O Direito é uma aldrabice?

O grande Professor de Direito da Universidade de Coimbra, Orlando de Carvalho, disse numa entrevista ao Público, pouco antes de morrer, que o Direito era uma "aldrabice secante". O sentido da frase é de alcance comum e não precisa de enquadramento semântico. Quando o Direito diverge da vida como todos a conhecem, torna-se fonte de iniquidade e portanto fundamento de injustiça. Continuará a ser Direito?

Muitas das incompreensões, equívocos e entendimentos desfasados que se lêem e ouvem, a propósito de decisões judiciais sobre casos reais, têm a sua origem neste fenómeno e na ignorância generalizada das subtilezas que enquadram o Direito gizado, planeado e plasmado em leis escritas por especialistas que muitas vezes não são sábios, mas apenas sabões que branqueiam a sujidade que enlameia a realidade.

Uma entrevista, hoje, na revista Sábado, a um prestigiado advogado americano, de ascendência judaica, Alan Dershowitz, também professor em Harvard há dezenas de anos, foi advogado de Michael Jackson depois de o ter sido também, de O.J. Simpson e Mike Tyson.

Como explica ele a absolvição do cantor melodioso da minha infância que trinava "i´ll be there" como se estivesse num coro de igreja e passou a ser olhado como um bizarro weirdo depois das plasticas ao nariz e à pigmentação a branco?

Diz o professor causídico...


Foi um veredicto absolutamente correcto. Se o júri o tivesse condenado, teria sido um erro judicial. Há dois tipos de inocência: a inocência legal e a inocência factual. Não estou em posição -nem eu nem ninguém- de saber o que aconteceu na cama de Michael Jackson a meio da noite. Essa é a inocência factual. Ninguém, excepto ele e a criança, sabe realmente a resposta. Mas em termos de inocência legal, isto é, sobre existirem ou não provas além de qualquer dúvida razoável, ele é claramente inocente.

E depois, a exposição da aldrabice, na resposta à pergunta...
Se ele fosse pobre, teria sido condenado?

Se ele fosse pobre, nunca teria sido acusado com base nas provas que existem. Mas se mesmo assim fosse acusado, nessas circunstâncias, claro que teria sido condenado.

E a seguir, considerações importantes sobre o valor da prova testemunhal de crianças em julgamento...

(...) Nós sabemos que as crianças costumam contar a verdade, mas às vezes isso não acontece. E isso torna as coisas muito complicadas. Quer o sistema de justiça português quer o americano dizem que é melhor um culpado ir em liberdade do que um inocente ser condenado.

Em casos destes (pedofilia) talvez se tenha de absolver apesar de se acreditar que o arguido é culpado.

É esta a essência do mundo dos advogados do crime. Em Portugal como na América.

Conviver com a aldrabice e torná-la secante sempre que tal for conveniente para os clientes.

A Verdade?! Um mero incidente processual. Pode aparecer, mas é irrelevante. O que interessa mesmo é provar a inocência legal que pouco pode ter a ver com a inocência factual.

Onde jaz a consciência, nesta dicotomia entre o "legal " e o "factual"?! Parece-me bem que jaz repousada e bem assolapada, na ambição de ganhar prestígio, dinheiro e clientela. Valores que como todos percebem, andam sempre de mãos dadas com a Justiça e a Verdade.

A Justiça é ceguinha e anda de balança na mão. A Verdade, é como o azeite: acaba sempre por vir ao de cima.

Na distinção entre a Verdade legal e a Verdade factual, há um universo de ficções que nos afastam do Direito, da Justiça e da Verdade. E contudo, a tendência é para aceitar isto como um ideal à maneira da democracia que alguém dizia que era um mau sistema político, mas apesar disso, o melhor de todos. Será o caso?

Publicado por josé 14:38:00  

13 Comments:

  1. Anónimo said...
    Aculpa é dos Juízes que no alto da sua Douta ignorância, não sabem fazer justiça. O mundo está perdido. Help!
    Anónimo said...
    Como hão-de saber se a maior parte deles nunca lidou com a realidade.
    Anónimo said...
    José

    O problema é a lei torta dos homens corruptos e a sua aplicação por corruptos homens. O sistema potuguês actual.

