dela decorre que o arguido não tem de provar a sua inocência, cabe ao Estado demonstrar a sua culpabilidade sem margem para dúvidas. Decorre igualmente que, até ser proferida condenação transitada em julgado, o arguido, mesmo se acusado ou pronunciado, deve ser, efectivamente, considerado inocente, para todos os efeitos (e muitos efeitos daqui decorrem, como Gandalf sabe muito melhor que eu e seria estultícia estar a elencar).

Isto não preclude a aplicação de medidas de coacção (por ex. a prisão preventiva), com base numa concordância prática com outros valores constitucionalmente tutelados. Elas exigem, é certo, entre outros pressupostos, um juízo de probabilidade de culpa. Mas, para além de meramente probabilístico, tal juízo assenta em pressupostos e procedimentos menos exigentes que os que poderão fundar uma condenação. É pois um juízo inidóneo para alterar a presunção de inocência e instrumental, válido apenas para a decisão sobre a aplicação da medida de coacção, nada determinando quanto à decisão final do processo.

Quantos arguidos, presos preventivamente até, foram, a final, absolvidos sem margem para dúvidas quanto à sua inocência? Quantas vezes o próprio MP, que deduziu acusação, veio, a final, a requerer a absolvição do arguido, no cumprimento da missão que constitucionalmente lhe está cometida?

A presunção de inocência não é uma ficção hipócrita, mesmo havendo acusação, pronúncia ou prisão preventiva. É um princípio inquestionável e que deve ser pacificamente aceite e interiorizado por todos os cidadãos de uma democracia madura (nenhum dos quais está, aliás, ao abrigo de suspeitas infundadas ou denúncias caluniosas).

É certo que irrita ver aqueles que, intimamente, não conseguimos evitar suspeitar serem prováveis meliantes, alardearem em público a presunção de inocência que lhes assiste. Mas as regras do Estado de Direito são essas e não cabe à opinião pública julgar com base em palpites ou aparências, sob pena de arbítrio. Tem o cidadão conhecimento directo de factos ou provas que possam incriminar o arguido? Transmita-as à investigação. Tem, por ouvir dizer ou por palpite, a convicção pessoal de que o arguido é culpado? Aguarde serenamente a acção da justiça, que dentro das regras do “fair trial” que nos tirou da barbárie, decidirá, no momento certo, da culpa ou da inocência.

Para convicções apriorísticas de que os suspeitos são “bad people” já nos basta o Sr. Bush e o seu cárcere privado de Guantanamo.

Publicado por Gomez 19:08:00  

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