"Entre o branco das casas e o azul esplendoroso do céu de Creta"


Esse Verão em Creta, com os meus pais e o meu irmão Rafael, faz hoje a minha ideia de Verão: um lugar de mar limpo, casas de cal, tempo livre e céus do azul esplendoroso de que nos fala a poesia de Sophia. É um Verão, claro, já construído, transformado - é para isso que serve a memória, para nós sonharmos -, um Verão feito dessa saudade boa dos dias bons. De tão interiorizado (se é essa a expressão), é até difícil falar dele. Um tempo suspenso, de cheiros, música e não-palavras. Lembro-me de sensações e de umas quantas imagens. Lembro-me de sabores loucos e comidas espantosas, dos jantares em que nos divertíamos com as experiências do meu pai, que por regra escolhia o prato mais esquisito da lista. Lembro-me de estar debaixo de água, dentro de um incrível azul transparente, olhando peixes coloridos que não tinham medo de nós. Lembro-me daquela língua estranha que as pessoas falavam (lembro-me de tudo ser novidade e espanto). Pessoas que quase pareciam portuguesas, passavam perfeitamente por portuguesas, e depois abriam a boca e o que saía era aquele mistério, tão diferente do espanhol ou do inglês, por exemplo. Lembro-me de beber muita laranjada porque tinha descoberto que se chamava «portugalada» (ou algo que soava mais ou menos assim). Lembro-me das noites azuladas e límpidas, com as estrelas bem visíveis e uma sensação de proximidade entre terra e céu. Lembro-me do dia em que rasguei a mão a nadar na piscina. O Rafael, fora da água, a olhar para mim, muito assustado. Tinha cortado a mão na borda, sem dar conta, e nem tinha reparado no sangue que se ia espalhando na água à minha volta. Uma mancha vermelha. «Calma. Não me dói nada. Está a sangrar mas não dói...» Lembro-me de estar com o meu pai no centro de saúde fazendo gestos de natação em seco e repetindo «swimming pool, swimming pool», tentando explicar ao médico o que se tinha passado. Lembro-me de nos rirmos a perder com a lembrança disso. Lembro--me de ter entrado no mar no dia seguinte cheio de cuidados. A minha mãe a dizer para eu tomar banho à vontade e eu a dizer que não, que não podia molhar a mão por causa dos pontos. A nadar à Camões, com uma mão sempre de fora. E confundo tudo e misturo tudo. Às vezes lembro-me deste Verão na Grécia com os meus irmãos Martinho e Simão, que ainda não tinham nascido, e com a Sara, que ainda não conhecia, e com o Benjamim, que ainda não saiu da barriga da mãe, porque a tal saudade boa faz-se também de um movimento para a frente, de uma vontade de futuro. Às vezes, é assim. Outras vezes, as recordações assaltam-me com a nitidez dos sonhos e tudo é tão perfeito e claro que parece impossível ter acontecido em tempo algum. Mas nessas alturas olho a cicatriz na minha mão e desduvido.

Jacinto Lucas Pires, DN

Publicado por Manuel 09:34:00  

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