Francisco José Viegas - Sensibilidade e Bom Senso

Pois tu foste estrangeiro

Francisco José Viegas, JN de 22 de Janeiro de 2004

Em 1975, a xenofobia nacional, herdada do salazarismo e do que o antecedeu (o provincianismo pacóvio e a Inquisição), foi mais uma vez posta à prova diante da chegada de meio milhão de portugueses vindos das antigas colónias. Deserdados e hostilizados pelo poder político-militar da época, que lhes desaprovava a biografia e as ideias, os retornados mudaram Portugal em poucos anos: evitaram que a província desaparecesse de forma abrupta, transportando consigo criatividade, energia e vontade de vencer; contribuíram para mudar os hábitos e os costumes de um país medíocre cheio de moralistas pálidos e machistas. Fizeram-no contando também com a hostilidade do cidadão comum, que os considerava portugueses de segunda. Eles, sim, os herdeiros legítimos de Afonso Henriques, eram os "portugueses".

Desaprovando largamente a vinda de pretos e de imigrantes de Leste, sem falar dos brasileiros, os "portugueses" viveram os anos 80 e 90 à sombra de muito do que os estrangeiros fizeram por eles - das auto-estradas à Expo 98. Os "portugueses" não se incomodaram com o facto de milhares de trabalhadores africanos viverem em condições degradantes nos estaleiros do Alqueva, no lamaçal da Expo e nas encostas da Venda Nova. Apreciavam, até, o ponto de vista "étnico", com os bares cabo-verdianos e as discotecas angolanas, ou o serviço doméstico barato - mas nunca prestaram atenção (salvo quando eram atingidos) à espiral de violência que tomava conta dos subúrbios e lhes destruía os comboios de Sintra. Daí, passaram a olhar de viés os brasileiros: entre eles, os dentistas (que vieram tornar mais acessível o mercado) e os empregados de lojas e restaurantes (que atendiam melhor). Depois, vieram os imigrantes de Leste, que - mesmo sujeitos às mafias criminosas que andavam à solta pelo país -, pela sua competência, conquistaram lugares na construção civil, no serviço doméstico e na pequena indústria (muitos deles com qualificação superior). Isso está tudo muito bem, mas os "portugueses" também acham que eles lhes tiram o lugar (até há enfermeiros espanhóis, imagine-se), que eles acabam por subir na vida, por comprar casa e assentar família. Que eles, um dia, podem votar. Que os filhos deles, um dia, podem ir parar à Administração Pública, às universidades. Que um dia, eles - que "vieram com uma mão à frente, outra atrás", como manda dizer a tradição - vão criar empresas e enriquecer.

Esse cenário é inaceitável para os "portugueses". Que os estrangeiros e imigrantes estejam entre nós é uma coisa (podem viver nos estaleiros, apanhar o autocarro das cinco da manhã, os seus filhos tratados pelas misericórdias e organismos de "inserção social", podem as mulheres viver aprisionadas em bordéis de "empresários da noite", pela província fora, podem correr para as filas de legalização durante a madrugada). Inteiramente diferente é que façam disto a sua terra; "eles" não passam de brasileiros, cabo-verdianos, russos, ucranianos, moldavos ou marroquinos e paquistaneses. Este ano, podem entrar 6500. Os cavalheiros da indústria já vieram dizer que é pouco. O Governo mantém que basta. Se forem precisos mais (a expressão é chocante, não é?), já se sabe: entram ilegalmente. Sempre podem viver nos estaleiros, embebedar-se com vodca de Sacavém e com o tempo há-de ver-se. Não pensem é que podem ser "portugueses".

Publicado por Manuel 03:04:00  

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