"O Preço Judicial do Olho"

Desde tempos imemoriais que a grande quinta é do patrão. Fora do trisavô, bisavô, pai e, como hereditária consequência, dele. Esta é a ordem natural das coisas. Nunca lá mexera uma palha, apanhara uma maçã, plantara uma batata, ou colhera uma só uva, mas isso não tem nada a ver com nada. A Terra é de quem a tem no registo predial e ponto final. Sempre foi assim, sempre assim será. A Terra foi dada por Deus a uns para que outros a trabalhem para os primeiros.



Manel, e muitos outros, sempre trabalharam a terra para o patrão. Desde que se conhecem, há mais de quarenta anos.

Pelos finais dos anos oitenta, o patrão enriqueceu mais. Parece que recebeu uns largos milhares de contos de fundos da CEE para reconverter a quinta, plantar novas videiras, modernizar a vacaria.

Mas qual quê? O patrão mudou várias vezes de carro de alta cilindrada, comprou vivenda em Vila Moura, passeou-se com a “menina” por tudo quanto é mundo, restaurou a casa grande. Modernização da quinta, nada.

A fiscalização subornava-a com alguns contos que eram pessoas amigas.

Houve processos no tribunal, mas com ajudas daqui e dali, lá conseguiu safar-se: tudo prescrito.

As coisas complicaram-se porque o patrão abandonara tudo, ganhava noites e noites com gajas, gastando o que tinha e não tinha. E ainda havia o casino. E novo carro.

Com comparsas de noitadas, tudo empresários sérios e dedicados à economia nacional, caçou uma forma de continuar como patrão e como patrão de noitadas e sempre novos veículos de dezenas de milhares de contos: não pagar aos cerca de trinta trabalhadores que tinha na quinta. Que a quinta já não dava, muitas despesas, sem fundos do estado.

Claro que os amigos empresários tinham outras soluções: fechavam as fábricas, não pagavam salários e montavam a dita num país de leste de onde depois, poderiam partir para outro país ainda mais a leste, onde se pagassem meia dúzia de tostões de salários por semana.

Questão é que uma quinta se não pode meter dentro de um TIR e levá-la para leste. Tem de ficar onde está.

No primeiro mês, Manel aguentou o não pagamento em silêncio próprio dos pobres, no segundo aceitou explicações, mas no terceiro perdeu a pachorra. Que ia ele dar de comer aos filhos, que ia a patroa cozinhar? Pediu contas ao patrão. Enfureceu-se este, insultos mútuos, o patrão, como patrão que é, tem um direito que Manel não tem: a agressão. Pega num fueiro e prega-lhe uma valente sova. Nesta, enfia-lhe o dito pelo olho dentro. Vem a GNR, vem a ambulância. Manel fica sem um olho, logo o direito. Vem o Sr.procurador e há processo no tribunal. Passados dois anos o patrão é julgado, condenado numa multa e mais duzentos contos pelo olho do Manel. Os advogados logo se entendem ali e o Manel leva para casa duzentos contos em notas já com os descontos do desembolsado para o advogado.

O "juro", marcado para as nove, começou pelas três da tarde. A mulher de Manel está preocupada que já são seis e o homem sem regressar. Mas regressa pelas oito que a carreira atrasou-se. E conta da “condenação “ do patrão e do dinheiro que traz: “sempre são duzentos”. O jantar é em silêncio. A mulher a ver o seu homem sem um olho e aquele filho da... paga duzentos contos!

Tem um momento de lucidez que só as mulheres têm nos momentos difíceis. Que não, não podia fica assim, que fosse saber do advogado quanto custava o olho direito do juiz e o do procurador!

Manel não dorme, levanta-se pelas cinco, dá tacho aos galináceos e toma a carreira. O advogado recebe-o e é inquirido, timidamente . Procura nos Códigos, naquele grande, de quilos, do Abílio Neto, mas não encontra, não está lá o preço do olho dos magistrados. Nem dele, Manuel. Este ganha fôlego, pergunta, insiste. O causídico arrisca: o olho do juiz sempre valeria 10/20.000 contos, com as regras da equidade, considerando que era juiz. O do procurador sempre valeria 5/10000 contos considerando que era procurador.

Insiste que tem de prestar contas à patroa, mas já não há nada a fazer, já tinham combinado tudo com o advogado do patrão que é também amigo do advogado do Manel. E duzentos contos sempre são duzentos contos. Manuel regressa de orelha murcha e vai pensando, de si para si, a matutar: "o olho do juiz vale 20.000 contos e o meu só duzentos".

Alberto Pinto Nogueira

Publicado por josé 15:38:00  

7 Comments:

  1. josé said...
    Embora a decisão pareça vesga, fico mais tranquilo ao pensar que estas coisas só mesmo na ficção e situada no século passado...

    "Enganarei-me"?
    Manuel said...
    Acho que como elemento de reflexão basta ver os valores - de referência - que as companhias seguradoras costumam pagar relativamente a indeminizações relativas a danos corporais ou mesmo morte... Não é preciso ir mais longe.
    Kamikaze (L.P.) said...
    A estória, brilhentemente relatada, merecia, quer-me parecer, final mais condizente. Caro Pinto Nogueira: aceita sugestão de reformulção? Em todo o caso, fica feita.
    Luís Bonifácio said...
    Qual foi a indemnização total pelas 10 vítimas das FP's - 16 000 contos, salvo erro.
    Quanto pagou Pedrito de Portugal por ter estoquedo um touro na Moita? - 20 000 contos
    Kamikaze (L.P.) said...
    Oportuno comentário, Tomás... mas, como deve saber, há uma grande diferença entre o cálculo das indeminizações na jurisdição laboral e nas j. cível e penal: naquela a fórmula de cálculo é igual para todos os acidentados.
    Kamikaze (L.P.) said...
    Ou seja: é uma injustiça (e imoralidade) igualitária...
    Kamikaze (L.P.) said...
    ou nem tanto...afinal, mesmo na jurisdição laboral, vale sempre mais o olho de quem tem maior salário, né?

Post a Comment