Entrevista do Professor Medina Carreira a "A Capital"


  • A Capital - No seu estudo «O Estado à deriva», onde faz um diagnóstico à crise financeira que o País atravessa, diz que as contas públicas portuguesas sofreram a maior «deterioração» entre os países da União Europeia a 15 entre 1990 e 2002. Que razões originaram essa situação?

  • Henrique Medina Carreira - As despesas do Estado têm subido mais que as receitas fiscais. Isto é, gastou-se sempre muito acima do que se arrecadou. Entre 1990 e 2002, os impostos cobriram pouco mais de metade do aumento das despesas primárias.

  • A Capital - A que despesas se refere?

  • HMC - Todos os dispêndios feitos com salários, pensões, subsídios, equipamentos, obras, etc., pelas chamadas Administrações Públicas: a Administração Central, a Local e a Segurança Social.

  • A Capital - O aumento dos encargos com a chamada «máquina estatal» foi uma das causas que originou a actual crise?

  • HMC - O aumento excessivo, sim. Apenas 55 por cento desse aumento das despesas públicas primárias foram financiados pelo acréscimo dos impostos. Caso único na UE/15. Um absurdo de que nenhum outro país se aproximou, sequer.

  • A Capital - Não é uma aspiração legítima que os funcionários do Estado tenham salários que lhes permitam fazer face à subida do custo de vida?

  • HMC - É uma aspiração muitíssimo legítima. O problema é outro. A fracção da produção anual de riqueza criada pelos portugueses (o Pib), destinada ao “pessoal público”, tem aumentado sempre: 9 por cento em 1980, 11,8 por cento em 1990 e 15 por cento em 2000. Logo, a parte do produto que resta para os outros portugueses tem sempre diminuído, sem qualquer fundamento conhecido. Acresce que Portugal não pode continuar a ser o 17.º país da UE/25 a “produzir” riqueza e o 3.º a pagar ao “pessoal público”. Esta é uma gravíssima questão da nossa despesa pública. Quando se sentencia sobre finanças públicas, sem reparar nestes pequenos pormenores, desconhece-se o argumento inexorável que emerge das realidades e não dos preconceitos.

  • A Capital - Defende o congelamento dos salários e pensões do pessoal público, político e administrativo?

  • HMC - Defendo o seguinte: aumentos anuais equivalentes à verdadeira taxa de inflação. Portanto, sem perda do poder de compra. Alteração deste regime logo que o peso dos “salários públicos” atinja a média da UE/15, na ordem dos 12 por cento do produto (15% em 2000). Mesmo assim, o “pessoal público” ficaria com várias outras vantagens, de que ninguém fala e que importa não esquecer.

  • A Capital - Se o sistema de pensões do pessoal público, político e administrativo tem um peso tão grande nas Contas do Estado, como inverter essa situação?

  • HMC - Modificando os critérios políticos fixados na lei, nos bons e velhos tempos. Alguém percebe e aceita que a pensão mensal média do “pessoal público” fosse de 877 euros em 2000 e aumentasse em termos reais 7,5% cada ano, enquanto a da Segurança Social era de 205 euros e crescia à taxa de 2,8%? Por vezes, os que recebem a primeira pensão reclamam mais “justiça social”, mas distraidamente não revelam a verdade sobre a Caixa de Aposentações aos que auferem a segunda pensão, paga pela Segurança Social. Começa-se a fazer “justiça social”, desde logo, a favor dos da casa pública, e fala-se depois alto para que ninguém perceba o que se passa. Um Estado e dois sistemas.

  • A Capital - Na sua perspectiva, a grandeza numérica dos que estão dependentes do Estado cria maiores desigualdades sociais?

  • HMC - Era diferente quando o Estado tinha 100 mil pensionistas. Agora, tem mais de três milhões, além dos 780 mil funcionários públicos. As crises financeiras do Estado comportam hoje riscos e consequências sociais preocupantes. Não percebo a tranquilidade dos mais responsáveis.

  • A Capital - Para mudar este estado de coisas nas finanças públicas é necessário mexer em todas as áreas do sector estatal?

  • HMC - Em algumas áreas é essencial. Porém, sem antes encontrar as causas profundas do “desastre” orçamental a que chegámos, não haverá soluções estabilizáveis para o problema, nem as forças políticas podem realizar qualquer acordo sério de regime sobre as contas públicas. Acho surpreendente que se tenha fugido à elaboração de um estudo, por quem sabe e é fiável, tendente a esclarecer, definitivamente, a nossa situação. Porque “pensar” em finanças públicas apenas com base em opiniões e sem contas conhecidas e detalhadas, já nem na minha terra!

  • A Capital - Desde que ano está a economia portuguesa em queda?

