A Utopia ao virar da Esquerda -I

Je voudrais, sans la nommer,
Vous parler d'elle.
Bien-aimée ou mal aimée,
Elle est fidèle
Et si vous voulez
Que je vous la présente,
On l'appelle
Révolution Permanente !

Georges Moustaki, sans la nommer.

A esquerda o que é? Alguém sabe dizer, explicar conveniente e definitivamente? A Esquerda, actualmente, distingue-se da direita em quê, exactamente? Esquerda e Direita, são campos políticos diversos e separados por barreiras intransponíveis? Ou serão apenas as margens do rio da História?

Enfim, que metáfora redutora poderíamos escolher para melhor definir estes conceitos mortíferos para a harmonia universal?

Teoricamente, a discussão levaria tempos infindos e conduziria à convocatória de milhentos autores e prosadores de crónicas, para no fim, se chegar à mesma conclusão de sempre: gostos não se devem discutir e por isso, quem gosta de esquerda é porque assim se sente e quem a Direita prefere, é porque conserva esse gosto.

Mesmo com gosto e sabores diferenciados, Esquerda e Direita, podem ser conceitos que simplificam e englobam modos diversos de organização da vida em sociedade e que se podem distinguir pelas teorias que os podem sustentar e modos práticos de execução.

A petite histoire, trazida pelos historiadores e divulgada pelos ensaistas, diz-nos que a distinção simbólica, ocorreu, na reunião dos Estados Gerais da assembleia nacional francesa, na França de 1789, que congregou o clero, a nobreza e o terceiro Estado. Os representantes da nobreza e clero, capitaneados por Malouet, sentaram-se, no hemiciclo, à direita do presidente; os outros, radicalizados por Mirabeau, à sua esquerda e a distinção de lugar pegou, no imaginário colectivo.

A simbologia do lugar de assento, associou desse modo, os que defendiam o sistema monárquico e os respectivos privilégios e prerrogativas, em contraposição aos defensores da revolução e alteração qualitativa deste status quo. A Direita pretendia conservar; a Esquerda, revolucionar e mudar. Mas…seria esta distinção dicotómica, a única possível? Não haveria também um lugar de centro, no espectro de assentos disponíveis? Havia, mas oscilante e sem alma própria. Seria a maioria? Quem sabe?

A Revolução triunfou e o ancien regime acabou. No séc. XIX, ressurgiu a ideia de Revolução, como conceito permanente de alteração social do status quo e os partidos marxistas e socialistas herdaram o acervo da Esquerda. Nessa época, porém, os conceitos já não eram claros, porque na Alemanha de Weimar, por exemplo, a esquerda concitava os apoios de comunistas e social-democratas ( do Kpd e do Spd). Entre as duas guerras, a confuão aumentou com o “nacional-socialismo” e a “revolução conservadora” ou o “personalismo comunitário”. Na Itália, Mussolini e os seus sentavam-se na extrema direita do hemiciclo parlamentar.

Na América, depois da II Guerra mundial e já nos anos sessenta, apareceu a “NewRight” , religiosa e tradicionalista e também a “NewLeft”, libertária e anti-imperialista.

Nesta Europa que nos une, a divisão de blocos, entre o Leste e o Oeste, com um comunismo marcado a Leste, de centralismo democrático e colectivização geral e uma democracia parlamentar a Oeste, com modelo económico capitalista, favoreceu o aparecimento de moderados de centro, pela “social-democracia” que afina os conceitos herdados da velha Esquerda, e conduz à amálgama de partidos que se diferenciam apenas pelo programa pontual, nunca pelos princípios programáticos fundamentais.

Nos anos sessenta e setenta, a par de movimentos de extrema direita, revolucionários e de minorias, aparecem os de extrema-esquerda, associados a uma New Left que se reclama contrária ao revisionismo da Esquerda original e que proclamam uma nova ideia de esquerda fundada no neomarxismo e nas experiências maoistas e guevaristas. É a estas experiências propagandeadas por esta Esquerda nova que os partidos comunistas tradicionais, chamam de “doença infantil do comunismo”. Mas é esta Esquerda nova que concita milhentos adeptos, entre estudantes que nasceram nos anos 40 e 50 e que vai desembocar na confusão aparente do início dos anos setenta em Portugal, logo após o 25 de Abril de 1974.

A proliferação de grupelhos maoistas, neo-marxistas e de matriz antirevisionista, é notória no Portugal de Abril. Esta nova Esquerda não deixa de ser Esquerda e é-o tanto mais que a velha Esquerda, porque participa do fervor revolucionário da alteração violenta do satus quo, seguindo à letra as cartilhas dos mestres revolucionários. A velha e nova Esquerda só se distinguem nos métodos.

