"Acção Penal e Política"


Miguel Sousa Tavares (MST), no Público de 27 de Agosto, apresenta cinco dezenas de medidas que tomaria se fosse primeiro ministro. Não o será nunca, como ele próprio considera. Felizmente, mas que não esqueça que, há uns tempos, vaticinou, no mesmo diário, que ninguém, nem o próprio, cria alguma vez chegar a tal cargo, referindo-se a Durão Barroso. Daí que nunca se sabe o que lhe reserva o seu futuro promissor.

De entre tais medidas, saliento, por deformação, duas que respeitam á justiça...

  • 1ª - "revogação do estatuto de independência funcional do Ministério Público, com a sua submissão hierárquica ao ministro da Justiça...."

  • 2ª - "eleição por sufrágio universal do presidente do Supremo Tribunal de Justiça...".

Há cerca de dez anos, MST entendia ser, o então procurador-geral da República, o Rasputine do regime que violara o segredo de que se fala, a propósito do caso que envolveu a Drª Leonor Beleza...

...não ficou dúvidas na cabeça de ninguém que a violação do segredo veio do gabinete do procurador-geral

...escrevia.

Nessa altura, Marques Mendes dizia, colocando-se em bicos de pés, ao Diário de Notícias que se o PSD fosse governo a primeira medida na área da justiça que tomaria era a de propor ao presidente da República a demissão do procurador-geral.

Proença de Carvalho
, conhecido e eminente jurista da defesa dos direitos, liberdades e garantias dos mais necessitados, apregoava no mesmo Diário que o Ministério Público deixara de ser uma instituição ao serviço da comunidade e estava só ao serviço de si próprio.

Freitas do Amaral
, professor de direito administrativo, defendia o retorno a um Ministério Público próprio do "procurador régio", ou do antes do 25 de Abril.

Há vários pontos comuns em todos estes entendimentos.

O essencial é que todos eles pretendem transmudar uma magistratura num corpo de funcionários sujeitos às ordens e instruções do Executivo.

Suponho que é em nome da eficácia - o ministro manda, os processos findam. O ministro não manda, os processos não se iniciam ou não findam.

A perversidade está à vista. Retoma-se o estatuto judiciário que vigorou até 25 de Abril de 1974 e tudo é muito mais eficaz, como sempre é mais eficaz governar com autoridade musculada a fazê-lo com respeito pelas regras democráticas.

Voltava-se ao ofício confidencial, ao telefonema do chefe de gabinete, à "encomenda" do procurador, do presidente da câmara, ou de qualquer ministro ou secretário de estado.

Não se me apresentam dúvidas de relevo que um sistema de Ministério Público funcionalizado seja, quem sabe?, muito mais eficaz. Até, talvez, se lhe concedam os tão falados meios e instrumentos para investigar e mandar investigar. A questão é a de se saber o que se passa a investigar e o que se não passa investigar. Por encomenda ministerial.

Por outro lado, a separação de poderes começa no Ministério Público, pois é este que apresenta ou não ao juiz os feitos a decidir. Dirigido de fora, não é o Ministério Público quem decide o acusar ou arquivar, mas antes o poder político. E isto não tem nada que ver com preconceitos quanto a este poder. Tem que ver com democracia, com independência e isenção dos tribunais, com regras de teor democrático.

E a eficácia, sempre argumento para estas e outras coisas, não pode abstacular aos direitos, liberdades e garantias, nem estes são, só por si, obstáculos àquela. O que a história demonstra é que, a pretexto da eficácia, se atropelam os mais elementares direitos do cidadão.

No sistema implícito às propostas de Miguel Sousa Tavares e outros, a investigação depende sempre e hierarquicamente do Executivo (a Polícia Judiciária, a Polícia de Segurança Pública, A Guarda Nacional Republicana, a Guarda Fiscal, a Direcção-Geral dos Impostos, a Inspecção-Geral do Trabalho, a Direcção-Geral das Alfândegas), dado que o Ministério Público é "funcionalmente" dependente do Ministro da Justiça. Com esta dependência o edifício fica completo - a acção penal exercida pelo MP também depende do mesmo ministro, do executivo.

