A última tentação segundo Miguel Sousa Tavares

Há muitos anos atrás, um engraçadinho, creio que francês, decidiu escrever um livro, nada mais nada menos que sobre a Bíblia.

Pretendia demonstrar que todos os milagres citados na Bíblia, Antigo e Novo Testamento incluídos, tinham explicações "ciêntíficas".

Não interessa para o caso que algumas das naturalíssimas explicações arranjadas fossem mais  mirabolantes e implausiveis do que os "milagres" que se pretendiam desmontar em sí.

O homenzinho acabou por ficar na história não pelas explicações mas, só e apenas, pela ausência de explicação para um único milagre : a conversão de São Paulo a caminho de Damasco.

Vem isto a propósito do texto de hoje, publicado no Público, por Miguel Sousa Tavares. Confesso que o título, o pomposo "Algumas reflexões rigorosamente inúteis", convida pura e simplesmente a passar à frente e ignorar a ignóbil prosa.

Mas, o que lá está escrito é demasiado grave para passar em claro.

Demasiado grave porque revela não ignoráncia mas má fé. Demasiado grave porque apela ao que de mais baixo na natureza humana - a sobrevivência a qualquer preço. Demasiado grave porque o bravo, e corajoso, Miguel Sousa Tavares se revela no fundo um mero cobarde, que se esconde atrás de linhas e linhas, sem coragem de assumir o óbvio. Demasiado grave, porque Miguel Sousa Tavares, na sua auto proclamada qualidade de profeta, convida o País a caminhar alegremente em direcção ao abismo.

Mas vamos por partes:

1 - Com dois dias de intervalo, conhecemos dois acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa referentes à prisão preventiva do deputado Paulo Pedroso. O primeiro arrasou a investigação em curso, o trabalho do Ministério Público e a decisão de prisão preventiva do juiz de instrução.

O segundo arrasou a defesa do arguido, subscreveu por inteiro a posição do MP e do juiz, mas foi ainda mais longe: numas insólitas e deslocadas considerações, dedicou-se também a arrasar o carácter do suspeito, num tom de ódio que se percebe extensível a toda a classe política.

Mais do que decidir que a prisão preventiva era legal, os desembargadores passaram directamente à sentença condenatória, acrescentando-lhe o enxovalho do arguido e um panfleto político para destinatários certos.

Socorrendo-me do "Dicionário da duplicidade quotidiana", de Pacheco Pereira, confesso que "nunca antes" tinha visto tal coisa.

Mas os tempos vão, de facto, para coisas nunca antes vistas.

Aprecie-se a esperteza saloia do Tavares : O primeiro acordão, o da libertação, não é questionado nem por um nano-segundo, isto apesar de todo o País saber hoje as circunstâncias peculiares que rodearam a sua elaboração: o Processo não foi consultado, não foi aprovado por unanimidade, aproxima-se mais de um manifesto planfletário destinado a consumo da comunicação social e deíficação do Pedroso, etc, etc.

O segundo, aprovado por unanimidade, por gente que se rebaixou ao ponto de - magna heresia - consultar o processo, quando, a inocência de Pedroso e a ausência de pressões saltam à vista de todos, é esse sim enxovalhado.

Miguel Sousa Tavares pode não ter qualificações para mais nada, mas só pelo ponto 1, tem de certeza qualificações para ensinar jornalismo na Coreia do Norte ...

2 - Tento não formar juízes fundados apenas em sinais exteriores, mas não consigo deixar de achar preocupante o "show-off" de que se rodeia o juiz Rui Teixeira, publicitando o seu culturismo ou o todo-o-terreno e passeando-se de seguranças para todo o lado, como se estivesse ameaçado pela Máfia ou pela ETA. Acho preocupante o relato que li no "24 Horas" de que, anteontem, ao condenar um homicida da mulher a 19 anos de cadeia, Rui Teixeira "arrasou" o réu, dizendo-lhe: "Infelizmente, o senhor existe." Acho preocupante, a ser verdade, aquilo que Paulo Pedroso contou ao PÚBLICO: que, durante todo o interrogatório perante o juiz, Rui Teixeira nunca o tratou por "senhor deputado", "senhor doutor", "senhor Paulo Pedroso" ou, ao menos, por "senhor Pedroso". Tratou-o sempre e só por "senhor Paulo". E Paulo Pedroso e o seu advogado ficaram-se.

Passe a anedota que é o introito, o Processo é de facto "inócuo" : já fez correr mais tinta que todo e qualquer processo nos últimos 100 anos - mas é tão inócuo que nem se percebe aliás porque razão se dá o Tavares ao trabalho de escrever por causa dele. De qualquer modo, e só por este introito,  quando o Berlusconni precisar de um novo ministro da Justiça aquí o nosso Tavares tem as credenciais exactas para substituir o actual lá do sítio. 

De seguida o  Tavares, muito pouco criativo, decide entrar na mesma linha do Prado Coelho no dia anterior, e indigna-se pela história do "senhor Paulo". Infelizmente para Tavares todos somos iguais perante a Constituição independentemente do título, seja ele conde, doutor, Tavares ou deputado. É uma chatice para a costela monárquica do Tavares mas a igualdade perante a Lei, às vezes pelo menos existe!

