O tempo da alma

José Hermano Saraiva, tem vindo a publicar no Sol, o seu Álbum de Memórias de uma vida. As histórias que vai contanto, ajudam a perceber o Estado Novo de que fez parte integrante, como ministro da Educação, já no período tardio de finais da década de sessenta.

José Hermano Saraiva, concluiu um curso de Letras e outro de Direito. No final de cada um dos cursos, pretendeu prosseguir a via universitária e académica e pelo que conta, foi sempre cortado nessa pretensão por causa do seu feitio rebelde e dado a confrontos de poder com a autoridade académica. E não só. Em tempos, definiu Cavaco Silva como um "pobre diabo"; arrependeu-se e na entrevista seguinte, corrigiu: "foi um honesto gerente"...humm!

Duas ou três histórias que conta sobre esse percurso e os escolhos que encontrou, tornam-se elucidativos de várias coisas que hoje em dia parecem miragens de um tempo que não volta e cuja evolução deveria ter sido no sentido da melhoria e da exigência de maior qualidade : a vida e universo académico, nas universidades.

Comparar essas histórias com os episódios picarescos de algumas universidades privadas actuais e com acontecimentos recentes que atingem algumas pessoas que detém o poder executivo, em cargos de governo e em empresas importantes e públicas, hoje, em Portugal, é um exercício deletério e triste, porque espelha o estado actual onde chegamos, ao fim de um pouco mais de trinta anos e principalmente dá-nos um retrato aproximado, da evolução da democracia em que vivemos.

Porém, o que José H. Saraiva conta dos anos 40 e 50, dá uma ideia aproximada da essência do Estado Novo, como imagino que terá sido, porque não o vivi nessa época e apenas a pressinto através destes testemunhos e da conjugação do que fui vivendo na década terminal do regime.

Um episódio que me parece emblemático, a vários títulos, é este que se transcreve:

Logo depois da minha licenciatura em Direito com nota que me encorajava a prosseguir, formulei o projecto de requerer uma bolsa de estudo em Direito numa universidade italiana. Apresentei o projecto no Instituto de Altos Estudos, dei como testemunhas e abonadores os meus professores de Direito, entre eles o professor Paulo Cunha. A minha pretensão foi deferida e foi-me atribuída uma bolsa. Eu iria com a minha mulher para Itália, passaria lá alguns anos a estudar Direito e depois faria o doutoramento na faculdade. Eram estes os projectos no início da minha vida.

Como já disse, tinha relações muito afectuosas com o pai da minha mulher, professor Rodrigo de Sá Nogueira, que passava parte dos seus tempos livres no café A Brasileira do Chiado. Eu saía de casa para ir para o escritório na Rua do Ouro, entrava n´A Brasileira para o ver, tomava um café com ele e seguia o meu caminho. Um dia ele estava acompanhado de um sujeito grave, alto, cor de azeitona de Elvas, A conversa correu imediatamente para o lado da política. Disse, sem reservas, que uma evolução política era inevitável. Estava-se em 1946 ou 1947, e essa era a opinião de muita gente . Depois desta conversa a pessoa que falava com o meu sogro disse-me: “Mas então, se eu bem o compreendo, o senhor é da oposição”.

Eu respondi-lhe com a maior sinceridade e pureza: “ Não sou da oposição e eu até sou um admirador do dr. Salazar e do que ele tem feito por este país. Mas não sou estúpido. As condições políticas mudaram e portanto o comportamento político também deve mudar.” Ele comentou sombriamente: “Tomo nota…tomo nota”.

No dia seguinte fui prevenido de que o Ministério da Educação tinha reprovado e não autorizado a minha ida para Itália por me considerar desafecto ao regime. A pessoa que conversava com o meu sogro n´A Brasileira era o dr. J.M. secretário do ministro da Educação. Ele foi d´A Brasileira a correr para o ministério e disse ao ministro o perigo iminente que passava de deixar ir para Itália um adversário do regime como ele imaginava que eu era. O regime tinha assim aos eu serviço pessoas desta curteza de vistas. Por causa desse mau encontro não fui para Itália e não realizei o projecto de doutoramento.”

Publicado por josé 16:22:00  

7 Comments:

  1. Espectadora Atenta said...
    Desculpe o coment�rio, pois sei que nada tem a ver com o tema que aqui colocou a discuss�o, mas neste momento, existe na blogsfera uma campanha de solidariedade com o Prof. Caldeira por causa do processo de Jos� S�crates e v�rios blogues aderiram a esta "pequena" ajuda...
    Se quiser colaborar com esta campanha � s� colocar no seu blogue a imagem da campanha feita pelo KAOS que j� inclui um link para quem quiser assinar a peti�o on line sobre o tema...Pode encontrar esta imagem no blogue do KAOS ou no meu...

    Atenciosamente...
    MARIA said...
    É , como sempre, um prazer ler os seus textos e reflectir sobre eles.
    Vislumbro alguma relação entre o comentário anterior e o excelente "post" com que uma vez mais a GL nos brindou.
    É que a azeitona, pode já não ser de Elvas, mas ainda andam para aí uns sujeitinhos verdes que levam a questionar se de facto aquele tempo é uma miragem de um tempo que não volta...
    Saudações virtuais.
    josé said...
    O paralelo é de uma evidência cortante, mas nem todos reparam...

    O senhor dr. Alberto Martins que se levantou na assembleia do Gil Vicente em Coimbra para verberar o então ministro da Educação, precisamente José H. Saraiva, agora, provavelmente faria a figura inversa.
    MARIA said...
    Concordo, mais uma vez.
    Seguramente...
    O Aprendiz de Jurista said...
    É a fatalidade de uma vida, tão longa e recheada de experiências, como a de JHS.
    De facto, quando se vive tanto, é inevitável constatar que os ciclos se renovam. Melhor e mais rigorosamente descrito, se repetem.
    No entanto, é curiosa a coincidência, até o nome do Ministério é o mesmo.
    Tomara que soubéssemos aprender, com este grande português que é José Hermano Saraiva.
    Os seus programas, de enormíssima qualidade, não têm o destaque e localização na grelha televisiva quem merecem.
    Pudera. Não são novelas brasileiras…
    CCz said...
    Tem a certeza de que se trata de Portugal nos anos 40?
    lusitânea said...
    Não se admirem porque enquanto o bolo se limitar quase ao estado(OE) e coisas dele dependentes será sempre assim...

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