Memórias inventadas
segunda-feira, agosto 07, 2006
Antes de 25 de Abril de 1974, não havia “fascismo”, em Portugal. Ou, se havia, seria tão notório como o “comunismo”.
Aliás, nem sequer no estrangeiro ocidental, liberal ou mesmo social democrata, se via “fascismo” em Portugal. A revista Time ( com a senhora Martha De la Cal que ainda anda por cá), de 6 de Maio de 1974, ao fazer o obituário do regime que até então vigorou em Portugal, colocou na capa um Spínola estilizado num traço de Zagorski, com uma tarjeta a chamar a atenção para o “coup em Portugal”. No interior, nas cinco páginas que dedicou ao tema, referiu “um Livro, uma canção e então uma revolução”, como mote e a designação do regime como “archi-conservative”. E a palavra mal dita, só surge para descrever um país que simpatizava com o “fascismo”…mas em 1941.
Contudo, se não se vislumbrava o fascismo ou o comunismo, havia, já há muito tempo, em suplementos de jornais da Capital, do Diário de Lisboa, do Diário Popular e nas revistas de especialidades artísticas e musicais, o “reaccionarismo” e o “progressismo” e ainda o “obscurantismo”, parentes dilectos da mesma linguagem com gramática própria.
Havia também ainda uma diferenciação entre “esquerda” e “direita”, bem demarcada para alguns e que subsistiu bem durante os anos sessenta e setenta, no Portugal de Salazar e Marcelo Caetano.
A prova? O falecido Mário Castrim, crítico de jornais e insuspeito comunista, numa entrevista à revista Cinéfilo de 27 Dezembro de 1973, falava numas certas realidades que parecem bem esquecidas, nos tempos que correm:
Numa entrevista que passou na Comissão de Exame Prévio –Censura- do regime de Caetano, dizia:
"Condeno os intelectuais que deixam a televisão servir-se deles. Que foram fazer á televisão, por exemplo, mais do que a sua promoçãozinha pessoal, o António Gedeão, o João Gaspar Simões, a Agustina Bessa Luís, o Mário Cesariny, o Palma Ferreira, o António Ramos Rosa, a Natália Correia? “Que foram lá fazer, senão enredarem-se em minhoquices e darem-nos uma tristíssima figura deles próprios? Onde provaram serem homens das esquerdas, se a sua presença foi tão inócua como a presença dos homens das direitas?"
E adiantava ainda:
“Continuamos na mesma técnica confusionista do “isto é tudo a mesma coisa”. É mentira. Há gradações. O dinheiro não é todo o mesmo. Não é a mesma coisa, por exemplo, colaborar no Diário de Lisboa ou na Época; na Voz Portucalense ou na Ordem; na Opinião ou na Política. Como não é a mesma coisa colaborar na Crónica Feminina ou no Actualidades. Como ainda, até mesmo dentro da televisão, não é a mesma coisa colaborar dentro do Ensaio ou dentro do TV7 ou do Telejornal.”
Castrim, conseguia fugir um pouco do sectarismo agregador e capador, mesmo em tempos de “obscurantismo”: “ Em política, o meu partido é um ( o comunista, entenda-se); na crítica, o meu partido é o da qualidade, do profissionalismo, da tarefa cumprida com amor, com alegria e com verdade. Nunca procurei saber qual é a filiação política do António VIctorino d´Almeida, do Hélder Mendes, do Nemésio, do Artur Agostinho, do João Martins , do Sousa Veloso, etc. E neste etc. cabe por exemplo, o caso limite de José Hermano Saraiva: de poucos teria eu tantos motivos ideológicos para dizer mal; de tão poucos tive a satisfação de dizer tanto bem…já podem ver.”
Logo a seguir ao movimento militar de 25 de Abril, a linguagem mudou e quem introduziu a nova língua, apresentando-se em público pela primeira vez, foi inequívoca e compreensivelmente, o Partido Comunista Português. E também o Partido Socialista, ainda em maré de marxismo militante e defensor da sociedade sem classes, muito antes de colocar o socialismo na gaveta e assumir abertamente a cartilha social democrata, facção Olof Palme.
O primeiro comunicado do PCP, após a eclosão do movimento, saudava calorosamente o Movimento das Forças Armadas que abria perspectivas para a curto prazo ser “liquidada a ditadura fascista, seja posto fim à guerra colonial e seja instaurado em Portugal um regime democrático.”
