Lisboémia, de Júlio Pereira

Na música popular portuguesa, há alguns discos que tendo saído no seu tempo, passaram na rádio, foram ouvidos e desapareceram dos escaparates das lojas, nunca mais sendo reeditados.
Alguns deles atingiram entretanto a dimensão mítica conferida pela raridade e a lembrança de quem os viu, ouviu e apreciou no seu tempo.
Um desses discos, é o LP Lisboémia, de Júlio Pereira.
Gravado e publicado pela EMI, em 1978, o Lp seguiu a mesma linha musical que o anterior – Fernandinho vai ao vinho – saído em 1976 e com o mesmo tipo de instrumentação e músicos.
Ambos beneficiam de um tratamento gráfico da capa, da autoria de Carlos Zíngaro que desenha ainda a dúzia de páginas do encarte interior de Lisboémia que inclui as letras das canções.
Em matéria estritamente musical, Lisboémia, está numa escala menor relativamente a Fernandinho, um monumento da música popular em Portugal de sempre.
Lisboémia tem no entanto uma vantagem nos textos das canções. Enquanto Fernandinho vai ao vinho, entornava o copo nas crónicas de costumes, Lisboémia, espraia-se pelo roteiro da cidade de então.
O primeiro tema, começa em Moscavide, num ritmo animado e tropical, a lembrar José Afonso, com predominância de instrumentos acústicos ( o disco é essencialmente acústico e com predomínio de instrumentos de corda)- “ao entrar por Moscavide, fiquei muito embasbacado: ver duzentas mil pessoas em viveiro enlatado”, é a letra do começo. Não muito auspiciosa na originalidade das rimas, cumpre bem logo a seguir, quando retrata o ambiente de Lisboa e do país que desertificou do interior para o litoral: “dei de caras com os Silva a lavar o carro à porta, velho artista albicastrense, com saudades de uma horta”.
De Moscavide, segue para Alvalade, numa letra estugada de desfile temporizado a compasso quaternário e desemboca na Praça do Chile e Inendente, com referências à “Portugália mais abaixo da cerveja e do petisco, quem é pobre no tremoço, quem é rico no marisco” e à vida fácil de algumas mulheres da zona, na voz de Eugénia Melo e Castro “ que eu também sei amar”…
Na rota seguinte, encontramo-nos numa autêntica marcha santantoninha, para apresentar Alfama, numa música ritmada a trombone tuba e trompete, com contraponto na concertina que ainda hoje, seria uma séria concorrente à marcha ganhadora do bairro popular.
A transição para o comércio do Rossio e a baixa, toa-se em acordeão e violino e menções aos “posters do Eanes, Sandokan e namorada emblemas do partido e retratos da tourada”. As vozes misturam-se nesta pequena rapsódia do comércio mesclado do Rossio, com destaque para José Mário Branco, Mário Viegas, Duarte Mendes e Shila.
A passagem para o Cais de Sodré dos cabarets manhosos, faz-se em ritmo sincopado e de vaudeville e aproximação jazzística do baixo de Paulo Godinho, antes de introduzir a melhor passagem do disco que é o antigo mercado perto do cais do Sodré. À voz de Júlio Pereira, acompanhada de guitarras acústicas, junta-se no refrão a sonoridade de coro de um grupo desaparecido: o GAC, grupo de acção cultural vozes na luta, expressão do clima de PREC ainda presente no disco, até na identidade dos próprios colaboradores, com destaque para José Mário Branco e Mário Viegas.
O Bairro Alto, toma a sonoridade de uma harmónica encostada a uma colagem de faducho lisboeta e entalada na narrativa em som de guitarra acústica e voz de Júlio Pereira, num registo de alta qualidade.
O banjo marca a subida da Avenida da Liberdade, e a entrada no Parque Mayer, na voz efeminada em falsete de Mário Viegas que evoca o travesti de outros tempos.
A zona das Avenidas Novas, do Saldanha-Entre-Campos, traça a introdução mais fraquinha do disco, que dura uns poucos segundos, antes de uma nova epifania instrumental e vocal, para vibrar com o apelo “p´lo saber a gente vai, pela luta nos ficamos, se um país está a dormir, somos nós que o acordamos”.
O tema que retrata o sítio de Sete Rios, Belém, Casal Ventoso acompanha-se quase em solo de guitarra acústica, não fora a pequena passagem sinfónica de transição para a segunda parte da canção contrapontada a harmómica, sempre nostálgica.
E é com a nostalgia que chega o último tema do disco. Lisboémia, resume em coro, mais uma vez do GAC, a mensagem da época:
Lisboémia pode ser ditado de quem espera sempre alcança, quem quer da vida quer a morte, faz virtude da esperança”.

Resta dizer que este disco antigo e desaparecido pode ser ouvido novamente em certos lugares selectos. Por exemplo, aqui.

E foi com a sonoridade do disco que escrevi o texto e concluo com uma menção sonora e dita bem alto: Lisboémia ,é um grande disco de Júlio Pereira que não me canso de ouvir nestas últimas semanas.
Para além de um hino à cidade de Lisboa, é uma obra prima da música popular portuguesa, a par com o disco anterior.
A temática de roteiro urbano, deixa alguma nostalgia de uma Lisboa em parte desaparecida ( Cabo Ruivo, o tema de introdução) e em parte ultrapassada ( os retornados do Rossio e vendedores de tudo). A música, porém, marca um tempo e uma época de ouro da música popular portuguesa e Lisboémia vale bem a pena uma reedição em cd.


Publicado por josé 22:42:00  

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