Clarice Lispector


«Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior que eu mesma, e não me alcanço. Além do que: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano - já me aconteceu antes. Pois sei que - em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade - essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém»

«LUCIDEZ PERIGOSA», Clarice Lispector




Clarice Lispector é uma escritora a descobrir. Permanentemente. Foi ingnorada pela crítica durante décadas, pagando o preço de estar muitos anos adiantada em relação ao tempo que viveu. Escreveu romances que começam hoje a estar na lista das obras de referência da Literatura do século XX. Amarga ironia para quem quase não foi reconhecida em vida.

Nascida na Ucrânia, Clarice Lispector era judia e foi para o Brasil aos dois anos. Morreu na véspera de completar 57 anos, culminando uma vida intensa e encarada nos limites — como nos seus livros. A sua matriz cultural é brasileira, mas foi vagueando por sítios tão díspares como EUA, Suiça ou Inglaterra. Sempre livre e sempre atenta a um Mundo em ebulição, em plena II Grande Guerra Mundial.

Dona de uma visão nova e revolucionária para a sua época, pela abertura e pela originalidade, Lispector escrevia com a pele. «Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor. Que tem que ser vivido até à última gota. Sem nenhum medo. Não mata».



Mas o tempo deu-lhe razão. Os primeiros a ver em Lispector uma novidade extraordinária chegaram a compará-la a James Joyce e Virginia Wolf (no seu livro «O Lustre», a personagem feminina chama-se mesmo... Viriginia). Houve quem a enquadrasse no movimento feminista. Mas essas comparações não fazem muito sentido. Clarice é única, porque fazia da sua singularidade e da sua independência as suas maiores exigências.

Se «Perto do Coração Selvagem» ditou a novidade, «A Paixão segundo G.H.» (as iniciais de Género Humano...) será a sua obra-prima. Mas há muitos outros títulos que fizeram dela uma escritora diferente de tudo o que já se possa ter conhecido: «A Hora da Estrela», «A Cidade Sitiada», «Quase de Verdade», «A Vida Íntima de Laura», «Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres», «A Imitação da Rosa», «Água Viva», «Para não esquecer», «A Bela e a Fera», «Um Sopro de Vida», tantos outros, para além de crónica escritas com um estilo simplesmente inimitável.

Escreveu com a ferocidade com que encarava o Mundo: de forma crua, sem linhas de fronteira.


«Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo».

Publicado por André 17:42:00  

3 Comments:

  1. Wanessa Lira. said...
    Este comentário foi removido pelo autor.
    Wanessa Lira. said...
    Este comentário foi removido pelo autor.
    Wanessa Lira. said...
    Olah ..sou grande fã da Clarice ....amo este trecho mas simplesmente esqueci em que texto dela li...não lembro nem se era um conto,uma crônica ou parte de um de seus romances, se vc puder gostaria que me enviasse de onde foi extraído...

    Grata
    Wah!!!

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