"O Desembargador Amado"
quarta-feira, fevereiro 25, 2004
Um texto de Eça de Queirós - da obra "O Conde de Abranhos", tal como publicado na revista do MP nº 84.
"O Sr. Desembargador Amado era de uma boa família do Norte e tivera uma carreira singularmente fácil. Dizia-se dele: “aquele deixou-se ir e chegou.”
Sustentado pela vasta influência da parentela, fora com efeito levado, sem abalos nem choques, numa ascensão gradual e confortável, até á sua poltrona de damasco vermelho da Relação de Lisboa. Aí se deixara cair com o peso da sua obesidade,e cruzando as mãos sobre o estômago, começara a ruminar regaladamente. Que de modo nenhum se creia que eu queira diminuir com azedume os méritos deste varão obeso: quero somente mostrar a natureza, toda de indolência e de egoísmo, do Desembargador Amado, ocupado em se nutrir com abundância, atento exclusivamente ao jogo das suas funções, assustado se a bexiga, ou o baço, ou o fígado denunciavam alterações, sem ter coragem de se mexer do sofá durante noites inteiras, completamente desinteressado dos homens – e mesmo de Deus.
O nosso imortal José Estêvão, vendo-o um dia numa recepção em casa do chorado duque de Saldanha, exclamou, designando-o com um verso conhecido de Juvenal:
- Aquele ventre que ali vem, é o Amado!
Era com efeito um ventre, que em certos dias da semana punha sonolentamente os óculos, e assinava com a mão papuda, onde os colegas lhe indicavam com o dedo; da sua ciência jurídica, nada direi, para não envergonhar as paredes e os móveis deste quarto onde escrevo; da sua honestidade, sei que a sua grande fortuna e as suas propriedades de Azeitão o tornavam indiferente ás tentações do dinheiro; mas condenaria Jesus e absolveria o mau ladrão, se o peitassem com um casal de patos bem gordos ou com um salmão fresco do Rio Minho.
Fazia, ao comer a sopa, um glou glou nojento e repelente, e atirava para o soalho os escarros que merecia na face. Tal era esta besta obesa. (...)
Morreu. Morreu da bexiga. (...)
O caixão em que o levaram pesava arrobas, e quando o embalsamaram e lhe extrairam o cérebro, viram que não era mais volumoso que o de um bacorinho recém-nascico. Na cavidade craniana meteram-lhe um pedaço de esponja, velha, decerto útil e tão inteligente como o cérebro que substituía!
Amortalharam-no na sua beca de cetim,- que não cobre agora um desembargador mais morto e mais pútrido do que tinha coberto nos dias de sessão da Relação de Lisboa. Levaram-no ao alto de S. João, ao passo de quatro éguas cobertas de panos negros; e as quatro éguas agitavam a cabeça, parecendo vaidosas do cadáver que arrastavam: foi o único orgulho que inspirou jamais a companhia da sua pessoa. Ali apodrece aquele resto de matéria mal organizada, que rebolou durante 60 anos pela terra, sob o nome desacreditado de Justiniano Sarmento Amado."
Sustentado pela vasta influência da parentela, fora com efeito levado, sem abalos nem choques, numa ascensão gradual e confortável, até á sua poltrona de damasco vermelho da Relação de Lisboa. Aí se deixara cair com o peso da sua obesidade,e cruzando as mãos sobre o estômago, começara a ruminar regaladamente. Que de modo nenhum se creia que eu queira diminuir com azedume os méritos deste varão obeso: quero somente mostrar a natureza, toda de indolência e de egoísmo, do Desembargador Amado, ocupado em se nutrir com abundância, atento exclusivamente ao jogo das suas funções, assustado se a bexiga, ou o baço, ou o fígado denunciavam alterações, sem ter coragem de se mexer do sofá durante noites inteiras, completamente desinteressado dos homens – e mesmo de Deus.
O nosso imortal José Estêvão, vendo-o um dia numa recepção em casa do chorado duque de Saldanha, exclamou, designando-o com um verso conhecido de Juvenal:
- Aquele ventre que ali vem, é o Amado!
Era com efeito um ventre, que em certos dias da semana punha sonolentamente os óculos, e assinava com a mão papuda, onde os colegas lhe indicavam com o dedo; da sua ciência jurídica, nada direi, para não envergonhar as paredes e os móveis deste quarto onde escrevo; da sua honestidade, sei que a sua grande fortuna e as suas propriedades de Azeitão o tornavam indiferente ás tentações do dinheiro; mas condenaria Jesus e absolveria o mau ladrão, se o peitassem com um casal de patos bem gordos ou com um salmão fresco do Rio Minho.
Fazia, ao comer a sopa, um glou glou nojento e repelente, e atirava para o soalho os escarros que merecia na face. Tal era esta besta obesa. (...)
Morreu. Morreu da bexiga. (...)
O caixão em que o levaram pesava arrobas, e quando o embalsamaram e lhe extrairam o cérebro, viram que não era mais volumoso que o de um bacorinho recém-nascico. Na cavidade craniana meteram-lhe um pedaço de esponja, velha, decerto útil e tão inteligente como o cérebro que substituía!
Amortalharam-no na sua beca de cetim,- que não cobre agora um desembargador mais morto e mais pútrido do que tinha coberto nos dias de sessão da Relação de Lisboa. Levaram-no ao alto de S. João, ao passo de quatro éguas cobertas de panos negros; e as quatro éguas agitavam a cabeça, parecendo vaidosas do cadáver que arrastavam: foi o único orgulho que inspirou jamais a companhia da sua pessoa. Ali apodrece aquele resto de matéria mal organizada, que rebolou durante 60 anos pela terra, sob o nome desacreditado de Justiniano Sarmento Amado."
Amém.
Publicado por josé 22:54:00
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