3 - As alegações completas do Ministério Público no recurso da prisão preventiva de Paulo Pedroso, incluindo a transcrição integral das escutas, veio publicada esta semana como suplemento de 12 páginas no jornal "24 Horas". Repito: as alegações completas, com indicação de origem e tudo. Segredo de justiça? Lealdade processual? Presunção de inocência? Direito ao sigilo da correspondência de quem não é parte em processo nem suspeito? O que é isso? Repito o que disse há dias: a PIDE também escutava, mas, ao menos, não publicava as escutas.

É pena, que para nós reles mortais, o Tavares, não tenha fornecido uma e uma única prova de que foi o MP, ou alguém ligado à investigação, que libertou a papelada... Para ele, a divindade, o iluminado, deve ser mais que óbvio, mas, para nós reles mortais, onde estão as provas ? Para todos os efeitos, isto até podia estar no defunto "muito mentiroso"  já que o grau de sustentabilidade é exactamente o mesmo.

4 - Não aguento o farisaísmo do PSD em toda esta história, repetindo até à náusea a sua jura eterna no princípio da separação de poderes, como se fosse isso que estivesse em causa. O "Dicionário da duplicidade" de Pacheco Pereira sofre de uma falta de memória selectiva: no passado, quando as fugas e os julgamentos mediáticos atingiam os ministros de Cavaco, não foram só Mário Soares e Proença de Carvalho quem se indignou. Muitos outros o fizeram, pelas mesmíssimas razões que o fazem hoje e que são as inversas que levam outros a agora calarem o que dantes os indignava. O mais grave é que não se trata apenas de duplicidade: trata-se de uma estúpida tentativa de viver de cabeça enterrada na areia enquanto se espera que a borrasca não saia de cima do telhado do vizinho. Mas leiam o acórdão da Relação de que acima falei e vejam se abrem esses olhos cuidadosamente fechados e percebem o que está em jogo.

Aquí o Tavares, ensaia uma de Mephistofoles de vão de escada, tentando seduzir o PSD e o Governo não para a tese da cabala, mas para a tese do pântano, já soberanamente desmontada pelo Francisco José Viegas ...

5 - A facilidade com que a defesa de Hugo Marçal destruiu as "provas" laboriosamente recolhidas por uma superequipa de investigação, em nove meses de trabalho contínuo, forçando Rui Teixeira a soltá-lo, é preocupante e explica muitas das coisas já antes vistas: sempre que há fugas de informação na fase de instrução de processos que envolvem figuras públicas, sempre que começam a aparecer notícias cirúrgicas do tipo das testemunhas ameaçadas e juízes que requerem segurança, eu já sei do que se trata: a investigação está a patinar. Atente-se no caso, completamente diferente, do pedófilo "Mike", que se dava ao luxo de filmar abundantemente as sevícias a que submetia as crianças recolhidas no Parque e algures, deixando pelo caminho um mar de provas, e que teve esta semana drasticamente reduzida pelo Supremo a pena solicitada pelo Ministério Público: as testemunhas "sólidas" foram dispensadas, os indícios esfumaram-se, as provas reduziram-se ao mínimo. E o "Mike" está, aliás, em parte incerta. Terão sido "pressões políticas" a inviabilizar uma investigação capaz? Quem é o Mike?

Passando à frente da questão dos 900 km/hora do Marçal de vamos directos ao que realmente interessa: Ou o Tavares sabe algo sobre o Processo do Mike de Oeiras que nós não sabemos, e aí devia explicar, ou está na melhor linha do muitomentiroso, a atirar lama para o ar e a difamar as instituições! Quem é o Tavares ?

Para finalizar ainda sobra tempo ao Tavares para perorar  sobre  Carrilho  e o PS.  Sobre  o PS já aquí dissemos que a questão da liderança é um problema estrito dos seus militantes embora seja dramático ver um País com um Governo, globalmente, rasca com uma oposição à rasca . Sobre  Carrilho, e independentemente dos seus timings e motivações, tem uma dignidade e uma coragem que o Tavares nunca teve ...

Há muitos Tavares neste País, especialistas sobre tudo mas nunca dizendo nada, mas sempre com uma perfeita noção de timing. Para este Tavares, o timing é tudo. É a arte de nunca dizer mal, nem antes nem depois do tempo, é a maldicência elevada à categoria de um bocado de cortiça. E agora, meus caros, o timing é o de apelar ao bom senso, a uma certa auto-censura do sistema judicial, não directamente que isso queima, mas lançando o medo, a incerteza e a dúvida.

Se o Tavares fosse um Homem, com tudo no sítio, dizia, alto e a bom som, aquilo que ele e muitos pensam em surdina : Que é preciso, imperativo até, acabar com as investigações, à canelada, ou de que forma for, para que muitos que hoje são "heróis" não acabem "enterrados" como vulgares criminosos. Afinal é a isso que se resume o seu texto depois de espremidos ...

Mas Tavares é um cobarde, limita-se a atirar as pedras e a esconder as mãos ...

E infelizmente não só "existe" como há gente que se deixa levar por ele ...

Publicado por Manuel 22:04:00  

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