    A democracia representativa deixou de ser o sistema adequado ao tempo presente pós-revolução tecnológica. Sem democracia directa não é possível emendar a corrupção. Mais democracia, em vez da aparelhocracia actual.
    Gomez said...
    Venerável Irmão José:
    Não que a carapuça me sirva, que não sou “advogado do crime”, mas há argumentos neste post que não julgo aceitáveis (e ficam muito aquém, aliás, do brilho habitual da sua argumentação...).
    Então para além da “verdade judicial” há uma Verdade Material que, em alguns/muitos casos estará a ser violentada por aquela? Certamente haverá.
    Mas quem determina qual é a Verdade Material e como? É essa a essência do processo que conduz à “verdade judicial”. O processo, tal qual o conhecemos nos modernos Estados de Direito, pode ser péssimo. Mas é o melhor que temos. Tudo o mais será arbítrio – sim, arbítrio – ou crença cega em Magistrados omniscientes e iluminados (conheçe algum?).
    O processo pode sempre ser aperfeiçoado. O funcionamento da máquina da Justiça também. O Estado tem de zelar para que a Justiça dos ricos seja igual à Justiça dos pobres. Mas a Verdade Material não cai do céu, por revelação, para sossego das consciências. Resta-nos o “fair trial”- o contraditório e o julgamento imparcial.
    O contraditório exercido pelos Advogados é essencial para que a verdade judicial não seja filha do arbítrio ou de ideias pré-concebidas. Negá-lo é negar a essência do Estado de Direito. E – falemos claro – se o Direito por vezes parece uma aldabrice ou um mero jogo tecnicista, muitas das decisões que, aparentemente, postergaram a Verdade Material que parecia existir, ter-se-ão devido – como julgo concordará - não a “manigâncias” de Advogados mas a indesculpáveis omissões ou erros na investigação e/ou no exercício da acção penal. Nesta, como noutras matérias, é preciso “dar a cada um o seu”.
    Não perca a esperança! Com bons Advogados e bons Magistrados teremos a melhor Justiça possível. Com maus Advogados e/ou maus Magistrados teremos um arremedo de Justiça. Verdade Material revelada por outros meios não passa de uma “fézada” - e para esse peditório não dou.
    Um abraço do,
    Gomez
    josé said...
    Gomez:

    Releia, por favor, o postal. Particularmente a última frase...que é idêntica à sua afirmação " O processo, tal qual o conhecemos nos modernos Estados de Direito, pode ser péssimo. Mas é o melhor que temos."

    No entanto,o acento tónico reside na glosa da entrevista do causídico americano.
    Este afirma, sem qualquer perturbação, que "Não estou na posição de saber o que aconteceu na cama de MJ a meio da noite."
    E daí, parte para o resto das afirmações.
    Ora, nós, tal como ele diz, também não sabemos.
    Quem sabe?!
    Ele o diz- o próprio MJ e a criança!
    A quem é que o sistema americano ( e o português, já agora...) dá maior protecção? Á criança como vítima ou ao suspeito, como arguido?!
    O advogado, é-o do arguido. Ou seja, de um dos dois que conhece a realidade, a Verdade material! E defende o ponto de vista do cliente, que no caso pode muito bem ser contrária àquela. Para isso, ficciona a existência de uma verdade legal, ou seja e no caso, uma "inocência legal", contra uma "inocência factual" que ele diz nem conhecer e que pouco lhe importará...desde que aquela prevaleça.

    É esse o ponto! E é por aí que se constrói toda uma filosofia do direito penal. O mesmo causídico explica que se o arguido fosse pobre, teria sido condenado. Ou seja, o depoimento da criança teria valor superior ao dele. Assim, não teve.

    Não vale a pena argumentar muito com grandes princípios e grandes valores filosóficos perante uma evidência que se nos impõe, na base do senso comum.
    E é essa equilíbrio entre a Justiça e a Verdade que se questiona, nestes casos.

    Os aspectos instrumentais que são o apanágio dos sistemas processuais penais que temos, para alcançar a Verdade material, devem prevalecer sobre a própria verdade material quando a mesma se nos impõe à vista?!

