O poder judicial caiu na rua?

As recentes manifestações opinativas sobre decisões do Supremo Tribunal, suscitam a atenção particular dos media e hoje o Público preenche duas páginas a tratar o assunto. O tom do artigo deixa entrever algo grave: a sindicância ao modo como se escolhem os juízes para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas entrelinhas, algo se diz- não se dizendo- sobre a capacidade e adequação das escolhas recentes para os lugares vagos no STJ. Qualquer mentecapto pode perceber que os media em geral desconfiam da essência do estofo dos julgadores supremos. Nestes últimos tempos que já têm alguns anos em cima, em vez de se criticar com base e sustentação suficientes, as decisões, certos jornalistas cujas competências nunca foram averiguadas como deve ser, questionam abertamente e ad hominem, a capacidade de julgar de certos relatores de acórdãos polémicos. Não se bastam com a crítica às decisões e chegam frequentemente ao autor da decisão, julgando-o sumariamente, com base em coisa pouca ou mesmo nenhuma. Os acórdãos começam a ter nomes interessantes e eufemísticos, como o "da coutada do macho latino" e outros assim. A crítica aos tribunais superiores, faz-se agora de flanco e com setas envenenadas ao reduto intransponível da personalidade de cada julgador caido em desgraça.

Chefou a hora de colocar pontos nos ii? Chegou a hora de esclarecimentos frontais e directos de quem, sendo boa gente, também se sente? Pois...aí reside o problema e a arte de o enfrentar revelará quem tem unhas para esta guitarra esquisita. Veremos.
Nenhuma discussão sobre este tema deve ser entendida com a sobranceria habitual, embora seja mais do que provável que assim será. No entanto, o tempo dirá que quem assim entende, já perdeu o comboio da modernidade clássica.
O texto que segue tem alguns dias. E continuará,se tempo houver, porque o tema é sumamente apaixonante.

A Constituição portuguesa, di-lo: os tribunais aplicam, com soberania, a justiça em nome do povo. A frase simples encerra em si mesma uma complexidade tremenda. Não havendo relação orgânica entre o povo e os juízes, há uma distância, mesmo assim, entre os titulares dos órgãos de soberania e a própria soberania, em si mesma.
Não sendo os juízes de todos os tribunais, eleitos, existindo várias espécies e graus de tribunais, criou-se uma ficção jurídica para explicar a noção de órgão de soberania que é um tribunal. Cada tribunal é um órgão de soberania e os tribunais no seu conjunto, não são órgão de soberania, tal como o entendem os anotadores da Constituição ( p.ex. Gomes Canotilho e Vital Moreira).

Nesta perspectiva, como é que se pode entender a autoridade dos juízes, mormente os dos tribunais superiores? Em que consiste a sua essência?
Os juízes em tribunal, são independentes, inamovíveis e irresponsáveis, por exigência democrática e para garantia do povo em geral, relativamente a outros poderes do Estado, particularmente o Executivo.
No entanto, assegurada legalmente essa estrutura de princípios, sobra ainda algo de substancial: a legitimidade proveniente da neutralidade, da imparcialidade e da objectividade, em coerência com a aplicação concreta do princípio da legalidade.
Nesta vista geral, um juiz não deveria situar-se dentro de um sistema de valores associado ao poder político exercido pelos partidos, sejam eles quais forem. Não deveria pertencer ao establishment e juntar-se aos poderes de facto em alegre companhia.
Em Portugal, durante muito tempo e por via das vicissitudes políticas dos últimos trinta anos, muitos juízes associaram o seu nome e preferências a opções políticas ditas de esquerda. Alguns, poucos, reservaram essa parcela de personalidade própria de uma função nobre, mas muitos outros, abertamente, proclamaram quando eram jovens magistrados, as suas inclinações políticas utópicas e abertamente militaram em associações sindicais, marcadamente esquerdistas, sendo conhecidas as opções político-partidárias de muitos deles.
Parece óbvio que será com base nessas qualificações pessoais ideológicas que alguns deles são escolhidos pelo establishment, para incorporar órgãos de poder político e outros aparentados, incluindo Tribunais superiores como o Constitucional e o de Contas. Já não será assim, na escolha de juízes dos Supremos Tribunais ( da Justiça e do Administrativo). Não será? E quem garante que não seja, do modo como temos visto?
Deve dizer-se, antes do mais, que este fenómeno contraria o ideal de juiz com todas as garantias de neutralidade, imparcialidade e imune a pressões, principalmente as mais subtis e contribui activamente para o descrédito de uma função que deveria antes do mais, cultivar a nobreza de princípios e valores.