  • HMC - A economia portuguesa está em desaceleração constante desde o início de 1999. Há quase cinco anos. Não foi certamente por acaso que o engenheiro António Guterres abandonou o Governo em 2001. Já não sabia o que fazer para inflectir a tendência. Em meados dos noventa os juros começaram a caír e, nessa altura, as pessoas puderam comprar casas, automóveis, electrodomésticos... Com um grande entusiasmo despesista, a economia cresceu 4 por cento, durante quatro anos. Quando, em 1999, já não havia capacidade de endividamento a fúria consumista caiu. E a economia desacelerou. Se hoje se repetisse o fenómeno dos juros e do consumo público, repetir-se-ia a queda iniciada em 1999.

  • A Capital - O problema do endividamento acabou depois por ter reflexos na saúde da economia do País...

  • HMC - O País continua com os agentes económicos endividados. O consumo baixou, o investimento também, e a economia não cresce.

  • A Capital - Quando no «Estado à deriva» o senhor diz que houve um «disfarce» dos compromissos estatais à custa da «diminuição do peso dos encargos com juros», a que está a referir-se?

  • HMC - O Estado pede dinheiro emprestado e fica a dever aos credores. Como qualquer devedor, terá de pagar os juros. Convém então não produzir défices excessivos, que vão gerar crescentes encargos financeiros no futuro. E porque o “envelhecimento demográfico” é já um inevitável pesadelo financeiro, é essencial evitar os défices altos e o crescimento da dívida pública. Uma das razões, fundamentadas, de Manuela Ferreira Leite.

  • A Capital - De que forma permitiu essa medida «disfarçar» o agravamento de outros compromissos financeiros do Estado?

  • HMC - Os encargos com os juros baixaram muito na segunda metade dos anos noventa, como todos sabemos. Isso possibilitou também uma grande redução das despesas públicas com os juros, “poupança” que foi aproveitada para gastar de outro modo. Assim se “disfarçou” a irresponsável assunção de diversos outros compromissos públicos e se perdeu uma oportunidade única para diminuir drasticamente o défice. Quando os juros deixaram de baixar, as consequências ficaram claras e estão à vista. Só alguns, com teimosia e irresponsabilidade, não quiseram ainda perceber o essencial do que ocorreu e a origem de muitas das dificuldades de agora, com raízes nos anos noventa.

  • A Capital - Mas todo este problema resulta também da globalização da economia e do facto de hoje estarmos muito dependentes do exterior. Como é que exemplificaria essa situação?

  • HMC - Antigamente, quando o Estado gastava mais 100 contos, uma grande parte desse valor era utilizado em consumo de bens produzidos pelas nossas empresas. Assim se faziam mais sapatos, se produziam mais hortaliças, se pescava mais, se construía mais ... e o dispêndio ficava cá dentro. Hoje, quando há mais 1000 euros a circular, as pessoas vão comprar alimentos que vêm de Espanha, automóveis que vêm da Alemanha ou de França, televisores que vêm da China, laranjas que vêm de Israel... Como exportamos pouco e importamos muito, ao fim de poucos anos o País fica estrangulado com os nossos gastos. Por isso, as políticas que apostam na resolução do crescimento português com a despesa pública e a procura interna vão, mais tarde ou mais cedo, esbarrar no desequilíbrio da balança externa.

  • A Capital - Problema que se agrava porque a economia mundial também não está em grande forma.

  • HMC - E não é fácil inverter esta tendência. A economia alemã estagna, a francesa está pouco menos que mal. A França e a Alemanha são os dois grandes «motores» da Europa. Em conjunto, representam quase metade da economia da União Europeia a 15. Enquanto não houver aí uma viragem, vamos ter os efeitos negativos da condicionante externa. Durante anos, vamos viver com uma economia débil. Os responsáveis, em vez de dizerem isto e explicarem porquê, procuram convencer exactamente do contrário. Deste modo, os portugueses nunca estarão preparados para enfrentar as pesadas e demoradas consequências do nosso atraso.

  • A Capital - Mas quando é que vai ser possível sair da actual crise?

  • HMC - Alguma coisa melhorará em função da economia internacional. Mas restará sempre o nosso atraso relativo, cada vez maior no contexto europeu. Se não mudarmos muita coisa e depressa, ficaremos a estagnar porque, passada a má conjuntura, restará ainda a nossa incapacidade, que é estrutural.

  • A Capital - Vamos ter «O Estado à deriva» eternamente?