    Não adianto mais, porque vou sair. Voltarei daqui a pouco. E tem razão ao dizer que os argumentos não brilham por aí além. COntudo, a minha intenção foi provocar a discussão , o que já consegui...
    Outro abraço.
    Anónimo said...
    Venerável Irmão José:

    Mas não é essa a postura de um advogado? Não é pago para descobrir a Verdade, é pago para servir o seu cliente!

    Esta situação faz-me arrepios quando constato que grande parte dos políticos da nossa praça, nos últimos 40? 50? 60? anos foram, são advogados, gente educada, treinada profissionalmente para de certa forma esquecer a realidade e esgrimir argumentos para servir o seu cliente. A verdade é um pormenor, ou antes pormaior, que não é chamado ao caso.

    E é/foi esta classe que conduz os destinos do país, de argumento em argumento.
    diogenes
    Anónimo said...
    Mas não se deve presumir a inocência?

    Podemos agora descutir se deve ser aplicado em todos os caso, principalmente ao nível do terrorismo apocaliptico e do risco julgo que há alguma margem para discussão. Mas uma das bases do direito é presumir a inocência do acusado. E qualquer excepção tinha de ser muito bem explicada, documentado os extraordinários riscos e apenas numa lei temporária para situações de crise.

    lucklucky
    josé said...
    A presunção de inocência de qualquer pessoa, enquanto arguida de um crime, é um princípio de cautela. Presume-se inocente porque até prova do facto, pode mesmo estar inocente e se o for, não deve ser condenada, porque esse é o objectivo do processo penal: contribuir, com regras, para que os criminosos sejam descobertos, julgados e condenados, mas só os criminosos!
    Esta restrição que visa assegurar que pessoas inocentes não venham a sofrer injustamente, é paradoxalmente uma atenção que a lei penal concede... às vítimas! Neste caso, vítimas de acusações ou suspeitas injustas.
    Mas então, se a filosofia da lei penal que temos se ocupa neste caso tanto com a vítima potencial(e só potencial), porque não o faz nos casos em que as vítimas o são realmente e não apenas em potência?!
    Poderia até dizer-se, neste caso, que valeria a pena instituir um princípio de presunção da situação de vítima! Ou seja, sempre que alguém se queixa, partir do pressuposto que fala verdade e que a situação que a afectou é verdadeira e causou danos pessoais.
    A lei, contudo, não tem essa vertente filosófica inerente.
    Seria bom saber porquê e procurar a razão pela qual só se protege efectivamente a vítima potencial... quando a mesma é arguida e se desleixa a mesma vítima quando o é realmente!

    Há aqui uma filosofia que veio de algum lado e precisa de ser devidamente exposta aos olhos críticos de todas as vítimas. Pelo menos, para se ver melhor por que razão há tantas pessoas a defender a presunção de arguidos e tão poucas a presunção de vítimas! Porque será?!