O primeiro comunicado do PS, também não mascara a palavra fascista e usa-a largamente, acolitando-a da “ditadura” para descrever o regime deposto, prometendo esforços para a instauração no país de uma “democracia socialista”, “sob o impulso da luta das classes trabalhadoras”.
As primeiras palavras de Mário Soares, com o pleno assentimento presente de Manuel Serra, Ramos da Costa, Magalhães Godinho e Tito de Morais, ainda na estação de Santa Apolónia, vindo de Paris ( tempos difíceis), contemplavam a homenagem a “todos os que, ao longo desta noite de 48 anos, nunca se renderam ao fascismo”.
As primeiras palavras de Álvaro Cunhal, no aeroporto da Portela, em 29 de Abril de 1974, vindo da clandestinidade mais profunda, e na presença entre outros, de Mário Soares, Tito de Morais, Octávio Pato, Carlos Brito, Dias Lourenço e …Vítor Dias, foram estimulantes para os presentes: “Neste momento, o futuro do nosso país está nas mãos de todos os democratas que desejem libertar-se do fascismo”.
Há uma diferença fundamental no modo como a palavra era dita por Álvaro Cunhal e Mário Soares. Para aquele, sempre foi um “fascismo” de boa dicção; para este, já era um adulterado “faxismo”, com o “a” fechado. Depois, dali a tempos, a multidão passou a entoar a vulgata do “fássismo”, como se compreende numa população esclarecida em comícios e folhetos panfletários. A palavra “fássista” passou a ser o insulto preferido na rua popular, temido principalmente pelos que nunca o foram. E, simetricamente, o qualificativo “anti-fascista” , uma das melhores recomendações para qualquer cargo de relevo político.
A publicitação larga que na altura é feita àqueles comunicados e proclamações políticas seminais, através dos media, todos eles, sem excepção de relevo, sintonizados com o “25 de Abril” e dirigidos por muitos daquele que Mário Castrim definia como diferenciadores, para a “esquerda”, contribuiu para uma completa viragem no tipo de discurso político “ de rua”. O Século Ilustrado era dirigido por Redondo Júnior, Duarte Figueiredo e Rogério Petinga, com a colaboração, entre outros, de Afonso Cautela, José Manuel da Fonseca, Maria Antónia Palla.
A Flama, outra das revistas de grande circulação era dirigida por António dos Reis e Edite Soeiro e a Vida Mundial, por Augusto Abelaira.
Em poucos meses, ninguém de bom senso contestava publicamente a adequação da palavra mal dita ao regime deposto de Salazar/Caetano. Fascismo, faxismo, fachismo ou fássismo, são a expressão da equivalência de uma mesma noção: o repúdio generalizado do regime deposto de Salazar/ Caetano. Singularizado nessa única palavra, ficou assim definido, assente, fixado, para a historiografia comunista e socialista e sem contestação visível ou audível, o regime de Salazar e Marcelo Caetano.
A defesa das eventuais virtualidades positivas do regime deposto, ficou a cargo de anónimos irrelevantes, em artigos dispersos, livros mal escritos, e conversadores de café. Em 1975, em Portugal, já não havia jornais de “direita” a defender o regime de Salazar/Caetano e as tentativas que se seguiram, ecoaram todas num mar de indiferença, amplificado pela mediocridade intelectual dos que ousaram virar-se contra a maré. Jornais como a Rua, o Diabo, ou o Dia, acolhiam saudosos e nostálgicos do tempo da outra senhora, pois os senhoritos tinham-se bem adaptado ao Expresso, depois ao Tempo, e mais tarde ao Semanário. Os livros de alguns próceres notáveis do antigo regime, maçudos de irrelevâncias várias, foram pouco lidos, esquecidos e passaram rapidamente ao sector das curiosidades nas feiras de livros. Os media em geral e a inteligentsia de “direita” em Portugal, incluindo neste leque alargado, o centro direita da social democracia liberal, não impôs qualquer linguagem diferenciadora e esclarecedora que a apartasse da nova língua da esquerda. O “fascismo”, por isso, assumiu o significado que a esquerda lhe emprestou e carimbou. Um significado alargado, englobante e funcional. Em vez de uma noção restrita do fascismo italiano e alemão, passamos a ter uma noção ampla do fascismo histórico, onde se incluíram não só todos os regimes ditatoriais que se opunham ao comunismo, como também todos os partidos e correntes que se opunham em termos ideológicos. Nessa noção cabe, por isso, “um certo núcleo de características ideológicas e/ou de critérios de critérios organizativos e/ou de finalidade política”
A indeterminação desta noção é tal que o insuspeito Norberto Bobbio publicou, com outros, em Itália e em 1976, um Dicionário de Política( de onde se extraiu a citação) , onde define “fascismo” de modo a não deixar dúvidas sobre o cuidado a ter com o termo e a recomendar o seu uso restritivo, por causa da dificuldade em delimitar o conceito de “fascismo histórico”. O livro, sendo 1976, por cá não pegou, à semelhança do compromisso histórico.
