"segredo de quê?"
sábado, outubro 25, 2003
A culpa é do sistema. Em Maio, o bastonário da Ordem dos Advogados e dirigentes do PS discutiram documentos em segredo de justiça. O bastonário não considerou que tal colidisse com o seu cargo e os dirigentes do PS também não. Em Outubro, o mesmo bastonário sugeriu que se pusesse termo ao procurador-geral da República porque este não põe termo às fugas ao segredo de justiça. No mesmo mês de Outubro, o PS considera também que as fugas ao segredo de justiça visam destruir os dirigentes daquele partido.
Ou seja, em Maio, para evitar a prisão de Paulo Pedroso, a direcção do PS procurou tirar benefício das violações do segredo de justiça. Em Outubro, a mesma direcção considera que as violações do segredo de justiça fazem parte da cabala, maquinação, urdidura, campanha... contra o PS e clama contra as violações contra o segredo de justiça. Afinal, em que ficamos?
Quer o bastonário da Ordem dos Advogados quer a direcção do PS reagiram à divulgação das transcrições das escutas telefónicas como um bando de miúdos que tivessem conseguido entrar fora de horas num supermercado para provar umas guloseimas. Uma vez descobertos, fazem tábua rasa do acto que praticaram, proclamam-se vítimas e acusam o segurança de ter adormecido e não os ter visto entrar. O que foram lá fazer? Isso agora não interessa nada. E já agora como é que os senhores souberam que nós lá entrámos?
O que chocou os portugueses na transcrição das escutas não foi ouvirem Ferro Rodrigues dizer que se estava "cagando para o segredo de justiça". Aliás é a única coisa de mais genuíno que ali se entende. Porque o que chocou os portugueses foi precisamente não os perceberem indignados com o que lhes estava a acontecer. Teria sido humano que aqueles homens gritassem ir dar uma sova no procurador ou em quem tivesse inventado tudo aquilo. Mas nada disso se ouviu. Apenas combinações de contactos. O que chocou foi não haver emoção mas sim esquemas.
De mau a piau. A velha boca dos anarquistas nos anos 70 ainda deve ser a melhor definição para as violações do segredo de justiça em Portugal. O segredo de justiça está, neste momento, em Portugal, ao nível das licenças de isqueiro. Ninguém as tirava, mas toda a gente sabia que existiam. E algum agente de autoridade, em dia de azedume, podia perguntar por ela ao primeiro fumador que lhe aparecesse.
A justiça tem de adequar vários dos seus funcionamentos e linguagem ao tempo em que estamos. O caso do segredo de justiça é claramente um deles. Dada a rapidez das comunicações e a própria evolução dos "media", o segredo de justiça acaba a funcionar de forma perversa. Ou seja, em vez de defender o nome das pessoas que estão a ser investigadas, leva a que se multipliquem as mais variadas e, por vezes, derazoadas teses sobre essa investigação. Não percebo em que possa perturbar a investigação a publicação pelo jornal "24 Horas" do acórdão da Relação. Li-o todo e após a sua leitura só posso concluir que seria bom que o outro acórdão da Relação também tivesse sido divulgado na íntegra em vez de cirurgicamente seccionado.
Não ponho em causa a necessidade de existir segredo de justiça. Mas outra coisa bem diversa é esta concepção quase casular do segredo de justiça. Como algo que preserva os diferentes agentes da justiça do contacto com a sociedade até ao derradeiro momento em que majestaticamente julga ou manda arquivar.
Por fim, sublinhe-se que segredo de justiça quer dizer isso mesmo: segredo a que estão obrigados os agentes da justiça, sejam eles advogados, juízes, procuradores... Os jornalistas não têm de zelar pelo cumprimento do segredo de justiça pela mesma razão que os advogados, os arguidos, os procuradores e os juízes não vêm escrever notícias. Aos jornalistas cabe zelar pelo direito a informar.
O circo mediático. Em primeiro lugar, há que recordar que tudo começou com uma investigação jornalística. Mais precisamente com um trabalho assinado por Felícia Cabrita. Nos primeiros dias, não faltaram elogios ao trabalho desta jornalista e dos outros que se passaram a debruçar sobre o caso. Mas, passada a fase da estupefacção e do horror perante o que acontecera àquelas crianças, começou a insinuar-se que a investigação, afinal, também não era tanta. Tudo provinha de fugas de informação. E os outros jornalistas partem de manhã a correr o país em busca de informações sobre os crimes, as falências, as OPV...? Muitas das notícias, muitas vezes as mais importantes, nascem de fugas de informações. O caso Watergate, por exemplo!
Por fim, chegámos à fase do circo mediático. Do "há que pôr um travão a isto". Entendendo-se por "isto" o interesse dos jornalistas por determinados factos. Como se os envolvidos quisessem acreditar que se esvairia o problema caso aquele magote de microfones e câmaras lhes desaparecesse da frente.
Não deixa de ser curiosa esta concepção dos jornalistas como alguém que perturba, incomoda, atrapalha o que devia ser o curso natural do trabalho dos especialistas, sejam eles juízes, procuradores, advogados, líderes partidários, governos... Concede-se que os jornalistas descubram umas coisas mas, em seguida, pede-se-lhes que se retirem porque chegou a hora de trabalhar a sério no problema. A este título é exemplar o pedido do advogado João Nabais aos jornalistas para que não perturbassem com perguntas o seu cliente. Considerava mesmo este advogado que o teor das respostas dadas por Hugo Marçal a alguns jornalistas havia contribuído para que este tivesse sido detido preventivamente. Agora que Hugo Marçal era posto em liberdade, João Nabais apelava aos jornalistas para que não lhe fizessem entrevistas. Não é aos jornalistas que cabe avaliar se o conteúdo das respostas de Hugo Marçal se adequa ou não à estratégia da defesa ou da acusação. O que pensará do papel dos jornalistas um advogado que lhes pede à porta dum tribunal para não fazerem perguntas ao seu cliente para não o prejudicarem? O que achará que é o papel deles? Perguntam quando dá jeito e ficam calados depois?...
Convém que se sublinhe que o circo mediático faz vítimas. Geralmente estas vítimas são aquelas mesmas pessoas que muito partido souberam tirar do imediatismo dos jornalistas e da sua ansiedade por uma notícia. Sendo certo que, antes de o dito circo mediático se ter instalado à volta do caso Casa Pia, juízes, procuradores, advogados, líderes partidários, governos... nada fizeram por aquelas crianças. O "circo mediático" tem contribuído decisivamente para que o mundo em que vivemos seja melhor e mais justo. Pensem como seria este caso sem os jornalistas à porta das prisões para ouvir a opinião dos familiares. Sem os jornalistas para ouvir os advogados de defesa. Sem os jornalistas para ouvir as vítimas. Quer se goste quer não, o circo mediático contribuiu decisivamente para mudar para melhor a vida das crianças da Casa Pia. Tal como serviu para libertar Dreyfus, em França. Tal como serviu para desencadear o caso Watergate. Depor Collor de Melo no Brasil...
Helena Matos, Público - 25/10/2003
Publicado por Manuel 10:52:00
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