Magistrados/Medalhados
quarta-feira, maio 12, 2004
Quando desperta a Primavera, durmo mal, ataca-me uma actividade frenética. Aguça-se-me o espírito crítico.
E desço cedo, muito cedo para a confeitaria onde, há cerca de dez anos, tomo a bica matinal e encho os pulmões de tabaco, de modo a, contra tudo e todos, higienizar a alma.
Sou aí servido, também há cerca dos tais dez anos, por uma boazona que, tendo em conta a já minha avançada idade, mais não faz que trazer-me o café, sem uma palavra a que apenas acrescenta o obrigado profissional.
Pois não é que, há dias, a dita boazona, em se me dirigindo com ar de gozo, me atirou: "Sr.dr., tem aqui o jornal, acho que vai gostar". Eu logo imaginei (os homens têm destas coisas) que a dita, finalmente, se deixara levar pelos meus encantos. Bolas, sempre era "Sr.Doutor" e dizem-me, coisa que malogradamente nunca me sucedeu, que as fêmeas de trinta apreciam os "safardanas" já de cinquenta e tais.
Rebusquei no jornal a confirmação da satisfação do meu ego, a subir, a subir... Qual quê, logo ali encontrei donde vinha o sorrisinho malandro da funcionária. Num fac-símile do DR, II-S.
Regressei lá cima, ao andar e reli, num ápice, o Pio Abreu: só podia ser, estava a delirar que é um dos sintomas dos gajos como eu, os bipolares. Telefonei logo ao mesmo a pedir urgente consulta, mas recusou, que fosse mesmo consultar o DR, sabe-se lá se o jornal da funcionária estava a bater certo com as fontes, pois nem sempre os jornais botam inverdades. Acalmei.
Cheguei à chafarica onde trabalho e pedi fotocópia. E estava lá, tendo caçado, então, todo o gozo supino da boazona.
O presidente do tribunal de uma relação minhota, preto no branco, em tom solene como compete a quem tem poder, louvava os magistrados dessa relação, por serem, vejam lá!, competentes, isentos e independentes e por se empenharem como deve ser na solução dos litígios que, pelo povo, lhes foram entregues.
Eu, que pensava que tudo isso e o mais, era do mais elementar dever de um magistrado, concluí que só naquele tribunal isso se passara.
Senti-me injustiçado, machucado, danado, roído de inveja. Logo arquitectei um plano. Merecia também um louvor, nem que fosse em forma de medalha. Peguei na máquina de escrevinhar (não uso computador que já não apanho essa complicação) e formulei, com todos os cuidados, com todas as mesuras, muito educadinho, invoquei os meus trinta e tal anos de serviço, os artigos do DR/II-S, o Código de Louvores e requeri à Hierarquia.
Nada disso, que não podia ser, que não provara merecer louvores ou medalhas, que o requerimento era provocatório e que, sobretudo e a acrescentar, não havia cabimento orçamental, dado que o que restara foi para publicar um comunicado defendendo a honra do procurador de Gondomar.
Com toda esta argumentação - pensei eu - que a sacaninha da boazona da confeitaria, uma vez mais, me tramara, como trama há dez anos, exibindo os seus dotes não curtos e que eu não podia, em fac-símile, mostrar-lhe a minha medalha.
Mais uma pedrada no meu feitio deprimido!
Alberto Pinto Nogueira
Publicado por josé 10:20:00