Clarice Lispector
quinta-feira, novembro 27, 2003
«Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior que eu mesma, e não me alcanço. Além do que: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano - já me aconteceu antes. Pois sei que - em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade - essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém»
«LUCIDEZ PERIGOSA», Clarice Lispector
Clarice Lispector é uma escritora a descobrir. Permanentemente. Foi ingnorada pela crítica durante décadas, pagando o preço de estar muitos anos adiantada em relação ao tempo que viveu. Escreveu romances que começam hoje a estar na lista das obras de referência da Literatura do século XX. Amarga ironia para quem quase não foi reconhecida em vida.
Nascida na Ucrânia, Clarice Lispector era judia e foi para o Brasil aos dois anos. Morreu na véspera de completar 57 anos, culminando uma vida intensa e encarada nos limites — como nos seus livros. A sua matriz cultural é brasileira, mas foi vagueando por sítios tão díspares como EUA, Suiça ou Inglaterra. Sempre livre e sempre atenta a um Mundo em ebulição, em plena II Grande Guerra Mundial.
Dona de uma visão nova e revolucionária para a sua época, pela abertura e pela originalidade, Lispector escrevia com a pele. «Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor. Que tem que ser vivido até à última gota. Sem nenhum medo. Não mata».
Mas o tempo deu-lhe razão. Os primeiros a ver em Lispector uma novidade extraordinária chegaram a compará-la a James Joyce e Virginia Wolf (no seu livro «O Lustre», a personagem feminina chama-se mesmo... Viriginia). Houve quem a enquadrasse no movimento feminista. Mas essas comparações não fazem muito sentido. Clarice é única, porque fazia da sua singularidade e da sua independência as suas maiores exigências.
Se «Perto do Coração Selvagem» ditou a novidade, «A Paixão segundo G.H.» (as iniciais de Género Humano...) será a sua obra-prima. Mas há muitos outros títulos que fizeram dela uma escritora diferente de tudo o que já se possa ter conhecido: «A Hora da Estrela», «A Cidade Sitiada», «Quase de Verdade», «A Vida Íntima de Laura», «Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres», «A Imitação da Rosa», «Água Viva», «Para não esquecer», «A Bela e a Fera», «Um Sopro de Vida», tantos outros, para além de crónica escritas com um estilo simplesmente inimitável.
Escreveu com a ferocidade com que encarava o Mundo: de forma crua, sem linhas de fronteira.
«Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo».
Publicado por André 17:42:00
3 Comments:
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Grata
Wah!!!