Henrique Medina Carreira
A Verdade não mora aqui


Cada vez mais vejo gente que sabe quem não quer, mas não sabe quem quer. Ou antes, não quer nenhum.

António Barreto, Público, 23.01.05


1. Teremos em breve eleições legislativas. As terceiras desde 1999. E é improvável que, em Fevereiro de 2005, se encontre uma solução política adequada para enfrentar a nossa gravíssima crise. O Estado é inoperante, insustentavelmente sobredimensionado, está em crescente desqualificação e perdeu poderes decisivos de intervenção económica (monetário, cambial, alfandegário e orçamental). A economia fragilizou-se no último quarto de século, só reagindo, ocasionalmente, com o impulso de ocorrências externas, muito favoráveis. O peso da despesa pública levará, em poucos anos, ao colapso financeiro do Estado, com pesadas consequências para todos mas, em especial, para mais de 4,5 milhões de indivíduos dele directamente dependentes(1). Ninguém revelou, na política activa actual, discernimento, aptidão e credibilidade para tranquilizar o País e vencer uma tal crise. Com o “anonimato” dos candidatos a deputados, generalizou-se a promoção do demérito; os principais partidos políticos são hoje a melhor e a mais procurada agência de empregos para uma certa “mão-de-obra”; a ilimitação dos mandatos favorece a inércia e a rotina; o exclusivo partidário da apresentação de candidaturas visa a obediência e a hipocrisia política(2); a opacidade do financiamento dos partidos estimula a corrupção. O sistema semi-presidencial que vigora mostra-se inconsequente: o Presidente da República medita, reúne, exorta, insiste e é muito aplaudido, mas nada acontece. Os governos são escolhidos a partir de programas eleitorais irrealistas e demagógicos; enfraquecidos pelo inevitável incumprimento das promessas, são diariamente fustigados, julgados e condenados no primeiro acto eleitoral que aconteça. O Parlamento, com gente a mais e que nada representa, é palavroso e inconsistente, e vai degradando a imagem da democracia. Os problemas do País acumulam-se e agravam-se, e o tempo útil das soluções está a esgotar-se. Nos anos 20 e 30 do século passado, na Europa, este tipo de democracia atraía os ditadores. No início do século XXI, mantém o atraso e conduz à pobreza.

2. Só uma mirífica e muito rápida aceleração do crescimento económico poderia evitar-nos o tombo que já está à vista. Porém, a nossa capacidade competitiva não melhora; os “motores” da Europa não arrancam; do alargamento e das deslocalizações virá mais desemprego; o preço do petróleo será alto; os juros subirão, mais mês, menos mês; o câmbio euro/dólar aumenta com os défices dos Estados Unidos; a China está aí à porta, pronta a entrar livremente, com consequências preocupantes; o investimento estrangeiro não encontra aqui factores suficientes de atracção. Por isso, e por agora, nada prenuncia o fim da estagnação. De resto, a análise do nosso comportamento económico, pelo menos desde 1980, revela uma desoladora incapacidade: com excepção de dois períodos muito favoráveis (num total de dez anos), a taxa média de crescimento anual e real quedou-se pelos 0,6%(3). Nos anos 80, valeu-nos sobretudo o preço do crude que desceu fortemente; nos anos 90, foi a entrada para o euro e a consequente baixa dos juros, que expandiu e generalizou o endividamento dos agentes económicos, e fez “explodir” a procura interna. O que vale, afinal, a economia portuguesa, sem “choques” externos positivos?

3. Dispersos na nossa sociedade, temos 4,5 milhões de indivíduos que integram uma espécie de “Partido do Estado”. Têm em comum a dependência directa do Orçamento e representavam, em 2003: 43% da população residente; 56% do eleitorado; 62% da população com mais de 24 anos de idade. Pensionistas e subsidiados (mais de 3,8 milhões), equivaliam a 70% da população activa. Este “Partido do Estado” absorvia 70% dos impostos cobrados (1980); atinge agora os 85% (2003). O pessoal político dos principais partidos “invade” progressivamente o Estado e pretende mais funcionários, mais pensionistas, mais subsídios e mais subsidiados, porque aí pode angariar mais votos. Os que ainda estão fora do “Partido do Estado” constituem uma minoria cada vez mais desiludida, reduzida e silenciada, e menos influente. Adormecido e enganado, Portugal trilha o caminho para o desastre financeiro do Estado e para uma pobreza mais generalizada dos portugueses. Ninguém nos acode.

