Os abancados do costume
sábado, outubro 18, 2008
Sobre o Orçamento de Estado deste ano, e algumas das suas rubricas particulares, foram já produzidos alguns artigos e crónicas de opinião.
No ano passado, por esta altura, a discussão, fazia-se do mesmo modo.
Por exemplo, quanto ao montante que o Estado-Governo, se propõe gastar, por conta de pareceres, estudos e projectos ( sim, projectos técnicos em outsourcing), este ano, a verba disponível, baixou, cerca de 22 milhões de euros.
Este ano, de crise, o Governo vai gastar, em vez dos 190,3 milhões, uma módica soma de 167,7 milhões. Um grande sacrifício para alguns gabinetes privados que vão ter de apertar o cinto.
Mas, atenção! O Governo, apesar desse corte substancial, vai gastar cerca de 102 milhões de euros, em "trabalhos especializados" de arquitectura e engenharia de maior complexidade ( as obras faraónicas programadas, certamente).
Sobre este assunto que é candente, mas sem emenda alguma do Governo, vale a pena reproduzir um texto do ano passado, escrito por um jurista, com nome, e portanto insuspeito de cobardia anónima ou de aleivosia caluniosa e relapsa, apanágio dos blogs do submundo que se dedicam a repisar estas coisas e que certos governantes e sus muchachos execram, à náusea.
Vou reproduzir, aproximadamente, o texto escrito o ano passado, neste blog, sobre o assunto que permite verificar o seguinte: estes governantes estão-se nas tintas, completamente, para o que escrevem sobre eles e de um ano para o outro, não ganharam um pingo de vergonha sequer, neste sistema que João Cravinho, já definiu como deve ser, apontando ao coração do Estado, ou seja, ao Executivo, a raiz da corrupção.
O que o ano passado se escreveu em tom de escândalo sobre esta parecerística de encomenda e recorte delapidador, adiantou nada, para este ano. Zero. Antes pelo contrário, a putativa vergonha que deveriam ganhar, nem sequer teve o mais leve afloramento de contenção, a não ser nos números das contas e verbas, para compor o ramalhete da distribuição.
Assim, precisamente aqui, num local insuspeito, subscrito por um advogado- Carlos Antunes- de uma sociedade de advogados-a Simmons & Simmons Rebelo de Sousa, fica , integralmente, o retrato da nossa miséria. Que é moral, intelectual, de carácter, de qualidade e de competência. E escrito o ano passado.
Éramos, no ano passado e reforçamos este ano, a característica de Estado de opereta, em que elegemos perfeitos diletantes que pelos vistos, não pescam um boi ( Medina Carreira, eufemisticamente, disse o mesmo, na entrevista a Mário Crespo, há uns dias) daquilo que supostamente deveriam perceber e se entretêm a mandar dinheiro borda fora, para alimentar um mercado abancado à mesa dos Orçamentos de Estado.
O Estado Administração, o Governo, particularmente, tem um pequeno exército de funcionários, assessores, juristas, e entendidos nestas matérias. Porventura, são às centenas; porventura custam milhões. De pouco ou nada valem, neste caso, porque o saber técnico ou o parecer encomiástico ou encobridor, se vai encomendar a firmas. De advogados principalmente. De advogados e profissionais liberais que depois escrevem nos jornais, aparecem e círculos de tv ou rádio e de maneira alguma poderiam denunciar, cuspindo, neste esquema de sopa aos ricos ou remediados.
Ainda assim, e como se comprova mais uma vez este ano, com mais de 160 milhões de euros para torrar com estes remediados da advocacia e profissões liberais a condizer ( é comparar com a verba de 100 milhões de euros que custa aproximadamente, o RSI...) a parecerística de encomenda, tem futuro assegurado.
Nesta delapidação de recursos públicos, torna-se claro que esta história dos pareceres encomendados às luminárias do costume, são um escândalo. Que nunca veremos denunciado em qualquer causa nossa ou quadratura. Et pour cause...
Aqui fica o artigo em causa, do ano passado e sem necessidade alguma de mudar vírgulas ou palavras. Basta um pequeno esforço de imaginação, para entender as mudanças nos nomes e a dança das cadeiras e bancos corridos que por aí andam, a medrarem à custa desta pouca-vergonha.
O mercado dos pareceres e dos estudos e a corrupção
No Orçamento de Estado para 2008, se a regra ao nível da despesa com o pessoal é de alguma contenção, já o montante previsto para a prestação de serviços de consultadoria provenientes do exterior dispara, revelando uma subida surpreendente.
Efectivamente, para o ano de 2008, no subsector Estado e nos serviços e fundos autónomos o governo decidiu reservar 190,3 milhões de euros para a rubrica «estudos, pareceres, projectos e consultadoria» ou «outros trabalhos especializados», valor que representa um acréscimo face ao orçamentado em 2007 de 63,5%, aumento que se eleva para 76,1% se nos ativermos apenas aos serviços sem autonomia financeira.
