A Justiça em editorial

O que é que uma pessoa que não tem dinheiro nem poder, que depende exclusivamente das polícia, do Ministério Público e dos tribunais, faz quando tem um problema? Perguntem a Baltazar Nunes, pai da “pequena” Esmeralda. Ou melhor, não perguntem; esta é capaz de não ser a melhor altura tendo em conta que há dias foi tomada uma decisão de um tribunal que não adianta nada e atrasa tudo.
Este longo processo mostra porque é que a justiça portuguesa não é justiça. Mas é muito portuguesa. Esmeralda nasceu a 12 de Fevereiro de 2002 e foi entregue pela mãe, à margem da lei, ao sargento Luís Gomes a 28 de Maio. A 13 de Julho de 2004 o tribunal decidiu atribuir o poder paternal ao pai biológico – há quatro anos, quando Esmeralda tinha apenas 2. Desde essa altura, o Estado não conseguiu fazer uma coisa básica: obrigar um sargento da GNR a cumprir uma decisão judicial. (…) Os juízes decidiram mais uma vez que a criança deveria ser entregue ao pai biológico. Mas permitiram que todo o processo se atrasasse novamente.
A última decisão foi de adiar a entrega da criança por mais 90 dias, o que deu tempo à mãe biológica de Esmeralda para pedir ao tribunal o exercício do poder paternal, com o objectivo confesso de depois entregar a filha a Luís Gomes. Esta semana o tribunal aceitou apreciar esse pedido.. São mais 15 dias para alegações e, depois, mais alguns para a abertura de um novo inquérito pela segurança social que vai avaliar as condições económicas das duas famílias-um inquérito igual a outro que já foi feito há anos pelas mesmas razões, pelas mesmas entidades, às mesmas pessoas e que se presume que tenha os mesmos resultados.
Por incompetência do Estado, Esmeralda entrou neste processo aos 2 anos e continua metida lá dentro aos 6- o “superior interesse da criança”, neste caso, é esperar.
Portanto, o que é que uma pessoa faz quando está dependente de uma decisão da justiça? O sargento Luís Gomes sempre soube a resposta e Baltazar Nunes de certeza que já aprendeu. É muito simples: ou desiste ou foge.

Este editorial da revista Sábado, merece um comentário alargado. A essência da tese editorial da Sábado é que a Justiça não funciona e não resolveu este, tal como não resolve outros casos semelhantes.
A pergunta que se engatilha a seguir, é do mesmo teor:
Poderia a Justiça, (compreendendo neste termo, os tribunais, stricto sensu), resolver este problema concreto, aliás semelhante a outros que não são alvo da atenção mediática?
Factos, apontados no editorial:
A pequena foi entregue pela mãe biológica, 3 meses depois de nascer, à revelia do pai.
Este logrou obter uma decisão da Justiça, favorável à sua pretensão em obter a guarda da menor, em 13 de Julho de 2004, dois anos depois do nascimento da menor.
Nesta altura, a menor deveria ter sido entregue pela família de acolhimento que a pretendia para adopção, à revelia da vontade do pai biológico. Luís Gomes e mulher, não entregaram a menor, fugiram e ocultaram a mesma, esquivando-se constantemente à acção da Justiça, lato sensu. Por causa disso, a Justiça dos tribunais actuou e submeteu o relapso, a julgamento por rapto de menor.
É nesta fase que deverá ser apreciada actuação da Justiça, lato sensu, incluindo, por isso os órgãos de polícia e demais instâncias de serviço social, incluindo a comunidade. Nesta fase, o interesse da menor, cingia-se a ficar com aquele que tinha o poder paternal e nunca desistiu de o ter de facto: o pai biológico.
Se isso tivesse acontecido, ou seja, se o sargento Luís Gomes, fosse efectivamente encontrado, e a menor recuperada, teria havido a história que se seguiu e os problemas subsequentes? Não, de todo.
Então, para se poder escrever que a Justiça falhou neste caso, é preciso saber o que fez a Justiça lato sensu, ou seja, o que fizeram as polícias que foram no encalço de Luís Gomes e mulher, para recuperarem a menor e o que fizeram as pessoas que em concreto lidaram com o problema.

