Inquérito Parlamentar, já!

Do jornal Correio da Manhã, de 26.10.2007:

As reformas do Código Penal (CP) e Código do Processo Penal (CPP) têm “soluções arrepiantes” do ponto de vista constitucional, afirmou ontem [24.10.2007], em Coimbra, o penalista Costa Andrade. Segundo o mesmo especialista, os legisladores tinham todas as condições políticas para responder aos problemas da Justiça, mas deixaram-se condicionar “pelos crimes sexuais sobre menores”, influenciados pelos efeitos do caso Casa Pia.

Do mesmo Jornal, em 27.10.2007,

“Uma reforma que se deita com um caso mediático, acaba rapidamente solteira”, começou por dizer Costa Andrade. “Não me parece que seja uma reforma inocente”, acrescentou. Sem nunca se referirem a qualquer processo concreto, designadamente ao caso da Casa Pia, os penalistas debruçaram-se, entre outros temas, sobre as alterações ao segredo de justiça, escutas telefónicas e responsabilidade penal das pessoas colectivas. Neste último caso, foi consensual a crítica ao catálogo de crimes. “Como é que se pode imputar a uma sociedade um crime de violação?”, questionou Costa Andrade, que chamou a atenção para o artigo do homicídio qualificado, classificando-o como um “dos mais cómicos”: “Por que é que não pomos também o padeiro, que tem uma função tão importante”, na alínea onde se define em que casos, consoante a vítima, se considera haver homicídio qualificado. Barreiros sublinhou estar convicto que a reforma foi levada a cabo numa lógica de “ofensiva do legislativo sobre o judiciário”, com a “intenção de gerar problemas”, e deixou uma pergunta: “Quantas amnistias indirectas se vão conseguir com esta reforma? Um processo que devia ser claro está sob suspeita de ser uma forma indirecta de criar amnistias.”.

Se isto não justifica um Inquérito Parlamentar, com incidência particular em certas figuras, o que é que justifica?

Não é escândalo suficiente, isto? Estão à espera de quê?

PS. Era certamente para casos como este que o deputado Ricardo Rodrigues, do PS, chegou a ponderar com grande seriedade de propósitos, a criação da figura peregrina do "procurador especial". Acho que afinal tinha razão: um procurador especial, neste caso, com poderes alargados de investigação, como os americanos e com ampla margem de publicidade, daria um belíssimo resultado, estou em crer. Talvez desse até, numa reforma da nossa democracia doente e lograsse identificar a origem dos males de que padece e muitos suspeitam. Por exemplo, Pedro Namora que ontem fez declarações, também elas arrepiantes, sobre certos "importantes", com posições de poder de decisão e influência e que a exercem sobre o Estado e que continuam a alimentar o vício pessoal da pedofilia, em lugares esconsos e ao abrigo de investigação. Pedro Namora, escreve assim, no seu blog:

Já se sabe que o PS tudo fez, ainda na oposição e recorrendo aos boys que instalou em locais fundamentais do Estado, para destruir a investigação ao designado Processo Casa Pia. Mário Soares, Ferro Rodrigues e amigos, na linha da estratégia delineada por Carlucci há já muitos anos, não descansaram: importava difundir que a investigação era uma cabala. Por isso afastaram Souto Moura, destruiram a brigada que investigou os crimes sexuais e substituiram Catalina Pestana.
A par disso promoveram alterações legislativas, nos códigos processual penal e penal para proteger os pedófilos, como bem assinala, sem papas na língua, o juiz Rangel. Basta aliás atentar no artigo 30.º do Código Penal.

Epílogo, retirado da crónica de António Barreto de hoje, no Público:

"Há quem pense que a mentira é reservada ás ditaduras. Sem imprensa livre, escrutínio parlamentar ou oposição legal, qualquer ditador mente quanto e quando lhe apetece. A liberdade de expressão e a imprensa seriam suficientes para conter a mentira. O Parlamento, os partidos e as associações de interesses obrigariam os governos da dizer a verdade. As eleições seriam um correctivo para os políticos mentirosos: exigentes, os eleitores castigá-los-iam. Infelizmente, nada disto é verdade. A democracia vive hoje da mentira. Sob todas as suas formas: ocultação contradição, correcção, circunstância superveniente ou melhor ponderação. A política tem regras parecidas com as que vigoram no futebol , nalguns negócios e na guerra: o único critério importante é ganhar. Só são condenados os que mentem e perdem. Os que mentem e ganham são respeitados. "

Belíssimo quadro da nossa actual democracia e que nos oferece a galeria dos retratos: cínicos e patetas. Haverá, objectivamente, outros perfis?