4. Os resultados das políticas orçamentais de 2002 e de 2003, da ministra Ferreira Leite, já estão estimados (A economia portuguesa, Junho de 2004-MF/DGEP): entre 2000 e 2003, o peso no produto das despesas com o “pessoal”, com o “consumo intermédio” e com os “juros”, diminuiu globalmente 1 pp.(4); e aumentou nas “prestações sociais”, nos “subsídios” às empresas e em “outras despesas correntes”, no equivalente a 3,5 pp.(5). As “prestações sociais” subiram ao ritmo anual médio e real de 7,5%. Globalmente, “pessoal” e “social”, absorviam 79% dos impostos cobrados (2000), 85% em 2003. Os números “falam” por Manuela Ferreira Leite, que só não conteve o que não era possível. Anuncia-se o inevitável ocaso do Estado-providência. A crise que atravessamos é, sem dúvida, a mais difícil e virá a ser a mais longa desde há muitas décadas: é a primeira que só venceremos com autênticas e impopulares reformas estruturais, para cuja realização nos temos mostrado incapazes; encontra-nos impreparados para suportar os “choques” externos desfavoráveis, mais sensíveis nas economias abertas e frágeis, e o “envelhecimento demográfico”; o Estado, na Zona Euro, perdeu os instrumentos de intervenção económica e, o que poderia restar-nos – a política orçamental –, está “bloqueado” pelos desatinos financeiros dos anos 90. Desde há muito que não enfrentávamos exigências e condicionantes tão fortes.

5. Perante tudo isto, as evasivas nada resolverão. Não basta afirmar que a “democracia” tem sempre soluções alternativas; hoje não vislumbramos nenhuma à altura da crise. Não é suficiente a detenção de uma “maioria absoluta”, se não for acompanhada de capacidade para executar um programa realista e impopular. A proclamação de “objectivos” ambiciosos, mas inviáveis, não conquista eleitorados, gasto como se encontra o método, com trinta anos de uso imoderado. As mensagens de “optimismo” não bem fundado criam suspeitas sérias de incompetência ou são simples embustes. O enunciado das soluções de longo prazo – mesmo quando bem intencionadas, adequadas e realizáveis – nada adianta se os governos, ao cabo de um ou dois anos, estão “destruídos”; nunca se chega a promover o longo prazo, porque se capitula no curto prazo. Quatro governos em cinco anos não deixam ilusões. Sem “verdade”, são bem prováveis mais legislaturas incompletas.

6. A avaliação do mérito das propostas eleitorais dos partidos que poderão formar Governo pressuporia a apresentação pelos mesmos, bem antes das eleições, de uma caracterização rigorosa e quantificada da nossa situação económica e financeira e da sua previsível evolução nos próximos cinco e dez anos. E ainda a resposta, nomeadamente, às seguintes questões:

  • 1.º) Que medidas propõem para conferir mais eficácia ao sistema político, para aperfeiçoar o sistema eleitoral, limitar os mandatos, incompatibilizar funções, modificar o regime imoral das reformas do pessoal político, reduzir o número de deputados, remunerar adequadamente os governantes e um número indispensável de deputados competentes, e financiar os partidos?
  • 2.º) Como projectam promover uma maior qualificação dos estudantes e dos trabalhadores, pela via da exigência, do rigor e da disciplina, e não pela estafada expansão dos gastos para contentar as “corporações”? (6)
  • 3.º) Como, no imediato e no médio prazo, estimularão o crescimento económico, considerando que se fosse pela forte aceleração da “procura interna”, ela só se sustentaria à custa de volumosos financiamentos externos?
  • 4.º) Como prevêem a criação maciça de emprego, fora do Estado, e como financiarão as medidas necessárias para o efeito?
  • 5.º) Em que sectores ou rubricas promoverão a baixa do peso no produto das “despesas públicas correntes”, considerando a evolução acelerada das “prestações sociais”?
  • 6.º) Que efeitos financeiros globais aguardam com as reformas dos funcionários, que passarão a receber como aposentados, entrando como seus substitutos outros que receberão como funcionários?
  • 7.º) Que medidas irão adoptar, e em que prazo, para que o peso dos gastos com o “pessoal público” diminua de 15% para 11% do Pib (média da UE/15)? (7)
  • 8.º) Como se propõem assegurar o financiamento futuro das “prestações sociais” – o Estado-providência -, que aumentaram de 14% para 17% do Pib entre 2000 e 2003 e cujo acréscimo absorveu, só por si, 90% do aumento verificado das arrecadações fiscais? (8)
  • 9.º) Quais os valores admitidos para os aumentos salariais, os das pensões e os dos subsídios (+10 euros por cada indivíduo e por mês, equivalem a um total de 630 milhões de euros anuais, isto é, a 0,5% do Pib em 2005)? (9)
  • 10.º) Qual o limite máximo admitido para o défice público (8%, 10%, 12%), tendo em conta que, sem receitas extraordinárias, ele já se situa à volta dos 5% do Pib?
  • 11.º) Aceitando, assim, maiores défices haverá uma aceleração do peso do endividamento público e dos seus custos financeiros futuros: como conciliar isto com o aumento dos encargos decorrentes do “envelhecimento demográfico”?
  • 12.º) Que conjunto de medidas legislativas, administrativas e judiciais, propõem para uma eficaz acção contra a evasão e a fraude fiscais?