A este propósito, será conveniente relembrar a recente notícia de que o governo remeteu nada menos do que cinco (!) pareceres subscritos por professores de Direito Económico/ Fiscal ao Tribunal Constitucional, que tinha sido chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da Lei de Finanças Locais, aprovada pelo Parlamento e que o presidente da República; submeteu à apreciação do Tribunal Constitucional antes da sua promulgação, vindo posteriormente a saber-se que cada um desses pareceres custou 30.000,00 euros ao erário público (isto é, aos cidadãos contribuintes), sendo que numa das últimas edições da revista «Visão» esta realçava quão profícua é a actividade dos pareceres jurídicos, cuja remuneração unitária se situa entre 10.000 e os 75.000 euros, ao ponto de um ilustre fiscalista (Saldanha Sanches) ser acusado de que o seu chumbo nas provas para professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa se devia ao interesse de alguns membros do júri de, por essa via, tentarem impedir o seu acesso ao «mercado dos pareceres».
Afinal, o que são e para que servem os pareceres e os estudos?
A localização do novo aeroporto serve de exemplo perfeito para ilustrar a irrelevância dos mesmos – discute-se a necessidade de uma nova infra-estrutura aeroportuária há mais de 30 anos, mas é nas vésperas da «decisão política» que os estudos de universitários e técnicos, antes calados vá-se lá saber por quê, encontraram novo fôlego e dinheiro para, num par de meses, descobrirem e aparecerem a defender milagrosas soluções que em mais de três décadas nunca ninguém descortinou. O que nos ensinaram estes novos estudos sobre a localização do novo aeroporto? Estamos mais bem informados? Claramente que não. Em vez de darem respostas, enchem-nos de dúvidas, tentando em primeiro lugar destruir os outros estudos, impossibilitando que a decisão final seja tomada de forma minimamente racional e consensual.
A importância de tais estudos e pareceres resulta, assim, apenas de terem conseguido gerar um «mercado original, não de criação de valor, mas de mera troca de dinheiros públicos» que influencia decisivamente as relações entre governantes e dos autores de tais estudos, funcionando num primeiro momento como defesa das tomadas de decisão dos políticos no exercício de funções governamentais e, por outro, na respectiva derresponsabilização quando as opções se revelem erradas.
Ou seja, a decisão governamental que se tem por eminentemente «política» e não é, por isso mesmo, «neutra» (por alguma razão a legitimidade dos governantes assenta no voto em eleições) passa a subordinar-se a meros critérios de pretensas tecnicidade, imparcialidade e independência.
Sabe-se como tudo isto funciona – o governante, porque tem total liberdade de escolha (não é certamente por acaso que o novo bastonário da Ordem dos Advogados, António Marinho Pinto, veio defender «a realização de concursos públicos para a contratação pelo Estado de serviços de advocacia» como forma de pôr cobro a «situações de promiscuidade entre o poder político e alguns escritórios de advogados» – entrevista ao «Público» de 09.12.07), começa por comprar a imparcialidade, a independência e a tecnicidade de um ou mais «juristas, economistas ou engenheiros ilustres» (sim, tudo isto, tecnicidade, imparcialidade e independência também estão à venda, como se pode comprovar pelo estudo da Confederação da Indústria Portuguesa, CIP, sobre a localização do novo aeroporto, que defende que toda a população de Cascais, de Sintra, de Lisboa e da margem direita do Tejo atravesse o rio para chegar ao aeroporto, ter tido como um dos financiadores a empresa que detém o monopólio das pontes sobre esse rio). Esses «juristas, economistas ou engenheiros ilustres», a troco dos elevados montantes auferidos, predispõem-se a receber os recados daqueles e a estudar e a apresentar a solução formatada à decisão já pré-determinada (paradigmático do que acabo de afirmar é o caso do estudo de sustentabilidade do Sistema Nacional de Saúde, SNS, encomendado pelo actual titular da pasta da Saúde que, entre outras medidas, propôs o fim da ADSE, e cujo presidente da comissão de peritos autora do referido estudo, quando questionado sobre o fim da ADSE trazer para o SNS 1,3 milhões de portugueses, o que deixaria debilitado o sector privado dependente de convenções, e sobre se o SNS teria capacidade para dar resposta ao acréscimo destes utentes, teve a suprema lata de responder «nós não estudamos até ao fim todas as consequências das medidas, nomeadamente das implicações financeiras, que sugerimos»).
Por fim, o último elo da cadeia deste mercado funciona quando os governantes deixam o exercício das respectivas funções, ao encontrarem de imediato emprego nas sociedades de advogados, gabinetes de engenharia e empresas a quem anteriormente adjudicaram tais estudos e pareceres.
Os governantes começam por ser eleitos pelo voto dos cidadãos em eleições suportadas financeiramente por estes, posteriormente os mesmos cidadãos enquanto contribuintes pagam os estudos e pareceres que sustentam a decisão política dos ditos governantes, para finalmente estes, através do «abuso de poder», do «compadrio» e do «tráfico de influências» transferirem, por via desse mercado, dinheiros públicos para a órbita dos privados, sem qualquer poder de escrutínio por parte dos cidadãos-contribuintes.
Se isto não é «corrupção no sentido de subtracção de dinheiros do Estado em favor de privados», então já não sei o que é corrupção.
A questão é que em Portugal não existe um Estado independente do bloco central da governação (PS e PSD) e muito menos dos negócios que o apoiam e sustentam: da banca, da energia e da construção civil às grandes empresas de consultoria e gestão, de engenharia e projectos, e às sociedades de advogados.
Publicado por josé 17:03:00