Como e porquê, não conseguiram descobrir onde esta se encontrava e todo o enquadramento que se encontra ainda obscuro, neste procedimento notoriamente falhado e omissivamente suspeito, porque revelador de encobrimentos e favorecimentos pessoais, que impediram de facto, a Justiça stricto sensu de actuar.
É preciso saber, como é que os tribunais funcionaram neste caso, em que o tempo passava e era precioso agir, em todos os dias que passavam. E é preciso saber, como foi possível a um sargento do Exército, furtar-se à acção da Justiça stricto sensu e se esta tinha meios para actuar de modo diferente do que o fez.
Para se poder dizer agora, que a Justiça portuguesa não é justiça, será preciso recuar a esse tempo e perceber, como é que a Justiça falhou aí, nesses meses e anos cruciais para o destino de Esmeralda.
Uma coisa, sabe-se já: A partir de certo momento, a Justiça actuou e no modo criminal. O sargento Luís Gomes foi acusado, julgado e condenado em pena de prisão efectiva, tendo cumprido tempo como preventivo, pelo crime de rapto de menor.

Foi aliás, essa decisão da Justiça que desencadeou, paradoxalmente, toda a onda de solidariedade com o sargento, pai afectivo e extremoso, da menor e que a Justiça queria à viva força encarcerar, de modo injusto, iníquo e inadmissível, durante quatro anos.

Isso foi dito e escrito e o tribunal que o condenou, vituperado por praticar semelhante injustiça e crueldade. Foi proclamado publicamente em programas de televisão e figuras públicas da situação e do regime, defenderam publicamente o sargento recalcitrante, desobediente e desrespeitador das sentenças judiciais e afinal principal impedimento à entrega da menor ao pai que sempre a reclamou.
Nenhuma figura pública do regime, optou pela defesa pública do pai biológico da menor, detentor legítimo do poder paternal e no final de contas, vítima principal, a par da filha que reivindica, deste procedimento social e politicamente orientado por certas figuras da inteligentsia pátria. O teor dos escritos públicos dos apaniguados do regime, afina pelo mesmo diapasão: o pai afectivo, é o legítimo pai da criança. O pai biológico que se dane, mesmo que nunca tenha desistido de ter a filha consigo.

Depois de se saber disto, vir escrever que a Justiça é a culpada exclusiva da emergência do problema, só por miopia. Política, social ou ideológica. Ou então, numa versão mais suave, por ignorância militante. Quer dizer, desconhecimento de factos, leis, costumes e práticas sociais enraizadas há décadas na sociedade portuguesa.
Práticas essas que fundamentam, originam e explicam escritos como o da Sábado de hoje.
A Justiça, em termos quase ontológicos, significa dar a cada um aquilo que lhe pertence. Espera-se que os editores da revista percebam esse significado e atribuam a cada um aquilo que lhes pertence, neste imbróglio que entretanto se criou, por força das leis que há e dos costumes que se praticam. E ainda, principalmente, das pessoas que lidam com isso, incluindo as dos media.

Publicado por josé 15:42:00  

14 Comments:

  1. antonioviana said...
    Caro José: A justiça lato sensu falhou. A justiça stricto sensu, dos Tribunais, terá falhado se não pressionou as polícias a cumprir as suas determinações e não denunciou em devido tempo o incumprimento. A Justiça dos Tribunais portugueses, que não consegue fazer executar as suas decisões ou que não consegue afastar os obstáculos que constantemente lhe colocam é a que os poderosos, os mais iguais que os outros, querem.
    josé said...
    O problema está em saber se a justiça stricto sensu, poderia fazer diferente e melhor, de acordo com as leis, costumes, rotinas e procedimentos habituais em casos que tais.
    No meu entender, não. Porquê?

    Porque não há cultura judiciária e cívica para isso suceder.
    Quando se sabe que o registo de propriedade, verdadeiro, mas que se sobrepõe, de modo fictício, à realidade da propriedade material, estamos a admitir a normalidade das aparências sobre a realidade.

    E é isso que sucede em casos destes e de outros, como no caso das execuções que não se logram cumprir.
    As polícias, não se acham no dever de indagar, para além do que a rotina lhes impõe. E os tribunais, stricto sensu, contentam-se com tal inoperância, porque fica registado o acto formal.

    Exemplos deste tipo de procedimentos são ás dúzias.
    Deverá por isso dizer-se que a Justiça lato sensu, não funciona por culpa da própria justiça stricto sensu?

    Pode dizer-se, mas é mais adequado perceber a razão de fundo de tal fenómeno e para mim, está explicada naquilo que escrevi:
    O ambiente social, cultural e prático dos casos concretos. Incluindo as práticas judiciárias, claro está, mas nunca exclusivamente.