Publicado por josé 12:33:00  

17 Comments:

  1. CCz said...
    Caro José:

    Não percebi (?) o alcance profundo deste seu postal. Não acredito que acredito nos inquéritos parlamentares, onde, tradicionalmente, as conclusões têm cor partidária, e flutuam consoante a maioria.
    CCz said...
    Perdão,

    "Não acredito que acredite"
    zazie said...
    Pois, mas a ironia é essa. Quando foi do envelope 9 não exigiram eles um inquérito parlamentar?
    CCz said...
    Olá cara zazie:

    Este postal do José; "A derrocada" de João Gonçalves no Portugal dos Pequeninos; "O fim dos chumbos por faltas, ou a vergonha do novo triunfo do “eduquês"" de Miguel Frasquilho no Quarta República; o livro de Medina carreira ("O dever da verdade"), as reflexões sobre o poder em Portugal no Portugal Contemporâneo... hummm isto vai dar estrondo, só pode dar estrondo!!!
    Laoconte said...
    Felizmente, no mundo português os escandalos, quer políticos quer económicos (dos grandes), por mais virulentos que sejam, quedam-se nas palavras.
    lusitânea said...
    O polvo tomou conta de Portugal.Entretêm a malta com discussões de aborto, casamentos gay,indisciplina nas escolas,multiculturalismo e imigração, mas deve ser na "massa" que as atenções devem ser concentradas.Aí é que as coisas "mexem", os interesses se instalam, os poderes fácticos imperam e decidem por nós.Irreversivelmente ao contrário do aborto , da indisciplina, do multiculturalismo, da podridão reinante.
    Trata-se do "último" grande "bolo"que vai cair do céu como o maná e deve ser empregue á vista de todos e com o contributo de todos "antes" de factos consumados...
    josé said...
    lusitânea:

    Hoje no Público o provedor do leitor, Rui Araújo, dedica-lhe uma prosa substancial, apontando-lhe uns pecados graves. Intitula o escrito " o ovo da serpente", para dizer que o seu blog é um antro.

    Leia e comente, se entender, porque aquilo que Rui Araújo escreve é suficientemente explícito de uma mentalidade interessante.

    De um preto e branco e de uma dicotomia onde a esquerda, mesmo extremada e anti-democrática tem todo o cabimento na discussão pública e a direita, mesmo a anti-democrática é encarada como o diabo em forma de opinião.

    Rui Araújo parece-me a quintessência deste regime do politicamente correcto que se foi sedimentando ao longo destes 30 anos.
    Seria interessante ver onde começou política e ideologicamente, por onde evoluiu e onde realmente está, para se fazer o retrato de quem o retrata a si e possivelmente fará a outros.

    Há muita gente em Portugal assim, formada numa escola de princípios difusos que se foram abandonando até prevalecer a ideologia da correcção da esquerda dita "democrática".

    Esta discussão daria pano para mais mangas, mas poucos a fazem e o discurso de todos os ruis araújos é o do mainstream e o admissível na comunidade.
    Por isso, quem ousa questionar certas verdades assumidas como indiscutíveis e afirmar outras, ainda que discutíveis, divergentes, esbarra com a mais complecta intolerância ao discurso mesmo que resguardada numa pretensa tolerância, sempre lamentada e aceite a contra-gosto. Bastaria uma leve centelha para que essa patine democrática que aparentam se desvanecesse como película de água ao sol de Verão.
    Laoconte said...
    Concordo com a visão do Lusitânea e faz-me lembrar da obra "Triunfo dos Porcos" de George Orwell, onde os porcos, liderados por um tal Napoleão Bochechas, também procederam, subtil e pela calada, à alteração (perdão, reforma) dos seus sete mandamentos da revolução, a fim de manter os outros animais da quinta controlados sob o efeito da ignorância.

    Os sete mandamentos iniciais:
    1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.
    2. Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo.
    3. Nenhum animal usará roupas.
    4. Nenhum animal dormirá em cama.
    5. Nenhum animal beberá álcool.
    6. Nenhum animal matará outro animal.
    7. Todos os animais são iguais.
    E para os animais menos inteligentes, os porcos resumem os mandamentos em apenas -Quatro pernas bom, duas pernas mau!- que passou a ser repetido constantemente pelas ovelhas.

