Mudar de vida

Confesso já, sem rebuço: sou admirador incondicional do trabalho musical de Júlio Pereira. Considero os LP´s Fernandinho vai ao vinho, de 1976 e Lisboémia, de 1978, a par, dois dos melhores trabalhos da música popular portuguesa, de sempre.

Tenho ouvido nos últimos dois meses, o Lisboémia ( tanto em mp3, como na gravação em cassete do LP original) e é raro o dia em que não me lembre de uma melodia, de uma letra, de um pequeno trecho musical desse LP, com mais de trinta anos. Já o escrevi, o LP merecia uma reedição em cd cuidado, sei lá!, em sacd ou coisa que o valha.

Comprei há dias o último trabalho de Júlio Pereira, Geografias, um álbum de temas instrumentais, com predomínio de bandolim. Ouvi-o três vezes e emprestei-o à minha filha. Já nem sinto vontade de o voltar a ouvir. E que quer isto dizer? Que o disco não presta? Que nenni!

O disco está aperfeiçoado, na técnica de execução e gravação. Tem um ou dois temas que prometem a abertura sonora, sobre as paisagens geográficas da região, mas o roteiro é inóspito e de terra batida, por vezes; outras, de asfalto betuminoso, com grande poder de absorção de humidades. Em resumo, Geografias, é um disco estéril e sem rumo, à moda de um virtuoso instrumental, à cata de fio condutor. É um disco semelhante a tantos outros, no universo da world music, até no jazz- rock, -se é que ainda há disso.

Tal como o embrulho do disco, a perfeição é muito plástica e falta a alma do erro e da imperfeição na execução, cuja metáfora poderia residir na beleza dos desenhos de Carlos Zíngaro, dos anos setenta, sem comparação com os vectores articulados do actual Photoshop, mas com a beleza das coisas simples e com alma.

Nas canções pop/rock, coladas à música portuguesa tradicional, dos dois LP´s citados, dos anos setenta, havia um discurso musical e poético coerente, embora discutível, no plano ideológico. Quanto à música, nem se discute. A qualidade é de alta cotação, assegurada pela manutenção no ouvido interno, ao longo dos anos.

Júlio Pereira tem já em carteira musical, vários discos, os últimos sempre de instrumentos, predominando as cordas. Depois do sucesso de Cavaquinho, logo no início dos oitenta, apenas dois anos depois de Lisboémia, esgotou-se a receita instrumental com Braguesa e Cadói, dos anos seguintes.

Confesso que abandonei a audição da produção seguinte, por desinteresse. E talvez não o tivesse feito se ouvisse novamente, nas décadas seguintes, o que ouvira na anterior. Não há voz nos discos de Júlio Pereira e no entanto a voz do instrumentalista é digna de realce nos registos médios e de timbre semelhante a Roy Harper. E nota-se no último, um deslize para a sonoridade já asséptica de um Pat Metheny.

Júlio Pereira é um grande artista perdido no pequeno meio musical português. Como outros, aliás ( e estou a lembrar-me de Moz Carrapa) . Ontem, Júlio Pereira, escreveu no Público um artigo de louvor a uma plataforma de produção de conteúdos virtuais,na Internet- o My Space. Profetiza-o, como o eldorado dos músicos e artistas que querem divulgar produtos e como prosélito, incita os pares à inscrição.

Para exemplo, apresento o seu espaço virtual na net, no seu endereço do myspace. Aí publicita os amigos que vai fazendo no lugar e transcende a faceta da amizade como destino último do seu espaço. Parece não apreciar a crítica real e sentida ao trabalho do artista, preferindo a louvaminha de quem idolatra.

Se assim for, é grande a pena, porque o trabalho do artista musical Júlio Pereira já nem sequer é só dele, mas de quem o compra, esperando e desejando o melhor, como é próprio de artista.

De outro ponto de vista menos musical e mais prosaico, torna-se curioso e susceptível de impressionar perplexos, ler a candura da publicidade ao MySpace, feita por um Júlio Pereira que nos anos setenta, cantava as delícias da utopia socialista ( “Nós devemos é fazer, o que acharmos e sem Estado. Isto não é obra de classes, mas de cada explorado”, verso da canção Rapsódia político-portuguesa, do Lp Fernandinho vai ao vinho, de 1976- mesmo em modo de rapsódia, resume um pouco o sentimento de época, das raízes da utopia) e ainda hoje , aparentemente, apoia activamente o ideário de um José Afonso. “Mudar de vida”, então, como canta José Mário Branco, outro incondicional da utopia? Vejamos:

O MySpace é o exemplo flagrante do capitalismo liberal e de sucesso, à americana: dois indivíduos de Los Angeles, ainda jovens, em 2003, andavam à procura de lugares na net para juntar amigos com interesses comuns e que pudessem partilhar gostos. Em vez de relacionar apenas informação, como nos sites habituais, procuravam uma plataforma estável para estender a ligação às pessoas, em convívio social.

Dessa ideia, nasceu o conceito: liberdade de todos confluírem num espaço comum, virtual, criando páginas personalizadas que trocam contactos e informações entre si, de vários modos: música, imagens, filmes e ideias. É este potencial que Júlio Pereira antecipa como catalizador dos anseios de artistas. E o MySpace apareceu para isso.

Tom Anderson e Chris DeWolfe inventaram o MySpace e em menos de dois anos o lugar cresceu exponencialmente e na ordem dos milhões de utilizadores.

Tanto que em 2005, suscitou a cobiça de um dos mais típicos capitalistas dos tempos correntes: Rupert Murdoch, o gigante da NewsCorp, que agrega a informação em forma de tablóide ( NYPost); também a de referência ( The Times e um futuro Wall Street Journal) e mesmo em formato televisivo( Fox news). Um dos Citizen Kane do séc.XXI, alcançou a misteriosa Rosebud e comprou em 2005, o MySpace aos seus criadores por um grande, grandecíssimo punhado de dólares. 580 milhões deles, porque o negócio sempre foi o dos números e o lucro poderá vir… da China.

Mesmo assim, o actual lugar de referência de Júlio Pereira, mantém o aspecto de lugar comum a todos os que vierem por bem, trazendo outro amigo também e livre de influências da NewsCorp de Murdoch. Por quanto tempo e com que significado? Ver-se-á.

Para já, a aposta reside em experimentar. Por mim, faço aqui o link e espero que Júlio Pereira arranje inspiração para criar outro Fernandinho ou percorrer outra Lisboémia. A de há trinta anos atrás precisa de um upgrade e pode haver quem escreva outro roteiro e o músico não se tenha esquecido dos acordes mágicos. Estou a ouvir ( em mp3) a segunda parte do tema sobre o Cais de Sodré em que se canta a Praça da Ribeira. É desta música que gosto, mesmo em tom de chula e a voz não envergonha nenhum cantor que se preze. Então porquê o silêncio da voz, nos discos das últimas décadas?

Imagens: capa do cd Fernandinho vai ao vinho; revista Wired de Julho 2006.

Publicado por josé 14:18:00  

3 Comments:

  1. MARIA said...
    Visitei o "space music" como sugerido e achei o espaço muito simpático e agradável.
    Como o é também este " post" , excepcionalmente bem escrito e melhor pensado, e demonstrar claramente a marca de excepcional qualidade que já se espera do Autor.
    Saudações.
    josé said...
    Obrigado. Para músicas e outras andanças, pode também passar por aqui
    MARIA said...
    Muito Obrigada.
    Bjo

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