O ópio da intelectualidade lusa

Como leitura de fim de semana, e para destoar um pouco das habituais catilinárias aqui publicadas, contra o agente da agit-prop, da causa pró-governamental, ficam dois textos sobre um assunto interessante, mas ainda assim, desprezado pela intelectualidade lusa: as diferenças entre a esquerda e a direita, à luz das ideologias fenescentes.

Vital Moreira, como é sabido, assume o fato de esquerda, quase todos os dias. Fato-macaco, claro; e que despia, logo que tomava assento no Conselho Geral e de Supervisão da EDP, ao lado de Vasco Melo e outros dignos próceres da Direita mais retintamente inclassificável: a dos negócios. Isso, antes de o senhor Khalifa, ter tomado o lugar do nosso califa da causa.
Nessa área de penumbra, ninguém sabe onde fica a Direira e a Esquerda e Vital, sente-se manifestamente à vontade no meio. É uma espécie de pezinho que põe para mostrar à-vontade na dança dos notáveis nos negócios. O pezinho direito, porquanto o esquerdo fica sempre atrás…
Logo que abandona a sala, recolhe o pezinho maroto, veste novamente o fato-macaco e põe o auto-colante de Esquerda. Passa a ser de Esquerda, porque sim e que ninguém afirme o contrário- porque não?
A Esquerda, para Vital, como se pode ler a seguir, é um lugar de eleição, literalmente.
Para um outro,para João Cardoso Rosas, intelectual e professor dessas coisas, desiludido da dicotomia velha, deixou de existir qualquer diferença entre a Esquerda do PS e a proclamada Direita do PSD e CDS, porque são todos da social-democracia, com assento seguro no liberalismo económico e nos caminhos que lá conduzem, pelo pragmatismo que já invadiu a área ideológica.
Ora leiam, sff, que vale a pena.




Por Vital Moreira

No seu último artigo no Diário Económico, intitulado "Adeus socialismo", o filósofo social João Cardoso Rosas defende que as ideias socialistas caducaram no mundo de hoje, mesmo para as correntes políticas que se reclamem delas, dada a conversão universal ao capitalismo de mercado. Sem ser inédita nem destituída de aparente sentido, a tese não é, porém, convincente.

Em primeiro lugar, o "socialismo democrático" não se afundou juntamente com o desabamento quase universal do comunismo há duas décadas. Desde a dissidência leninista a seguir à revolução russa de 1917, que deu origem à cisão do movimento socialista e à criação dos partidos comunistas em numerosos países, foi sempre óbvia a diferença entre o "socialismo socialista" e o "socialismo comunista", quer quanto ao modo de transformação social, quer quanto ao modelo da sociedade socialista a erigir. Como é bom de ver, a queda do Muro de Berlim significa metaforicamente "adeus Lenine" e o fim do comunismo, mas não afecta essencialmente o socialismo democrático, que aliás viu vindicada a sua crítica histórica ao leninismo e ao socialismo soviético.

Em segundo lugar, foi muito antes do fim do comunismo que os partidos socialistas e social-democratas - a começar com o SPD alemão, no célebre congresso de Bad Godesberg de 1959 - abandonaram a ideia da "economia socialista", enquanto sistema económico alternativo ao capitalismo, baseado na "socialização" generalizada dos meios de produção. Aliás, isso mesmo resulta da adesão de todos eles à UE, desde o início baseada numa "economia de mercado assente na livre concorrência" (como estabelece o Tratado de Roma, de 1957). O próprio Partido Socialista francês, um dos mais conservadores nesse aspecto, acaba de propor uma nova declaração de princípios onde não existe o mais leve traço de socialismo económico, substituído pela adesão a um projecto de "economia ecologista e social de mercado". Por isso, hoje ninguém espera, ou teme, que um governo socialista desate a fazer nacionalizações a eito. Portanto, não há nenhum engano ou equívoco quanto a esse ponto.