  • HMC - Não há problemas insolúveis. Mas, quanto mais tempo demorar a sua resolução, piores os danos produzidos. Finalmente, parece que o Ministro das Finanças vai nomear um grupo de técnicos qualificados, para fazer a projecção, para a próxima década, das contas públicas portuguesas. Li isso num jornal. É preciso conhecer bem a realidade portuguesa para, com rigor, aplicar as soluções. Com efeito, só a partir daí cada força partidária terá as bases indispensáveis e toda a legitimidade para fazer a sua proposta política com vista à resolução dos problemas.

  • A Capital - Fala-se muito num possível pacto de regime, a estabelecer entre os partidos, que permita congregar esforços na solução dos problemas do País. Isso seria desejável?

  • HMC - O Governo e as forças que o apoiam pensam que a boa fórmula consiste em contrair as despesas públicas e em não deixar que continuem a crescer de forma desmesurada. Mas o PS parece que pensa o contrário, que é necessário gastar mais, investir mais e ter défices superiores a 5 por cento. Assim, não é possível colocar estas duas forças de acordo, porque não partem de um exame objectivo e inequívoco da nossa realidade e das suas pesadas condicionantes. É inútil propor pactos de regime, assentes na ignorância fáctica actual.

  • A Capital - O ministro das Finanças faz bem em cortar determinados benefícios fiscais do IRS, como os PPR?

  • HMC - Há muitos anos que estes benefícios, e outros, se não justificam. Não se busca o aforro, apenas o ganho fiscal. É a classe média alta que dispõe de meios para beneficiar com os PP’s. A restante, não. O que vamos escutando vem quase sempre dos que perdem dinheiro e dos que fazem oposição por vício. Agora defende-se a classe média alta!

  • A Capital - É ou não verdade que será a classe média, uma vez mais, a ser penalizada?

  • HMC - É, mas a média alta. Peçam estatísticas ao Ministério das Finanças e perceberão o que se passa.

  • A Capital - Que opinião tem do actual Governo de Pedro Santana Lopes?

  • HMC - Só tem dois meses e no Verão. Desde já, porém, há aspectos que se evidenciam: é muito desigual, em qualidade. Revela uma completa descoordenação. Pensa ainda que é melhor “comunicar” do que “governar”. O primeiro-ministro que, pelo seu estatuto, raramente deveria falar, intervém com excessiva frequência. Depois, esclarece, rectifica e corrige. A comunicação social anda entusiasmada, porque ele produz notícias. A sociedade desconfia e está inquieta. Se o chefe do Governo persistir não surpreenderá que a legislatura seja abreviada. E o PS já tem um secretário-geral eleito, o que não acontecia há três meses.

  • A Capital - E que expectativas tem relativamente ao engenheiro Sócrates, o novo secretário-geral do PS?

  • HMC - Era urgente e indispensável que o PS escolhesse uma outra e melhor direcção. Mas se José Sócrates não começar por entender bem o decadente estado do País, as razões profundas da situação, os equívocos económicos e financeiros de 1995/2002, os actuais limites do poder público face às economias abertas, a efectiva ausência de reais competências dos Governos europeus, receio a hipótese de uma nova legislatura curta e fracassada. Os portugueses pensam que são o que não são e é urgente que alguém responsável lhes diga isso mesmo. E o socialismo democrático é particularmente apto para “redistribuir”, mas movimenta-se muito mal numa economia que cresce 1 ou 1,5 por cento. Se José Sócrates meditar muito sobre isto, e tirar as consequências adequadas, poderá resistir melhor. Se pensar no regresso à “receita” e aos excessos de 1995/2002, irá, provavelmente, ter uma decepção. Ao contrário do que se possa pensar, o nosso problema não é o PEC, nem a “pouca” (!) despesa pública (47% do Pib), nem o “pequeno” (!) défice de 5 por cento. É outro e muito mais sério.

  • A Capital - Se o engenheiro Sócrates chegar a primeiro-ministro também prevê que o seu governo não seja duradouro?

  • HMC - Qualquer pessoa que hoje em dia chefie um Governo em Portugal, sem assentar as suas políticas no conhecimento competente e rigoroso da realidade, vai falhar. Não foi por acaso que Guterres saiu. Não foi por acaso que Barroso saiu. Não será por acaso se o actual Primeiro-Ministro sair mesmo antes de 2006. Nem será por acaso se, com o seguinte, suceder o mesmo. “Redistribuir” sem “produzir” é coisa de que só nós nos lembramos.

  • A Capital - Por que razão sucede isso?

  • HMC - Como dizem os espanhóis, porque vêm com “ganas” de mostrar trabalho e “dar” a todos dinheiro que não existe. A realidade não o consente. Exagera-se e foge-se depois. Tudo porque quando vão governar não têm um conhecimento seguro das realidades. Prometem antes ... e assustam-se depois.

Publicado por Manuel 13:35:00  

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