    Para modificar este estado de coisas, seria necessária outra mentalidade que não fizesse aprovar leis como as recentes, em matéria penal. Por exemplo.
    josé said...
    O Pathos existente, neste momento, em Portugal, é extremamente deletério.

    É isso. Não se exija a uma instituição que espelha esse pathos, mais que outra, uma diferenciação daquilo que lhe dá consistência.

    Não se exija à polícia uma actuação exemplar e denodada, quando o exemplo que vem de cima, é precisamente ao contrário do devido.

    Não se exija aos tribunais um empenho que vá para além da rotina de lidar com outras entidades que têm, também o seu papel a cumprir.

    Sabe como é que a Segurança Social e as Comissões de Protecção funcionam realmente e na prática?

    Mal. Muito mal, de acordo com os standards que entendo deverem ser seguidos.

    São todos funcionários, quando deveriam ser assistentes sociais.

    A diferença assenta nessa subtileza.
    josé said...
    E nos tribunais, é igual...até já me esquecia de acrescentar.

    Poderá ser diferente?

    Talvez. Daqui a uns decénios, se tudo correr bem.
    osátiro said...
    E não só a Justiça.
    AS "Instituições" de apoio às crianças, e adopção são uma treta.
    Luís Bonifácio said...
    Caro José

    Todos nós estamos obrigados a cumprir a lei e as determinações de um Tribunal, mas um agente da autoridade (Militar neste caso) tem mais obrigações que um civil?

    No meu tempo de Serviço militar, ainda existia uma justiça militar distinta da civil. E este código de justiça não era para brincadeiras. Ai de um militar que não obedecesse a uma ordem da autoridade civil, quando esta estava no exercício das suas legitimas funções.

    O sargento Matos Gomes não cumpriu uma ordem do tribunal e até agora a justiça militar ainda não mexeu uma palha.
    josé said...
    O tio ( parece) é um dos militares de Abril,membro distinto da Associação com louvores públicos...pelo que o exemplo, vem sempre de cima.
    zazie said...
    Este comentário foi removido pelo autor.
    zazie said...
    Ainda bem que o José volta ao tema porque eu já o quis desenvolver com o Timshel (que não é burro mas não se explica).

    A primeira questão de fundo, que se torna “contra-natura” é a própria história- uma filha, um pai e uma mãe que a fazem, sem se saber como esse acto lhes passou ao lado das responsabilidades.

    Mas depois vem o inesperado. O inesperado é haver um rapaz que tem uma filha por acaso que, ao contrário do que costuma ser habitual, em vez tratar da vidinha e até de fazer outra família (assim é que é hábito) fica agarrado àquela que afinal é fruto da sua carne.

    E agora, na ausência desta reacção é que há um desfasamento entre uma legitimidade biológica e o acatamento desse mesmo desejo legítimo, sentimental e emotivo, ser entregue à burocracia da lei.

    Natural, teria sido o gajo sacar a miúda e ponto final. É filha dele. Se a chegou a ver com “autorização” do que a sacou à má-fila e de forma ilegal- seria natural que resolvesse a coisa e depois o outro que fosse chamar a polícia.

    Afinal estamos a falar de um filho que está nas mãos de outros, por erro, por engano e por ele nem saber que era pai.

    A partir daqui, não tendo existido esta reacção natural (ainda que pouco legal) imagino que tudo teria de ficar errado.

    Depois vem a tal justiça. Eu não acredito que a lei e os tribunais existam para fazer justiça. Sempre achei que existem para evitar a barbárie. E esta é que tanto pode ser injusta como até pode ser justa. Se pelo meio acontece justiça legal, é por acaso.

    Paralelamente a esta questão de fundo- a única que verdadeiramente importa- existem as irregularidades e ilegalidades ao abrigo da lei. Sejam individuais, sejam institucionais.


    Se existiu um centro Social que soube da ilegalidade e ainda ajudou a torna-la legal, com um processo de adopção que nunca poderia ser viável já que foi sacado à má-fila sem cumprir os trâmites legais- não se percebe como é que esse Centro Social ficou impune, não apanhou com um bruto processo e os responsáveis não foram alvo de inquéritos e julgamento.

    A partir daqui está tudo errado. Está errado porque também não percebo como é que pode haver um tribunal para uma coisa e mais outro para outra e processos simultâneos quando a questão era tão simples- apareceu o pai biológico e ninguém pode adoptar filhos dos outros sem o seu consentimento.
    zazie said...
    O que eu queria deixar em aberto e como interrogação principal é se vale a pena pensarmo que um qualquer sistema burocrático nos resolve uma questão tão elementar como não permitir que outrem fique com um filho que é nosso.