    Quanto a mim, por força de ideias feitas e marteladas desde há uns annos para cá, com a escola de Coimbra do direito penal que não é tanto de Coimbra como o será mais de ressonância germânica...
    Esta problemática pode ser melhor explicada por aqui
    Gomez said...
    O Advogado é pago para defender o seu cliente e, nesse sentido, é “parcial” - é um facto.
    As circunstâncias em que o aceita fazer e o modo como o faz são questões deontológicas que estão abundantemente estudadas e que não cabe aqui aprofundar.
    Mas, mesmo actuando como “parte”, a sua acção no exercício do contraditório é indispensável à descoberta da Verdade, caso contrário poderíamos ter facilmente “verdades judiciais” condenatórias à revelia da verdade material. Nesse sentido é um colaborador indispensável à feitura de verdadeira Justiça e só quem nunca foi injustamente acusado – e muitos o são diariamente – terá da advocacia a visão quase caricatural que alguns dos comentadores por vezes manifestam.
    Caro José: já reli. Sei que “podadas” algumas ambiguidades de expressão, provavelmente estaremos ambos de acordo. O que me incomodou foi, por ex., o “será?” final. E também um certo tom geral de que a visão ideal da Justiça, que decorre dos princípios que todos perfilhamos, não passará de uma ficção. Que, na dura realidade, a Verdade Material e a Justiça acabam por estar à mercê de jogadas “técnicas” de quem tem o poder de arregimentar bons advogados ou advogados com poucos escrúpulos, aproveitando os “alçapões” do sistema para construir uma “verdade judicial” que ofende a Verdade Material. Mas aqui cabe perguntar: qual é a alternativa? A Verdade Material não se revela por obra e graça do Divino. O processo e os seus mecanismos – mesmo os ditos “alçapões” - foram gizados para que a Verdade Material e a verdade judicial coincidam o mais possível, assegurando também que os direitos fundamentais são respeitados, pois a n/ matriz não aceita – e bem – que a verdade seja obtida a qualquer preço. Idealmente, mas também, pragmaticamente, este péssimo sistema é o melhor que a n/ civilização conseguiu gizar. Saibamos viver com ele. Indiquemos formas de aperfeiçoar o sistema. Sancionem-se, efectivamente, os abusos. Daí a constatar uma irredutibilidade entre a Verdade Material e a verdade judicial – incluindo esta última no lamentável elenco das “verdades a que temos direito” - vai um grande passo...
    Julgo entender que o que no fundo o incomoda é algo que nos incomoda a todos. Tem havido casos em que a decisão judicial contrariou a Verdade Material que se metia pelos olhos a dentro (há efectivamente casos que parecem ser assim). Tal sucedeu em regra por puras questões formais / técnicas, potenciando o descrédito do sistema. Mas também nesses casos, a culpa não é do sistema – ou dos advogados. É de quem, conhecendo as regras do processo – que existem por boas razões - ou a jurisprudência existente (boa ou má, mas conhecida), cometeu os erros que conduziram, por ex., à desconsideração de certos meios de prova. Nem o melhor – ou o menos escrupuloso – dos advogados, consegue afundar, por razões puramente “técnicas”, casos competentemente instruídos. A menos que outros factores interfiram, mas isso já é outra conversa...
    Saudações amigas do,
    Gomez
    josé said...
    Meu caro Gomez:

    Os "casos competentemente instruidos" podem muito bem ser uma miragem e uma fantasia, no direito processual penal português. Por uma ou duas razões de tomo:
    Primeira, tem a ver com a tal presunção de inocência e mais uma garantia a favor do arguido de qualquer tipo de crime, do mais grave ao mais banal: o arguido, no direito português tem o direito de não falar e se falar pode mentir e voltar atrás e à frente e responder parcialmente. Além disso, pode fazer uma coisa absolutamente incompreensível e fruto de muitas injustiças e que contamina irremediavelmente a tal garantia de viabilidade de um processo "competentemente instruido":
    Se o arguido confessar um crime grave ( por exemplo, um homicídio) na fase de Inquérito e até na de Instrução, perante um juiz, MP , polícias, funcionários, advogado de defesa, isso vale para instruir o Inquérito e acusar o mesmo.Se não existir outra prova incriminatória ( porque já passou muito tempo ou porque não foi possível competemente apurá-la) resta esta confissão na fase do Inquérito.
    Ora, o que acontece em Portugal se o arguido se calar ( sim, simplesmente se calar) na audiência de julgamento?
    Por força de um artigo que manda produzir todas as provas em audiência de julgamento, doutrina que foi acolhida no CPP de 1987, o arguido, por força do tal princípio de presunção de inocência e por força daquela garantia que lhe permite falar e não falar, É ABSOLVIDO! Porque se o não for, há uma ilegalidade flagrante!

    Outras questões relevantes se colocam no domínio das nulidades e irregularidades na obtenção das provas.
    AS escutas telefónicas, por exmplo, sendo uma das provas chave nos processos e permitindo ouvir a revelação de crimes e a prova dos mesmos através da lógica e do raciocínio daquilo que é dito pelo arguido, podem valer zero se náo forem respeitadas uma série de requisitos que só muito dificilmente podem ser respeitados.
    Diga-me por exemplo, caro GOmez, como se pode materialmente exigir a um juiz de instrução que ouça 15 000 horas de gravaçáo telefónida de ponta a ponta, para validar as escutas?!
    Foi exactamente isso que ocorreu no Apito Dourado, segundo as informações dos jornais! E agora?!
    Agora, virá o doutíssimo Cosata Andrade que até fala alemão e o doutititíssimo Figueiredo Dias e o um pouco menos douto Faria Costa ( talvez um pouco mais, quem sabe?) dizer e sustentar em doutitíssimos pareceres pagos pelos arguidos, que as escutas telefónicas valem zero! E portanto, a nulidade dessa prova acarreta a nulidade de toda a prova que dela depende...
    Aliás, o doutíssimo Costa Andrade já o disse! Doutissimamente!E com citações alemães a atestar a justieza da sua razão.