7. É cada vez maior o número de portugueses que não acredita na generalidade dos políticos, nem na capacidade das instituições vigentes, nem nas promessas que lhes são feitas, nem no futuro do País. O próximo acto eleitoral de 20 de Fevereiro teria sido uma boa oportunidade para dizer toda a “verdade” e justificar todas as “exigências”. Porque, durante alguns anos, não se sabe quantos, teremos mais esforço que laxismo, mais contribuições que benesses, mais deveres que direitos e mais dúvidas que certezas. Terá de reconstruir-se tudo a partir de quase nada. Entretanto, muitos terão pago um preço imerecido.

Notas:
(1). Cerca de 730 000 funcionários públicos; 2 591 000 pensionistas da Segurança Social; 477 000 reformados e pensionistas da Caixa Geral de Aposentações; 307 000 beneficiários do subsídio de desemprego; 351 000 beneficiários do RMI. Com os familiares próximos poderão ser uns 6 milhões de indivíduos, numa população de 10 milhões.
(2). “Os bons não querem ir para lá, e os maus querem porque aquilo é um emprego fácil”. “As direcções partidárias gostam de deputados amigos ou gente que não chateie” (VICENTE JORGE SILVA, Grande Reportagem, 22.01.05). Já pressentíamos o que agora é confirmado por quem saiu há semanas da Assembleia da República.
(3). Entre 1985 e 1991, taxa anual de 5,5%; entre 1995 e 2000, taxa de 3,8%. Nos restantes catorze anos, à taxa anual de 0,6%.
(4). Consumo intermédio: -0,6 pp.; juros: -0,3 pp.; pessoal: -0,1 pp.
(5). Prestações sociais: +3,0 pp.; subsídios às empresas: +0,4 pp.; outras despesas correntes: +0,1 pp. O subsídio de desemprego contribuiu com +0,5 pp (2000 a 2003).
(6). Em 2002 só na Turquia e no México as percentagens da população com o 2.º ciclo eram mais baixas do que em Portugal (OCDE - Regards sur l’éducation, 2004); entre os adultos, só no México os indicadores são mais desfavoráveis que os nossos.
(7). Com um crescimento económico à taxa média anual de 2,2% (1990-2003), a diminuição dos custos com o “pessoal” para 13% do Pib (2008) e 11% (2012) e o aumento das “prestações sociais” à taxa anual de 7,5% (2000-2003), as “despesas correntes primárias” atingiriam os 43% (2008) e os 47% do Pib (2012), níveis insusceptíveis de financiamento fiscal. Neste quadro hipotético, a estabilização das “despesas correntes primárias” ao nível dos 40% pressuporia uma década de crescimento económico à taxa média de 4%.
(8). As arrecadações fiscais cresceram 6,8 mil milhões de euros e as “prestações sociais” 6,1 mil milhões.
(9). Valor correspondente a 4 500 000 x 10 x 14 = 630 000 000.

Publicado por Manuel 10:52:00  

4 Comments:

  1. Anónimo said...
    Obrigado, Dr. Medina Carreira.
    Anónimo said...
    Bem haja, brilhante e consciso. Homens como o Senhor fazem falta na política portuguesa.
    Anónimo said...
    Com todo o respeito pelo Dr.MC, cujos artigos clarividentes sempre me interessaram, pergunto: que é Portugal "visto do" centro da Europa? Em termos económicos é quase nada: Algarve, porto de Lisboa, com alguma indústria pesada(?), e grande Porto de mão de obra intensiva.
    Agricutura e pescas =zero.Pequeno, pobre e desorganizado. Portanto quaisquer duas Auto-Europas, quatro fábricas de semicondutores, 6 softwarehouses e assim umas coisas, porque,caso não saibam, temos pessoal qualificado,COM QUALIDADE, formado pelas nossas escolas, e damos a volta por cima.Não interessa à Europa um parente demasiadamente pelintra como nós. Parece-me inevitável que a solução dos nossos problemas virá com um empurrão exterior.Há 25 anos foi o FMI. Hoje será a UE. Acredito na catástrofe que se avizinha se nada se fizesse. Só que acabará por ser feito.Haja calma e confiança nos políticos lá de fora.
    X
    António Viriato said...
    Mais um excelente artigo de Medina Carreira, que alguns, acintosamente, apelidam de Profeta da Desgraça, pessimista, negativista, etc., em lugar de procurarem rebater os seus argumentos, apoiados em documentos oficiais que todos podem consultar. Perante os números apresentados não há que fugir : ou estão certos ou estão errados. Perante as suas perguntas concretas ou se lhes dá resposta ou se continua a iludi-las, recorrendo à retórica dos «grilos falantes», que vão desfeiteando os problemas à medida da torrente de palavras que vão debitando, de tal forma que, quando acabam de falar, têm os problemas todos resolvidos. Já vimos esse número com Guterres, Durão, Santana e, desgraçadamente, parece que iremos vê-lo, de novo, com a prolixidade vazia do Sócrates.
    Longa vida ao autor de tão contundente artigo. Quando acabei de lê-lo, quase me parecia ouvir, outra vez, os tanques e as chaimites.

Post a Comment