Não me atrevo a dizer que o Ministério Público, ao longo de todos esses anos de autonomia, tenha sido um modelo de eficácia, um modelo de produtividade e mesmo um modelo de isenção. Digo apenas, e numa só palavra, o que li, não sei onde e dito por Poincaré que

...tudo quanto seja separar justiça da política é uma questão de saúde pública...

A autonomia do Ministério Público a que MST chama de independência funcional está na Constituição, no que ele diz de "sagrada Constituição", mas não é isso que, só por si, a autoriza a prazo (pode ser alterada) importando, isso sim, saber o modelo de Ministério Público - funcionalizado ou autónomo, magistratura? O debate nunca esteve arquivado, está a aguardar melhor prova, mas virá ao de cima, penso eu. Mais tarde ou mais cedo, com estes ou outros condimentos.

Quanto à eleição do presidente do STJ por sufrágio universal, resta-me dizer que nem só o voto universal, em democracia, legitima este ou aquele poder. Mas que a legitimidade e legitimação do mesmo presidente necessita ser reforçada, isso necessita, não se limitando à eleição pelos "membros da casa". Disto tratei, com desagrado para muitos, numa pequena crónica no DN, de 24/05/04.

Alberto Pinto Nogueira

Publicado por josé 10:43:00  

2 Comments:

  1. josé said...
    Este texto, no meu modesto entender, é dos melhores que sobre o assunto tenho visto publicados.

    Poderia servir como pretexto para a discussão que se vai adiando e que vai, cada vez mais, se tornando essencial fazer:
    Que Ministério Público se pretende para Portugal?
    O modelo de António Almeida Santos/ Cunha Rodrigues/ Arala Chaves, estará esgotado?

    Há alternativas, nesta altura, e que sejam preferíveis?

    Há livros sobre o assunto, dos autores do costume.
    Porém, ninguém parece ter uma ideia precisa e clara sobre o que deve ser o MP, actualmente, de modo a concitar consenso e mostrar que ainda somos capazes de nos organizar em democracia.

    Assim, entre os argumentos de um A. João Jardim e os dos articulistas de opinião, a diferença está mais no estilo que noutra coisa: são geralmente opiniões sem fundamento que não seja o desejo de arrasar o que existe, sem saber o que virá.

    A Alemanha, a França, a Espanha, a Itália, a Bélgica, ( e só citei os mais próximos quanto ao modelo), estarão melhor do que nós?

