"Pobre Criatura"
terça-feira, junho 22, 2004
Aqui fica mais um postal, de um colaborador devidamente identificado e que desta vez assume o pseudónimo do jornal onde pode ser lida a notícia a que se refere no texto...
Juro que me tinha jurado nunca mais falar no Homem. Sobretudo porque ele não merecia o tempo que se perde num naco de fraca prosa, como é a minha.
Há, porém coisas e situações que nos empurram para o abismo e eu, que sou de "abismos", não resisto a certas provocações. Não me contenho. Não posso. Faz-me mal à saúde física e mental.
O patético de certas conjunturas funciona de alavanca à revolta intestinal, à revolta de tudo quanto mexe, como se uma ventania abalasse os alicerces do edifício mais sólido.
Ora, penso eu, que um homem público tem de ter uma postura pública, tem de apresentar-se com dignidade de modo a respeitar-nos, a respeitar as funções públicas que exerce, a respeitar-se a si próprio.
Não digo que assuma um porte catequético, farisaico e hipócrita, como aqueles a que nos vão habituando alguns que exercem funções que não são deles, antes do Estado, ou seja, da Comunidade. Não se lhes exige que vistam Armani, Carolina Herrera, ou outro costureiro internacional que pagam com o cartão de crédito fornecido pelo respectivo orçamento do ministério onde exercem o poder que têm por seu.
Todos, contudo, temos o direito de lhes exigir que se comportem, publicamente, com o decoro, elegância e firmeza que lhes impõe o cargo que, em representação do povo, vão exercendo. Até serem substituídos, pelo voto directo, ou pelo voto de outros.
Pois vem esta lengalenga de encontro ao estupor que me atacou quando, há dias, li num jornal o seguinte:
...eu sou uma pobre criatura, que ocupa um pobre lugar...
Não acreditei que aquilo, vindo donde vinha, não era para acreditar. Era o jornal a reinar. Mas não era, estava mesmo entre aspas e fui vigiando o diário nos dias seguintes, à espera de um desmentido que não surgiu.
Das duas três, como soe dizer-se: ou a "criatura" estava a fazer moça das dezenas de milhares de leitores, ou falava o que sentia, era "uma pobre criatura" que "ocupa um pobre lugar...".
Avancei, então, nas minhas pobres cogitações e disse-me que a "criatura", pelo "pobre lugar" que ocupava não tinha o direito de me gozar daquele modo, a mim que sou cidadão que paga impostos para lhe pagarem o vencimento e não só. A mim e a tantos outros cidadãos.
Mais à frente, cogitei ainda que o "pobre lugar" não merecia ser tratado daquela forma por quem o ocupava.
Que iriam pensar os elementos da corporação que a "pobre criatura" chefia, ao saberem que eram chefiados por uma "pobre criatura" que considerava o lugar de topo um "pobre lugar"? Que eram eles, então?
Os dias foram correndo e nada se passou, o "pobre lugar" continua ocupado pela mesma "pobre criatura".
Devo confessar, sendo sincero, que, desde há muito, não penso coisa diferente do personagem em causa, mas jamais teria o arrojo de o dizer pela minha boca, não vá ser isso entendido como ofensivo. O Homem tirou-me as palavras da boca, ou do teclado, como ora é mais comum.
O que eu estranho é que se viva num país onde dirigentes com tamanha responsabilidade se permitam afirmações sem nexo e demonstrativas bastante de que não deviam nunca ocupar lugares de relevo, por falta de perfil, como para tudo se exige nesta terra que foi de poetas e ora é de não se sabe o quê.
Parabéns, Dr.Adelino Salvado. V. Excª comoveu-me.
"Jornal de Notícias, 19 de Junho de 2004"
Publicado por josé 16:31:00
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