    E isto é questão que não precisa de anos para se saber dar resposta. Precisa de dias. De vontade e de coragem.

    E ia jurar que até é por um défice de verdadeira coragem que as pessoas se inclianam emocionalmente para o militar.

    Porque esse lá fez a ilegalidade que ia ao encontro do "coração" e o outro ficou-se. De coração murcho e com demasiada paciência de demasiados anos para não acharmos todos que também faltou por ali algum "impulso vital" mais eficaz.
    zazie said...
    Agora o que é que a gaja (a mãe) anda a fazer no meio desta história e até a querer entregar a filha aos outros é coisa que me ultrapassa.

    E como é que há burocracia que ainda não lhe retirou todo e qualquer direito maternal.

    Estas coisas não fazem sentido. E ainda faz menos substituir-se a ilegalidade justa pelo incumprimento da polícia a quem se entrega a força para legalmente fazer as coisas.
    zazie said...
    Aproveito para deixar aqui uma pergunta ao José.

    Li um post da Helena Matos a falar daquela historieta de um dos "astrónomos" sociais ter dito que está muito certo deitarem-se fora os processos e registos dos crimes de pedofilia.

    Este caso monstruoso na Áustria também aconteceu por já não existirem registos dos crimes sexuais que o monstro cometeu e ainda terem legalmente dado a paternidade das crianças que ele fez e que tinha escondidas na cave.

    Como é por cá? a lei permite estas merdas? Por causa da tal "privacidade"?

    Então com o que é trabalham as responsáveis pela investigação da adopção? trabalham com ar? pelo aspecto? pelas declarações do IRS e umas perguntas aos vizinhos?
    zazie said...
    E o José parece-me já ter respondido à questão:

    No meu entender, não. Porquê?

    Porque não há cultura judiciária e cívica para isso suceder.
    Quando se sabe que o registo de propriedade, verdadeiro, mas que se sobrepõe, de modo fictício, à realidade da propriedade material, estamos a admitir a normalidade das aparências sobre a realidade.

    E é isso que sucede em casos destes e de outros, como no caso das execuções que não se logram cumprir.
    As polícias, não se acham no dever de indagar, para além do que a rotina lhes impõe. E os tribunais, stricto sensu, contentam-se com tal inoperância, porque fica registado o acto formal.


    Pois não. As polícias não têm qualquer cultura cívica que as leve a pensar que devem tirar uma criança a um tipo que a tem desde pequena para a entregar a um "panhonha" que não sabe ir lá buscá-la.

    Palavra que acho que é assim que pensam. Do mesmo modo que não iriam buscá-la a casa do pai- do que a fez, se o outro mandasse. Para isso tinham de entrar "luvas" bem maiores.

    E os tribunais não sentem. Porque não são pais nem mães de casos em que há pais e mães desnaturados.

    E a força do que tem mais cunhas impõe-se se o que tem razão e direito não age por si. Se fica à espera que vá a polícia ou o tribunal fazer dele pai bem pode esperar sentado.

    E, é um facto, que há uma criança no meio de tanta anormalidade.

    Eu não sou a favor dos kibtuzs de crianças nem dos filhos do Estado. Mas não acredito em resoluções de problemas destes com meia-burocracia a funcionar.

    Ou bem que há burocracia a funcionar mesmo ou então é isto. Entregue ao que tem mais cordelinhos e mais padrinhos para a fazer andar para onde ele quer.
    zazie said...
    «Sabe como é que a Segurança Social e as Comissões de Protecção funcionam realmente e na prática?

    Mal. Muito mal, de acordo com os standards que entendo deverem ser seguidos.

    São todos funcionários, quando deveriam ser assistentes sociais.

    A diferença assenta nessa subtileza.
    »

    Exactamente! Era isto que queria referir. Porque já me vi envolvida (por questões de trabalho) com Segurança Social e vi que aquilo era virar as costas e não querer chatices.

    Num dos casos fui eu que tive de dar um berro a uma delas e obrigá-la, ali, à minha frente, a comunicar imediatamente o caso ao juiz. E telefonou mesmo à minha frente. Porque me ia passando. E o caso não era comigo- era comigo ver a poltranice.

    Por isso é que pergunto- o que aconteceu à Segurança Social que entrou nesta patranha e ainda ajudou a tentar legalizar o que era ilegal?

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