"My Lady"
quinta-feira, janeiro 22, 2004
«Como Sócrates, ela era especialista numa coisa: o amor. Pouco depois da sua morte, Martin Amis falava de uma aura de sexualidade que parecia envolvê-la, apesar do seu aspecto boémio, quase vagabundo. James Atlas, que a entrevistara uma vez, lembrava-se de uma aura de santidade. Também Tom Philips, que fez o seu retrato entre 1984 e 1986, fala de uma aura, de uma presença luminosa. O quadro está na National Art Gallery, em Londres, e lembro-me dos olhos azuis, dos cabelos pintados com pinceladas verdes e azuis, e de apertar as mãos com força uma na outra, para não lhe tocar, porque quando amo alguém as minhas mãos transformam-se nas de uma cega, e têm de sentir os traços do rosto, o calor...
‘Iris Murdoch: A Life’, de Peter J. Conradi. Iris, deusa dos arco-íris. No princípio, é a história de uma princesa de conto de fadas. Filha única, a sua primeira lembrança é de estar dentro de água a nadar em direcção ao pai. Aos vinte anos, muito bonita, com enormes olhos azuis, cabelo louro pelos ombros e um sotaque irlandês irresistível, estava frequentemente apaixonada por mais de uma pessoa, e mantinha relações com muitas ao mesmo tempo. Arnoldo Momigliano, que foi seu amante anos mais tarde, disse: ‘Eu acredito que tu podes fazer milagres’. E o poeta e antropólogo Franz Steiner escreveu: ‘Não imagino que alguém possa conhecê-la e não se apaixonar’. Franz todas as noites rezava por ela e agradecia a Deus a sua existência (como o escravo de ‘Acastos’, quando lhe perguntavam se acreditava em Deus, respondia simplesmente que O amava). Franz morreu em Novembro de 1952, deixando Iris devastada.
Mas em Janeiro do ano seguinte começou uma relação amorosa com Elias Canneti (há muito dele no deus-monstro, no monstro mutilado dos seus romances). Encontraram-se pela primeira vez numa noite de nevoeiro (o maior nevoeiro de sempre em Londres); ele parecia um animal selvagem e um anjo, fazia-a sentir-se maravilhada e cheia de medo; quando foi embora, ela ofereceu-lhe uma pedra. Canetti conhecia muitas línguas e o seu grande tema era a metamorfose. Sentada nos seus joelhos, ela dizia cheia de raiva: ‘Tu és Deus Pai e sabes tudo o que eu faço e compreendes...’ Canetti acreditava em Deus e odiava-O; pensava ter vindo ao Mundo para abolir a morte. Como Iris, amava os animais, as coisas (as lágrimas das coisas), como ela tinha consciência de algo triste e profundo que está na estrutura do universo.
E Iris começou a ter medo daquele ser que se parecia tanto com ela, o seu duplo negro, e escreveu ‘The Flight from the Enchenter’, desenhando a sua fuga. A fuga tomou a forma de um casamento. ‘August 14, Married John’. Acho que John Bayley não merece mais palavras. Iris anotara no seu diário: ‘eu experimentei tudo, o que não quer dizer que tenha compreendido tudo...’; ela que queria ser pintora, poeta, historiadora de arte, arquéologa, criou um mundo em que as personagens eram aspectos de si própria. Os seus romances falam do amor, do poder, da vida como uma peregrinação espiritual (‘se Iris tinha um Deus, nunca descobriu o seu nome’). Ela dizia que não ‘jogava na primeira linha’, como Henry James, ou Dostoievski. Não é verdade. Livros como ‘The Sea, The Sea’, ‘The Good Apprentice’, ‘The Black Prince’ ou ‘The Sacred and Profane Love Machine’ estão nessa primeira linha.
Canetti refere-se a ela de uma forma violenta nas suas memórias. Bayley conseguiu a fama escrevendo dois livros (até agora) sobre a sua doença. Talvez Iris não ficasse demasiado surpreendida. Afinal sempre gostou de repetir os versos de W.H. Auden: ‘I’ve come a very long way to prove:/ No land, no water and no love!'».
«My Lady», Ana Teresa Pereira
crónica publicada a 26 de Janeiro de 2002, no suplemento «Mil Folhas» do jornal Público
Publicado por André 02:10:00
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