É esta nova Esquerda que concita o apoio de muitos intelectuais, em Portugal, logo após o 25 de Abril e a proliferação de partidos, grupos e grupelhos, atinge o paroxismo, nos dois anos que se seguem à Revolução dos Cravos, por si mesma, amplamente aproveitada pelo Partido Comunista Português, tradicional e seguidor atento do modelo soviético e que se esforçou seriamente, até 25 de Novembro de 1974 por implantar o modelo de sociedade basicamente definido como socialismo, mas amplamente conhecido como comunismo.

Esta proliferação de opções políticas, não significa qualquer pluralidade real, porque o modelo básico de construção e organização social, sem falar da ideologia subjacente, é essencialmente o mesmo: colectivização dos principais meios de produção; partido único, de poder, com eventuais apêndices para democratas de outros países rivais, verem e eleições condicionadas pelo partido único, com cerceamento rápido e indolor das principais liberdades cívicas garantidas nas sociedades ocidentais, de democracia parlamentar.

Aplicando os conceitos a Portugal, imediatamente antes e após o 25 de Abril, poderemos procurar em que lugar ideológico se situavam os principais intelectuais e mentores de opinião pública e a resposta que fatalmente terá de ser dada, por quem esteja de boa-fé e sem preconceitos, é a de que estavam todos ou quase todos situados à Esquerda.

Mas que Esquerda, perguntarão alguns?

A Esquerda ideológica, marcada pelo partido comunista e ainda a Esquerda seguida pelos anti-revisionistas, nas sua ideologia fundamental e experimentada na China e na América latina e ainda num ou noutro país modelo de isolamento como era, no caso concreto, a Albânia.

A Esquerda original, "the real thing", aperfeiçoada e com êxito político, de provas dadas na governação, com uma pátria própria e teoricamente coerente com os princípios enunciados por Marx, Engels e Lenine, situa-se no entanto, nos partidos que afiançavam a categoria inultrapassável do seu modelo único: os partidos comunistas, internacionalistas e proletários, de todos os países que prentendiam unir.

Em Portugal, o Partido Comunista Português, logrou implantar nos meios intelectuais e académicos, as ideias básicas, fundamentais da doutrina marxista, desde cedo. Que ideias eram essas, no fim de contas e que ainda contam actualmente no ideiário do PCP?

Estão à vista no seu programa e não mudaram um centímetro ideológico nos últimos 40 anos. Não se percebe por que razão não se enunciam claramente e sem receios públicos, que os desejos veementes de alteração das políticas de “direita” supõem sempre um modelo radicalmente diverso e incompatível com o modelo de organização política e social que temos.

O Partido Comunista Português, não queria em 1975, como não quer ainda hoje, programaticamente, uma democracia parlamentar, embora conviva com ela e com ela sobreviva no espectro político nacional. O PCP não queria em 1975, como não quer hoje, a economia organizada em empresas privadas que compitam entre si, numa concorrência definida segundo as regras de mercado, como acontece nas economias da Europa do Norte, desde sempre. Não queria em 1975 como não quer hoje, contemporizando apenas tacticamente com as circunstâncias que lhe não dão o poder de mandar. Se mandassem em maioria, que ninguém tenha dúvidas que regressaríamos aos tempos do PREC, ainda mais acelerado pela urgência do tempo que passa.

O PCP não queria então, como não quer ainda hoje, uma sociedade com valores que não bebam ideologia no materialismo dialético e por isso, nunca admitiriam o pluralismo de órgãos de informação que disso discordassem. Para tal, a censura férrea e imposta pelo Estado policial, seria a norma vigente, sempre apoiada, claro, na vontade popular, do "nosso povo".

A bandeira do Partido Comunista Português, desde sempre, foi a luta contra o fascismo. Em Portugal, o fascismo é, simplesmente, o regime de Salazar e Caetano. Era-o em 1974 como o é ainda hoje, e muitos intelectuais de todos os quadrantes de Esquerda, não admitem outra discussão que oblitere esse dogma. Associada a essa bandeira, vem outra mais pequena mas não menos emblemática: a repressão fascista, que levou às prisões centenas de militantes que queriam à viva força depor o regime que detestavam e prender os seus próceres. Entendem como inaceitável e injustificado, um regime que não tolerava a liberdade de manifestação de quem o procurava depor, inclusive pela força das armas. Os que foram presos por causa dessa lógica que não compreendem nem aceitam, são os heróis da resistência ao fascismo e em nome dos quais, se proclama a legitimidade de existência ideológica de um partido.

