Leitura para um domingo à noite de Setembro

«Escócia, 1746

Lillias salvou‑se da carnificina porque, seis horas antes da batalha, viu o pai morto, como realmente ele haveria de morrer mais tarde. Atravessado pelas baionetas, de modo que os buracos na barriga vertiam sangue, bílis e excrementos. Tom Fraser estava em pé, tapando a entrada, espalhando como sempre a escuridão. Ela pensou que aquilo que tanto o feria era o surpreendê‑la adormecida na cama de madeira, que se usava somente em três momentos de uma vida: parir ou ser parido, acasalar pela primeira vez e falecer.

O pai mostrava o seu desgosto abrindo o corpo, falando pelas fezes arruivadas. Lillias queria esconder‑se, mas sabia que um pecado de filha nunca mais desaparecia da visão de um pai. Arremeteu‑lhe contra as pernas e passou pelo meio delas, tão pequena e azulada que isso lhe dava qualidades de animal. A sua camisinha esvoaçava como penugem ao sabor da ventania, enquanto ela corria e se afastava cada vez mais, sem se dar conta de que, em verdade, ainda nada sucedera. Acabaria por acostumar‑se e quando, anos depois, em Portugal , viu abater‑se uma cidade inteira, levantou‑se em silêncio do enxergão, fechou a trouxa e foi dormir para o jardim, sem avisar ninguém daquilo que iria passar‑se mais à frente, de manhã.
Pensou que, se falasse, criaria um estado tal de confusão que os acidentes começariam a acontecer antes de o terramoto os provocar. Estava, naquela altura, com quinze anos, mas aprendera a ser tão avisada que a precaução já lhe cortava o meio da testa com vincos próprios da maturidade.
Mas, por agora, vemo‑la fugir na sua fuga de criança, destinada a fazer‑se sentir naqueles que devem estar, naquele momento, a perdoar‑lhe.
Os seus pequenos pés irão batendo ao mesmo tempo contra o peito da família, e aqueles que a amam já estarão sangrando na pena de a buscar, tão esfacelados pelas neves da encosta que hão‑de gritar, pedindo o seu perdão. Lillias não sabe exactamente onde se encontra, pisa ao acaso o gelo e os rebentos. O vento norte investe contra os troncos e atravessa a sua camisinha, fura‑lhe a pele, como essa baioneta que vai abrir o estômago do pai.

O mês de Abril, que vai a meio, torna o frio um pouco mais difícil de entender, é um frio de oiro, e as novas criaturas deixam‑se armadilhar pela beleza, afastam‑se das mães, entontecidas com a poalha que sobre elas cai. Esta nossa menina, Lillias Fraser, começa aqui a sua dança do pavor, dá voltas cegas em redor das árvores, chora em silêncio porquenão se atreve a misturar a voz com a floresta. Esquece agora a razão por que fugiu, aleija‑se nas pedras, nas raízes, fere‑se, ao meio‑dia, como quem atravessasse o monte em plena noite. Por isso, quando cai e se apercebe de que o declive a vai levando para baixo, ela produz a sua própria escuridão, fechando os olhos, quase sem sentidos. Parece que aquele chão se fartou dela, de observar o medo humano uma manhã inteira, porque a empurra como se ondulasse, ferindo‑a um pouco mais, mas devolvendo‑a à estrada, em baixo. E pensa que a salvou.

Há, com efeito, uma mulher que vai passando e que recolhe Lillias nos braços. E, no entanto, o som do sofrimento ainda paira sobre o ar, incomodando, e a natureza vê que não se trata apenas da criança tresmalhada mas que, a nordeste, para além do lago Ness, se mata e morre, tão intensamente como é costume de qualquer batalha, mas com inusitada rapidez. Começa ali um fim que há‑de atingir quem se julgava à margem dessa história, como Lillias, e o monte onde subiu, que se tornará pasto de carneiros e perderá os sentimentos e as trevas».

in «Lillias Fraser», Hélia Correia

Publicado por André 21:19:00  

1 Comment:

  1. MARIA said...
    Caro André,
    Parece profunda e muito bela a leitura que propõe.
    Procurarei não perder a oportunidade de ler.
    Um beijinho.
    Maria

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