A autoridade e legitimidade de um juiz, e por antonomásia de um tribunal, advirá de valores imponderáveis mas firmes e perceptíveis pela generalidade dos cidadãos: imunidade a pressões políticas, legislativas, de interesses de grupo, dos media, do próprio público, das pressões financeiras e mesmo das pessoais.
Restará algo mais para além disto?
Há ainda a competência técnica e a sabedoria acumulada, de senso comum e de brilho intelectual.
Neste enquadramento, as notícias recentes e cada vez mais vulgarizadas, de crítica aberta a decisões de tribunais superiores, como os da Relação e o STJ, todas numa vertente de análise de costumes, deixam margem para algumas reflexões.

Numa época em que todas as decisões em matéria política ou administrativa se tornam eminentemente discutíveis na praça pública da opinião publicada e comentada, as decisões dos tribunais superiores que contendem com aspectos da vida em sociedade, entram irremediavelmente na ordem do dia dos jornais e telejornais.
As decisões e julgamentos dos tribunais que contendem com direitos e liberdades de menores, seja em matéria criminal no capítulo de abusos sexuais ou de maus tratos, seja no âmbito civil, das regulações de poder paternal e protecção de crianças, têm uma dimensão extraordinária, hoje em dia.

Centrar a análise das decisões dos Supremos Tribunais, focando intensamente a personalidade e idiossincrasia de quem as profere, pode muito bem ser um erro, mas a margem para errar é muito lata também.

( continua se houver tempo e interesse).

Publicado por josé 11:47:00  

3 Comments:

  1. BlogoLogoLogo said...
    No sistema judicial anglo-saxónico as decisões dos tribunais consolidam-se em "doutrinas" interpretativas dos textos legais. Porque não se segue a mesma linha por cá ? Pelo menos deixariam de existir tantas decisões polémicas, uma vez que, aparentemente, casos análogos tem tido sentenças de sentido oposto.
    lusitânea said...
    Parabéns pelo inicio da análise da independência do 3º pilar da democracia
    Pouco conheço do meio judicial mas sempre achei estranho e até muito condenável que os juizes se andassem a misturar com os outros poderes como se fosse possível fazer esquecer essas ligações quando decididem
    No caso Casa Pia ouvi várias vezes referências ao problema das "escalas" como se fosse possível sair o euromilhões várias vezes ao mesmo juiz...
    A classe em si e por si, isto é hierarquicamente, é que deve ter capacidade de "escolher" por mérito e "afastar" por indecência e má figura.
    Estruturas paralelas quer sejam controladas por sindicatos , quer por formas habilidosas dos políticos se imiscuirem é mau , muito mau.
    Os juizes deveriam ser apartidários, não poderem participar na política( sem abandonar a carreira) e ser convenientemente avaliados pelos seus resultados.Essas consecutivas avaliações é que deveriam ser a base para subir na carreira por forma a dignificarem a sua nobre tarefa.De forma imparcial e fazendo o império da lei cair sobre TODOS e inclusivamente os políticos demasiadamente salvaguardos e pouco punidos.
    Deveria ser assim numa democracia que se quer "avançada"
    Guilherme said...
    O problema da legitimidade dos Juízes é bem complexo. Por agora interessa-me apenas dizer que estas críticas recentes a também recentes decisões de variados tribunais me fazem pensar que está para acabar o poder sagrado dos juízes de fundamentarem as suas opiniões com base no que bem acham sem se socorrerem de outros experts! A autoridade e o poder de irradiarem as suas opiniões sobre os demais assuntos para os quais não dispõem em regra de competências adequadas tem que ceder perante uma sociedade esclarecida assente na fundamentação das decisões e não na autoridade do emissor.

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