Em 1965, o maior de todos os comunista portugueses, Álvaro Cunhal, proclamava por escrito um outro dogma que continua a ser seguido pelos comunista portugueses actuais, como o comprova qualquer leitura avulsa da revista O Militante: “ Para nós, marxistas-leninistas, o Estado é o instrumento de dominação de uma ou várias classes sobre outras classes. (…)
Criar um Estado democrático significa criar uma política democrática, um exército democrático, uma justiça democrática(…).

E corentemente com a ideia de Esquerda real e verdadeira, assim escreve n´O Militante de Maio-Junho de 2007, José Neto, membro do Comité Central do PCP:
“Efectivamente, no Estado fascista, a polícia e os tribunais eram instrumentos da opressão de classe exercida pela burguesia monopolista e pelos latifundiários sobre as massas da população.

Estas simples frases, estas enunciações claras de Revolução quanto ao modelo social vigente, não deveriam ficar impunes, numa discussão democrática, no Portugal actual, para se perguntar que lugar pode ter actualmente, na sociedade portuguesa, um partido que comunga de ideias totalitaristas tão ou mais perigosas que as de qualquer neofascista cuja existência a Constituição proíbe.

E no entanto, são ideias como esta que se impuseram logo em 1974, com o apoio manifesto, amplo, vibrante e intelectualmente sustentável, pela inteligentsia portuguesa que se manifestou após o derrube do antigo regime de Salazar/Caetano.

Essas ideias basicamente revolucionárias e que o partido comunista e a Esquerda em geral apoiaram, em 1974, 1975 e 1976, continuam a ser válidas no Portugal de 2007 para essa verdadeira Esquerda portuguesa que é o Partido Comunista Português. São estas ideias que fizeram caminho ideológico e se aninharam durante anos na própria Constituição da República Portuguesa, como normas programáticas pacificamente enunciadas e para cumprir tendencialmente. Foram essas ideias básicas que forneceram toda a lógica argumentativa e continuam a fornecer, aliás, ao partido comunista, para defender os seus pontos de vista totalitários e colectivizadores.

Tal teria pouca importância se Portugal fosse, à semelhança de outros países europeus, mais pluralista e tivesse já remetido o partido comunista português, para o caixote de lixo da História, enquanto não reformar este entendimento verdadeiramente reaccionário, para usar um termol próprio e apropriado. Tal não acontece, porém, porque os intelectuais vicejantes, formaram-se quase todos, nesse cadinho de utopias.

Não obstante, para além e aquém do partido comunista, vicejaram outras forças políticas, no leque partidário português, logo depois do 25 de Abril de 1974 que merecem atenção porque comungaram das mesmas ideias básicas e foram constituídas por intelectuais e militantes que fizeram percursos sociais com relevo na sociedade portuguesa e que nunca se demarcaram ideológica ou intelectualmente das opções básicas da Esquerda, enunciadas nessa altura e que o partido comunista ainda considera válidas.

Muitos desses intelectuais, fizeram gradualmente o percurso de aproximação ao centro político, alguns ultrapassaram e fixaram-se em partidos ditos de direita e outros continuaram fiéis à velha cartilha, confiados na mudança dos ventos da História.

Não obstante, em Portugal, a ideologia de Esquerda, com essa matriz específica que formou a mentalidade de dirigentes partidários e militantes de escrita em jornal ou revista, continua a ser validade por estas asserções:

Para quem lute pela transformação progressista da sociedade é justo defender que o artista ( porque a sua obra intervém na sociedade e é um elemento e um factor de emoções, sentimentos e ideias) leve à sociedade com a sua obra uma mensagem que integre valores de classe que, num momento histórico dado, constituem a força de transformação voltada para o futuro.” Álvaro Cunhal, em A Arte, o Artista e a Sociedade.

Esta militância ideológica, para muitos, nunca foi ultrapassada, no subconsciente, porque as ideias de juventude, marcantes e determinantes de opções políticas e sociais, fixam afectivamente para todo o sempre, o lado para onde se olha em primeiro lugar, numa discussão política. É para esse lado que a maior parte dos intelectuais portugueses olha, porque foi assim que aprenderam a olhar em primeiro lugar e não há amor como o primeiro. Principalmente se esse amor, tem razões que a razão desconhece. ( continua).

Publicado por josé 16:22:00  

1 Comment:

  1. lusitânea said...
    As "fábricas" de doutrinação pagas pelo contribuinte continuam na maior das calmas em muitas faculdades.
    Depois querem que haja direita.Ou que os capitalistas invistam a sério...
    É que a malta que se deixou comprometer nunca encontrou mecanismos de ajuda à desvinculação.Continuam os controleiros

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