    Tudo isto que já não é pouco confundo o vulgar cidadão , o tal "povo" em nome do qual todos dizem a começar pelos doutíssimos todos reunidos na sala dos Capelos,que a Justiça é aplicada.

    Caro GOmez: ao falar nestas coisas, "passo-me"! E por isso, vou temperar um pouco e reflectir se acabei por dizer algum disparate...
    Temo bem que não.
    E se, como diz e bem, as absolvições por motivos estritamente formais, contribuem muito para o descrédito do sistema, porque razão se continua a dar prevalência, no direito penal, à verdade formal, quando a verdade material, factual, como diria o outro, é o objectivo a atingir?!
    Por desvio de raciocínio? Por outras palavras, por um vício de forma, neste caso, de interpretação do espírito das leis?!
    Não sei bem, mas tento perceber isto há muito tempo e há muito para perceber.
    Em certos casos concretos, percebo imediatamente. E do que percebo fico muito triste, porque se há alguma coisa que me aborrece é sentir que não se faz Justiça quando se devia e podia fazê-la.
    Gomez said...
    Caro José:
    Compreendo o desânimo e a revolta de quem sente que não se fez justiça "quando se devia e podia fazê-la". Também assim me tenho sentido, mais vezes do que gostaria.
    Sei que há advogados que encaixam no retrato que traçou, mas também há outros são exemplares servidores do Direito. E desconfio que alguns magistrados também terão agendas pessoais, políticas ou outras que não deveriam ter.
    Compreendo também que a sua visão destas coisas decorre de uma vivência e de um conhecimento profundo das fragilidades do n/ sistema de justiça criminal, com as quais pouco convivo.
    Mas continuo a acreditar que a Justiça e a descoberta da verdade não pode ser feita a qualquer preço. E estou disposto a pagar o preço de algumas absolvições injustas para que as garantias do sistema não se transformem em arbítrio (sem prejuízo, naturalmente, da introdução de aperfeiçoamentos).
    Os casos que referiu dão que pensar. Mas todas as moedas têm duas faces. Um processo criminal assente exclusivamente numa confissão é frágil, qualquer que seja a relevância reconhecida às declarações prestadas no inquérito - e falsas confissões não são feito original. Se é humanamente impossível validar milhares de horas de escutas, também não é possível assegurar um controlo jurisdicional sobre a forma como essa limitação de direitos está a ser usada - e caímos de novo no arbítrio, tão preocupante para os cidadãos quanto a ineficácia da acção penal.
    Quando o processo conclui por uma "verdade formal" que decorre da intervenção de garantias que visam defender os direitos fundamentais dos cidadãos, que se presumem inocentes, isso não me preocupa. Prefiro isso a que alguém possa colocar em "estado de sítio" os direitos fundamentais e as regras de obtenção e validade das provas, por entender (ou se ter demonstrado por meios que a lei não admite) que naquele caso está indubitavelmente provado um crime que tem de ser punido.
    A convicção de culpa obtida por meios ilegais, por mais forte e bem fundada que seja, não "ratifica" ou sana o uso desses meios. Admití-lo seria acabar com o Estado de Direito e abrir a porta a todos os arbítrios.
    Em todo o caso, algo terá que ser feito para salvar a eficácia e credibilidade da n/ Justiça. Aí estou consigo. O Estado de Direito e a própria paz social não podem subsistir à frequência com que somos confrontados com as "verdades formais" que o (nos) preocupam, ou com outros casos que atestam uma profunda ineficácia do sistema.
    Mas a busca de eficácia não pode ser feita pela via mais fácil - a da eliminação de garantias básicas. Temos de criar condições para que os processos possam - mesmo - ser competentemente instruídos e julgados em tempo útil. A solução passa por aí, ou não será solução.
    Talvez V/ ache que isto são lindas "balelas", vindas de quem está "de fora". Ou utopias irrealizáveis. Talvez sejam. Mas pense também que há inocentes - materialmente inocentes, entenda-se - que são acusados e que terão de continuar a confiar no sistema.
    E que os n/ direitos de cidadania não podem ser irrestritamente sacrificados no altar da Verdade Material, por muito que a "verdade formal" por vezes nos doa.
    A conversa está boa, mas vou dormir. Com tanta verborreia também já devo ter adormecido quem por aqui ande...
    josé said...
    E para rematar, agora mais temperado, permito-me ainda acrescentar o seguinte:

    O sistema que temos, gizado pela escola de Coimbra, com influências estrangeiras de países avançados em todos os campos mas que são idiossincraticamente diferentes do nosso modus vivendi, permite evitar erros judiciários e a condenação de inocentes- objectivo declarado com as ultra garantias vigentes?
    Nem isso permite! Bastará ir a uma cadeia e perguntar aos condenados por tráfico de droga se acham justa a pena de prisão de alguns anos pelo tráfico de algumas gramas quando se deixa em liberdade, por efeito daquelas garantias excelentes, os tubarões do tráfico...
    Por outro lado, pensemos um pouco nisto:
    Quantos erros judiciários se evitam com este sistema? Muitos?! Não me parece.
    Parece-me antes que este sistema ultra garantístico, permite que se cometam inúmeras injustiças e não seria arriscado afirmar que por causa do risco de se condenar um inocente ( a pena de prisão e numa moldura na maior parte das vezes pouco relevante) deixam-se fugir pelas malhas do sistema penal, inúmeros culpados! Inúmeros! E não são apenas os condenados mas todos aqueles que nem se investigam por desleixo e porque as técnicas e métodos de recolha de prova não são julgadas aceitáveis, perante as exigências sociais.
    O António Barreto( o nosso mocho sábio mais estimado) até chegou a dizer que as escutas telefónicas deveriam simplesmente acabar!
    Assim na balança da Justiça cega, o prato dos culpados à solta anda de rastos e de barbas por aparar; do outro lado, o prato dos inocentes condenados, fica ligeirinho e na vertical do fiel.
    É essa a Justiça que queremos e a que temos direito?!
    Ditos há muitos, Chavões idem. Mas parece-me verdadeiro o que diz que sempre que se absolve um culpado, castiga-se um inocente. Que por isso também é vítima, mas que não conta, porque não é arguida.
    Como essas vítimas somos nós todos, geralmente esta estatística não conta muito, por dissolvida que está na actual confusão de valores.
    E de qualquer modo, os BE´s todos que temos tido ao longo dos anos, têm mantido a chama acesa desta perversidade e desta ignomínia, sem grande contestação. Em nome de quê, é que já não sei bem. Mas talvez haja alguém que me elucide...
    Anónimo said...
    Interessante discussão.

    Não sou do métier, mas comungo da preocupação do José. A questão nasce torta da ideologia e esta não a deixa resolver. As garantias previstas para os mais fracos são usurpadas pelos poderosos para manter a sua imunidade e impunidade. Nesse ponto a utopia não aceita o choque da realidade: cerra os olhos e tapa os ouvidos - oq eu os olhos não vêem o coração não sente... Como poderia aceitar que o socialismo politicamente correcto proteja os fortes e regule a exploração dos fracos?

    Descendo do terreno do garantismo pseudo-científico para a realidade crua das sociedades modernas, a situação é mais grave. A aplicação da justiça (que não apenas a lei!...) foi sequestrada para servir de instrumento de controlo anti-democrático da sociedade civil.

    Por isso, insisto que não é admissível ao cidadão responsável refugiar-se na presumida sanidade dos princípios em vez de gritar que o sistema concreto está moralmente corrompido e se tornou injusto. O sistema consente que os representantes - eleitos ou designados - abusam do mandato para proveito próprio: dinheiro, progressão, segurança e conforto. Em vez dos "checks and balances": o poder dos cheques e as balanças do poder.

    Portugal definha. E a culpa é nossa porque vemos, ouvimos e calamos.

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