"Depois a gente vê"

Segue mais um postal de um Olho Crítico...

Quando havia liberdade de expressão cá na terra, pelo menos para alguns, os senadores da República, Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), um deles, apregoou aos quatro ventos do púlpito da TVI que o modelo de Justiça estava na pátria da democracia mais modelar do universo conhecido: Os EUA. E encontrou logo um exemplo imbatível, o julgamento de Michael Jackson, um poderoso cantor que, no mundo inteiro, já negociara milhões e milhões de discos. A polícia lá do sítio, em três tempos, investigara o caso e, em três tempos, o cantor iria ser julgado democraticamente por juízes democraticamente eleitos e um júri democraticamente escolhido.

Os factos imputados ao cantor vinham dos primórdios de 2003 e, segundo MRS, ia já fazer-se o julgamento, passados dois ou três meses. Todos ficámos invejosos e haveríamos de anuir em que aquilo sim era Justiça em tempo, eficaz, com todos os direitos e garantias para o arguido Jackson. Ao resto e ao cabo os USA eram tão eficazes a julgar uma personalidade do espectáculo, como o pilha galinhas dos arredores de Nova York , ou a enviar centenas de milhares de marines para fazer guerra noutros países, é claro. E como, afinal, o foram a julgar sumariamente aquelas centenas ou milhares de afegãos que encaixotaram em certa ilha que se chama de Guantanamo.

Acontece é que o professor se não deu conta de que, mesmo na “maior democracia do mundo”, há regras e procedimentos processuais só acessíveis a alguns, ou seja, a quem paga, e bem, aos respectivos advogados. E, para nosso espanto, o cantor ainda não foi julgado, embora MRS nos tenha anunciada da cátedra esse julgamento, logo para quase o mês seguinte aos factos que, por hipótese, a estrela tenha cometido. Há um problema grave que sucede, igualmente, cá na nossa terrinha: o cantor está de gripe e ainda não foi possível constituir o júri.

E isto quer dizer que o julgamento de Jackson por um só crime de “pedofilia” se alonga mais nos USA do que, neste país subdesenvolvido, julgar uns tantos acusados por crimes idênticos e onde se adicionam, dizem os sábios da comunicação social, centenas de testemunhas. Claro que Jackson pode arrolar milhões de fãs como testemunhas dispersas pela orbe terrestre, fãs que, como se sabe, “têm a certeza” que o cantor nada fez e que tudo foi inventado pelas concorrentes discográficas ou pelo FBI que é bem capaz disso, atenta sua história de seriedade nas investigações que faz e nas que não faz.

A história de Jackson transporta-nos, vejam lá!, para o nosso sistema de justiça. Pela sua celeridade, pela capacidade de resposta, pela defesa cristalina dos direitos do cantor. Estamos a milhares de anos dos EUA, estamos num sítio em que um processo como o do cantor pode permanecer adormecido durante anos e anos num DIAP, ou num Tribunal de Instrução, até que surja o instrumento processual mais eficaz de resolução de um processo: a prescrição. Mais eficaz e mais justo. Justiça, cá por estas bandas, é não fazer justiça, é meter os papéis no arquivo, é saber que a papelada sai de cima de uma secretária para outra. Quem vier a seguir que se amanhe...

É o desinteresse total: onde estão as reformas nessa coisa dita de “programas dos partidos” para a governação?. São coisas tão gerais que servem em qualquer encarte de qualquer jornal afeiçoado a qualquer partido. Em todo esse tempo de pedinchice ao voto, alguém ouviu uma ideia para a Justiça, alguém viu alguma coisa (só uma) que tenha a ver com justiça, com organização judiciária, com reorganização das magistraturas, com simplificação processual, com respeito pelos cidadãos e muitas, muitas outras questões? Nada. Um deserto absoluto. Viveu-se um período de psicose tecnocrática, meramente económica. Tão tecnocrática que meia dúzia de “jovens empresários” que fundaram “empresas” com os dinheiros do “papá” já se dão o direito e luxo de programar o governo, arrogando-se o “poder” de, quem sabe?, nos virem a governar, não como políticos, mas como “economistas de fraldas”.

Em boa verdade, políticos e os tais “economistas” não interiorizaram a cidadania, não se interessam por isso, não perceberam, ou fazem que não perceberam, que todo o progresso, também o económico, exige cidadãos conscientes, com direitos, conhecedores, tratados com justiça.

Daí que entendam que essas coisas da justiça, logo se vê, mais tarde. São coisas de somenos. Pudera, para eles há sempre justiça, tal como para M. Jackson. Ainda que seja através de uma prescriçãozinha.

Olho Crítico

Publicado por josé 15:55:00  

1 Comment:

  1. Anónimo said...
    Notável. Sensato e Brilhante. Que a voz nunca lhe doa Colega.

    parabéns.

    Ass. um magistrado judicial

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