    No entanto, com a consolidação do poder pela classe dirigente e a consequente adquisição de regalias feudais, a maioria dessas regras foi alterada para:

    4. Nenhum animal dormirá em cama com lençóis.
    5. Nenhum animal beberá álcool em excesso.
    6. Nenhum animal matará outro animal sem motivo
    7. Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros.
    O slogan das ovelhas fora modificado ligeiramente, -Quatro pernas bom, duas pernas melhor!-
    lusitânea said...
    Não li o Público.Mas a publicidade é sempre boa.Vou tentar amanhã.Obrigado pela dica
    zazie said...
    Viva, Ccz,

    V. é muito optimista. Esses textos nem abrangem um décimo da blogosfera quanto mais os portugueses.
    Carlos Medina Ribeiro said...
    As crónicas que António Barreto publica no «Público» aos domingos podem ser lidas a partir da manhã do dia seguinte [aqui].
    rb said...
    Afinal, onde é que houve as alterações do CPP para beneficiar o processo Casa Pia?
    Na definição das vítimas para os casos de homicídio qualificado ou foi na responsabilidade criminal das pessoas colectivas?
    Já agora, quando é que o prof. Figueiredo Dias se pronuncia sobre o assunto?
    Ou será que o José nos ajuda a perceber?
    josé said...
    rb:

    Alguém disse que as alterações se fizeram para beneficiar o tal processo?

    Foi outra coisa, o que se disse e até os governantes acabaram por confirmar, sem qualquer pudor.

    Mas se alguma benefício visível se pudesse encontrar, já toda a gente fala no artº 30 do C. Penal...
    rb said...
    «mas deixaram-se condicionar “pelos crimes sexuais sobre menores” influenciados pelos efeitos do caso Casa Pia.»

    Não, ninguém disse.

    De facto, falar toda a gente fala, mas explicar o querem dizer, que dá um bocado mais de trabalho, já se torna mais difícil. Talvez perguntar à Catalina Pestana ...

    Sobre a alteração do art. 30.º já falamos naquele post em que o José emendou a mão em relação ao título. Recorda-se?
    E sobre o assunto recomendo ler o que dizia Eduardo Correia, na revisão de 1982, salvo erro. Já agora também este do juiz Pedro Soares de Albergaria , no Sine Die porque felizmente ainda há quem tenha a humildade de reconhecer o óbvio.
    josé said...
    rb:

    Disseram expressamente que esta revisão das leis penais que ainda vão dar muito que falar, porque são efectivamente um aborto, foram inspiradas directamente pelas lições retiradas do processo casa Pia.

    Claro que lhe deram um sentido diferente, mas ainda assim é uma revisão orientada por um processo.

    Politicamente, o que parece? Diga lá comigo: parece uma revisão efectuada para satisfazer as pretensões de algumas pessoas que se viram afectadas pelo processo Casa Pia, nomeadamente no que se refere às escutas e a certo estilo de investigação.

    Incomodaram-se essas pessoas, que por acaso são todas do PS e fizeram aquilo que alguém denunciou:
    vingarem-se de quem os investigou, indirectamente.

    A verdade, caro atento, é que certos elementos do PS entenderam que o MP e o poder judicial, ou um certo poder judicial verdadeiramente independente, os prejudicaram politicamente. É isso que parece e me política o que parece, é.

    É assim.
    rb said...
    Mal era que não retirássemos as devidas conclusões do processo Casa Pia, em relação aos abusos que se verificaram nesse processo. Só é pena é que tenham de aparecer estes processos Casa Pia para se ver aquilo que já toda gente sabe que é a fraca qualidade da nossa investigação penal e os seus tuqes habituais.
    Coisa bem diferente é afirmar ou querer passar a mensagem de que este novo Código se destina a beneficiar ou proteger os arguidos do processo CP (vá-se lá saber porquê?), coisa que o dr. Barreiros, advogado das vítimas, e a Catalina Pestana, uma expert destas questões penais, disseram à boca cheio e o José deu-lhes aqui voz com grande elogio.

    PS: esperava que não ignorasse o meu comentário sobre a diabolizada alteração ao art. 30.º.
    josé said...
    O artº 30º tem que se lhe diga. De facto, a jurisprudência- alguma jurisprudência- já assim interpretava como veio a ficar.

    Mas a questão é estoutra: se houve e há pessoas no próprio PS e até na Unidade de Missão ( o próprio Rui Pereira) que não concordam com essa interpretação plasmada agora em letra de lei, quem sou eu para discordar e dizer que afinal o deputado Ricardo Rodrigues ( o Diabo de hoje diz que foi ele o autor directo da alteração), é a voz autorizada deste pobe país?

    Acha, caro rb? Conhece o deputado Rodrigues? Sabe de onde vem e para onde quer ir, para se arvorar em legislador único deste país?

    Melhor ainda: não acha este assunto demasiado grave para deixar de lado um Inquérito parlamentar em devida forma á actuação concreta desse deputado? E com reflexos noutra área, nomeadamente a política?

    Por outro lado, este Código Processo Penal, assim revisto, é um aborto completo, caro rb. Até você vai concordar, e não demora muito tempo, vai ver.

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