O que pegou, e de estaca, foi um uso e abuso de certos termos e palavras, generalizando-se até aos nosso dias, a linguagem cunhada pela esquerda clássica, sem contraponto crítico.
(continua)
Publicado por josé 14:05:00
a fome? a pobreza? a iliteracia? o atraso? a polícia polítca? os presos políticos? as colónias e as suas guerras? a proibição de partidos? a censura?
Chamar-lhe fascismo ou não é conversa de meninos bem da cidade. Haviam era de, naquela altura, ter passado uma temporada no Portugal rural, onde se ía à escola até à quarta classe quando se tinha sorte, onde se tinha de trabalhar desde criança para ter algo que comer, num ambiente embrutecido (e aí é que o regime é culpado), onde as únicas saídas do círculo vicioso da pobreza eram o seminário para quem se apercebia suficientemente cedo e queria ou não se importava vergar-se à Igreja (isto nas famílias que se podiam dar ao luxo de mandar um filho dos muitos para os padres), ou a França para quem se apercebia demasiado tarde e tinha coragem para dar o salto.
Já li e Esteiros do Soeiro Pereira GOmes há muito tempo! Precisamente quando também frequentava um desses estabelecimentos de que fala e que me fizeram muito bem à educação.
O meu exemplar, tem o meu nome e a data de compra: Abril de 1971.
Era o primeiro volume da nova colecção dos Livros de Bolso da Europa América.
COm censura e tudo...
Segundo percebi, a posta argumenta (longa, longamente… mais demoradamente que uma conferencia de impressa do presidente Madaíl, em directo no “estado-do-canal”) que o "fascismo" (em Portugal) nunca existiu, porque a palavra fascismo não era utilizada... em “tempo real”.
(Esqueçam, por breves momentos... a censura, que o José, nome estimado, detêm, em seu nome – com o seu nome – um exemplar dos “Esteiros”, datado de 1971!)
Ora bem, e na mesma linha, arrisco... "revisionista", atrevo-me a pedir-lhe, que depois de concluir a presente posta com a inteligência e o talento que todos lhe reconhecemos, dedique uma linhas a outros "fenómenos" igualmente inexistentes como a “pré-história”, ou a “idade média” dos bárbaros “góticos”... ou quem sabe, sobre o “continente americano”, expressão desconhecida dos povos autóctones pré-colombianos.
E só mais uma coisa... equiparar a “notoriedade” (ai as palavras...) do “fascismo” ao “comunismo” (e porque as aspas?), é simplesmente abjecto, quando a “notoriedade” do comunismo estava “ligeiramente condicionada”, com “sorte”, pela clandestinidade, e com “azar”, pela prisão politica...
O Alex fala em “meninos bem”... eu pergunto: Demasiado sol na mioleira?
Lá irei, à segunda parte.Citarei até José Afonso!
Por agora, vou endereçar aqui um recado a Pacheco Pereira.
Já estava com saudades!
Agora que coloquei o recado, náo resisto a perguntar-lhe depois de ler no seu blog, uma entrada sobre os Love e o disco FOrever Changes:
Ouviu bem esse disco? Na época ou agora?
Para todos os efeitos não se deverá inferir do meu anterior pedido de umas linhas sobre os "bárbaros góticos", qualquer referência menos respeitosa ao JPP :)
Sobre o Forever Changes, só posso dizer, sem revelar dados biográficos :) que se ouve muito bem... em qualquer época e com qualquer temperatura :)