As preferências da Grande Loja são assim. Tornam-se referências para quem gosta mesmo muito de ler...


«No conjunto de crónicas que o Mil Folhas publica sob a designação comum de "A Quatro Mãos", Ana Teresa Pereira reaparece todos os meses com textos que provêm sempre de um certo lugar da literatura. Há nela, no trabalho de escrita de Ana Teresa, uma alucinante fidelidade aos lugares, se por lugares entendermos autores, filmes, rostos, nomes, sítios privilegiados, temas. É isso que torna as suas crónicas simultaneamente tocantes e algo previsíveis: sabemos quase sempre a quem se irá ela referir, quais os nomes convocados, mas enternecemo-nos com essa obsessão magnífica, que mostra que as coisas referidas não são meros emblemas fúteis, mas inscrições profundas e inapagáveis no próprio corpo de quem as escreve. E o que elas dizem é que tais inscrições são mensagens que anunciam e celebram em palavras o desejo de felicidade desse corpo.

Na semana passada, Ana Teresa falava de Paris e vinham em atropelo nomes muito diversos: autores como Julio Cortazar ou Tonino Guerra, Tolstoi ou Rilke, Dylan Thomas ou Tchekov, personagens como Platonov ou Hedda Gabler, artistas como Charlie Parker, Monet, Van Gogh ou Kandinsky. E, sobre o céu de Paris, um anjo desdobra o céu da literatura e da arte, e os dois céus envolvem a cidade como um manto mágico. Diz Ana Teresa Pereira: "Continuamos a perseguir qualquer coisa que não sabemos o que é, mas não fugimos, é isso que os outros não compreendem, perseguimos sempre, mesmo depois de mortos, perseguimos qualquer coisa que talvez nem exista, mas pelo menos estamos a fazê-lo em Paris."



Gostaria de sublinhar aqui diversos pontos. Em primeiro lugar, que os nomes da literatura e da arte que aparecem neste carrossel parisiense (há um ritmo circular arrebatador na cadência escrita desta crónica) não são troféus que se exibem para ostentar cultura - como tantas vezes supõem aqueles que se sentem à margem destas enumerações. São os pontos de apoio de uma vida que se procura a si mesma numa multiplicidade de obsessões, numa exuberância de lugares e que já não teria a identidade que tem se não recorresse a estas siglas. Há uma expressão recorrente, em que se diz que, se a realidade é apenas aquilo que parece ser, "então alguém está a brincar connosco". O que Ana Teresa Pereira faz em tudo o que escreve é dizer que é preciso criar uma conspiração daqueles para quem a realidade só pode ser outra coisa, e que, confrontados com um quotidiano baço, se limitam a repetir: "Tenho um terrível desejo de viver."

E por isso Paris, mobilizando uma memória polícroma, é um lugar privilegiado para quem o percorre com meia dúzia de imagens, melodias, versos ou frases obsessivas. O valor das cidades modernas está em incentivarem em nós o desejo de felicidade dos que sabemos que nelas viveram e que sobre elas sentiram e amaram. Os textos de Ana Teresa Pereira são sempre cantilenas de infância, cantigas para dançar em roda: veja-se o seu livro mais recente, um conjunto de contos, que a Relógio d'Água acaba de publicar».

«UM ANJO DESDOBRA O CÉU», EDUARDO PRADO COELHO, «O Fio do Horizonte» de 17 de Dezembro de 2003

Publicado por André 20:44:00  

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