    Vamos ficar reféns da opinião de um Proença de Carvalho ou de um qualquer Miguel Sousa Tavares que escreve bem sobre o...FCP?!
    Anónimo said...
    Há,de facto, conceitos precisos sobre o Ministério Público e um dos mais importantes, para mim,foi sintetizado pelo Professor Alberto dos Reis, perto do ano de 1901. Repito, 1901.Leiam. Esstudem e pensem, porra!
    É lamentável que os advogados que são professores nas Faculdades de Direito não saibam (não fazia parte da tese de doutoramento!!!)nada além do trivial ( e asneiroso) sobre o MP e que propaguem, pelo contrário, o sentido destrutivo e não construtivo do MP. Alguns até passaram pelo CSMP. Sim porque na Ordem dos Advogados não está ninguém de fora. Mas nos Conselhos Superiores das Magistraturas estão os senhores Advogados, nomeados pelos escritórios poderosos do Largo de S. Domingos.É tudo deles!!!
    É claro que o MP, como os Juizes, como os regimes políticos, partidos, povo, são o que os poderes dominantes, em cada momento histórico, quiserem que seja. Percam os afoitos as ilusões! Só que, cabe a cada cidadão, ao povo, e a cada um de nós,escrutinar as manigâncias dos que não querem MP eficazes.
    O problema está em que todos os governos, desde o 25dabril, nunca quiseram dar meios de funcionamento aos magistrados. Exigem, chibatem o lombo do boi para que puxe, e à frente metem um fdp qualquer ou meia dúzia que batem no fucinho do boi para que não possa andar sob pena de levar tareia.
    Isto é claro que nem água.E os culpados nem são os topos dos dirigentes políticos. São elementos (ou ex-elementos, como o Proença) internos do MP, da sua alta estrutura, bem como os acessores corporativo-políticos, dos políticos, quem realmente domina esta maçonaria toda.
    Imaginem um MP e um aparelho judicial a funcionar bem, com meios e com dignidade. Que é que aconteceria? Se calhar, muitos políticos e alguns "judicários",não podiam fazer o que fazem nem ter o que têm!!! Mais, vinha a comprovar-se quem é que desfalcou e para onde foi parar(não houve prestação de contas ou inventários, ou esquecem isso?...)o alegado cofre recheado (de ouro e não só)que o Marcello Caetano deixou em 24dabrilde74! Era uma merda, convenhamos! E as FP25?! e as FP27?! e as mafias ( em Portugal chamam-lhes lobys, tadinhos, como se os fins fossem diversos dos das mafias do tempo do mártir Procurador Falcóni e de outros). Tão a ver? E a fuga ao fisco? Tão a ver? E os~funcionários de finanças que saiem da Repartição e vão fazer de guarda-livros e técnicos das grandes empresas para as fazer ganhar $$$ com a fuga e a fraude fiscais? E as pessoas envolvidas? E os Bancos, clubes e lavagens de dinheiro da droga? Como era?
    Claro que o MP, e, desiludam-se, todo o poder judicial, em Portugal, nunca terá meios para funcionar bem! Este país, não é por acaso que, nas instâncias internacionais, é tido por país de corruptos! È pá, não ou vocês não são do ramo, ou têm andado na lua, a gozar a vida... sabem que é assim!E aí vocês são piores que os demais!
    Querem agora chorar o leite derramado? Quando outros alertavam vocês riam-se. Tomem e embrulhem, se é que estão realmente incomodados com o assunto!
    Por mim,pessoal, nunca fui desses e dei provas bastantes na vida. Muitos dos que agoram se revoltam estiveram contra os meus alertas, n vezes!
    Por mim, pouco me importa. Mandaram-me os projectos partidários do CPP para comentar. Convidaram-me para intervir no congresso da Justiça. Népia! Para quê? Para legitimar o projecto da Ordem dos Advogados (lembre-se,um orgão de soberania, de facto, e não profissão liberal!!!), pré-negociado e escrito antes do congresso?! Devem ser tolinhos! O que está decidido não carece de comentários...
    Recomendo até que sejam os arguidos a investigar-se a si mesmos...
    E que voltemos ao CPP de 1929, tão combatido pela mesma Ordem...profissional!
    Assim, o MP diz, «promo que...» e o Juiz «como se promove».E o Juiz «ao MP». E o MP: «promovo que...» e o Juiz: «como se promove». Rica vida!Muitos que agora andam a cgr. postas de pescada,--uns que em pouco mais de 10 anos chegaram a PGA e outros, mais retardadamente, a Desembargadores e Conselheiros-- passaram a vida nisto... Não sabiam?
    Ó pá,desculpem, mas não se lamentem. Conhecem a história das instituições a fundo? Isto é mesmo assim,e,lamentavelmente, é como «eles» querem que seja, independentemente do que eu ou tu opines, ou do regime político.
    Como jurista cumprirei a lei. Boa ou má, para mim é o caminho mais seguro. Mas já não tenho ilusões nem me iludem com facilidade.
    E como não tenho vocação para mártir,nem quero ser herói, cada vez mais procurarei passar o mais despercebido que puder.
    Desculpem a pesseolização, que só na aparência o é.Eu e muitos há muito adivinhavamos. Os tiós e as tiás que invadiram isto que se aguentem!!
    Só sugiro uma coisa a quem for verdadeiro magistrado: não tenha vergonha de o ser e procure descobrir a felicidade que dá ser servidor dos outros, do povo, dia-a-dia, no estudo e aplicação da lei. Seja recto,arguto,estudioso, sabedor,isento, dedicado, sensível, corajoso e vivido. Será feliz e encontrou--- apara além da noção dada do MP pelo artigo 1º, do EO/MP e dos grandes com o Prof. Alberto dos Reis-- a tal definição do que seja o MP.

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