Por último, mas não menos importante, apesar do abandono da "economia socialista" pelas correntes e partidos socialistas na actualidade, não é ilegítimo que conservem a antiga denominação, dado que continuam a lutar pelas suas principais bandeiras na esfera social, designadamente direitos sociais, inclusão social, coesão social, Estado social, enfim, justiça social. Essa "marca de água" das ideias e dos partidos socialistas permanece. Liberal na política e nos costumes, mas agora também na economia, o socialismo contemporâneo continua porém a ser caracterizado pelos seus objectivos de maior igualdade e justiça social, que se reflecte em especial na política social, na política fiscal, na política educativa, nas "políticas afirmativas" de igualdade, etc.
Em suma, os partidos socialistas há muito abdicaram do "socialismo económico", mas os ideais socialistas nunca se limitaram a isso. Por isso, dizer "adeus ao socialismo" seria, por um lado, redundante e, por outro lado, injustificado.

É evidente que não existe equivalência absoluta entre esquerda e socialismo. A noção de esquerda é um conceito relativo, tendo como contraposição a direita, num continuum posicional gradativo que vai desde a extrema-direita à extrema-esquerda. Já a noção de socialismo tem a ver com objectivos identificados de transformação e de justiça social, pelo que tem um sentido mais preciso e menos relativo, embora se possa ser mais ou menos socialista. Pode, portanto, haver uma esquerda não socialista, que, defendendo embora tradicionais valores de esquerda - como a igualdade, a democracia participativa, a laicidade do Estado, a escola pública, a liberdade dos costumes, etc. -, não compartilhe, porém, dos objectivos sociais típicos do socialismo.

Todavia, embora a hipótese de uma esquerda não socialista não seja irrealista, com mostra o caso do Partido Democrata nos Estados Unidos, partido de esquerda liberal sem grandes traços socialistas - ressalvadas as políticas sociais de presidentes democratas como Roosevelt, Johnson, Kennedy e Clinton -, já na Europa, por razões ligadas às suas tradições políticas e culturais, bem como às vicissitudes da sua história económica e social, não se afigura sustentável uma esquerda politicamente relevante fora do quadro socialista. O recente insucesso do novel Partido Democrata italiano, aliás herdeiro do antigo Partido Comunista italiano, que tentou emular o paradigma norte-americano (até no nome), revela os limites da reconstrução política à esquerda com abandono da herança e dos referenciais socialistas.

Sem dúvida que os partidos socialistas e social-democratas em geral, sobretudo os de vocação governamental, estão a passar por um processo de modernização que inclui a adopção de muitos valores alheios à tradição socialista, desde a conversão à economia de mercado e à concorrência até à liberalização das utilities, desde a disciplina monetária e financeira até à "nova gestão pública", desde o valor da segurança pública até à competitividade empresarial. Mas, para além dos bons fundamentos desta modernização - que, em geral, não é de esquerda nem de direita, mas apenas exigência de bom governo -, nada disso exige o abandono dos traços propriamente socialistas da esquerda. Pelo contrário, sem bom desempenho económico e sem eficiência na gestão pública não pode haver margem para políticas sociais de esquerda.

E, acima de tudo, a realidade política mostra que, para além de injustificado, o abandono das ideias e propostas socialistas teria por consequência deixar à extrema-esquerda o monopólio de um património de representações e de referências que pertencem à memória e à identidade da esquerda socialista, e cujo valor ainda não se esvaiu.

(Público, terça-feira, 13 de Maio de 2008)

Por João Cardoso Rosas

Na sua crónica de anteontem no “Público”, Vital Moreira critica, com a probidade e o rigor intelectual que são seu timbre, o artigo que aqui escrevi na semana passada “Adeus socialismo”. Nesse artigo, eu defendia que o projecto histórico do socialismo, nas suas diferentes formas, está hoje esgotado. Vital Moreira contrapõe que esse esgotamento afectou o socialismo comunista, mas não o socialismo democrático. Retomando os termos do próprio Vital Moreira, parece-me que a sua tese, não sendo embora inédita, não é convincente.

É inteiramente verdade que o socialismo democrático, sob a designação “social democracia”, se demarcou desde cedo do marxismo (com Bernstein). Este socialismo democrático abandonou a visão dialéctica da história e a ideia de revolução social, para passar a aceitar as liberdades básicas e o processo político democrático. É também verdade que o socialismo democrático abdicou, desde finais dos anos cinquenta (especialmente no PT britânico e no SPD alemão), da estatização da economia e da sua direcção centralizada como caminho para a sociedade socialista.

Mas é precisamente devido a este processo secular de distanciamento em relação à matriz marxista que convém inquirir sobre o que distingue, afinal de contas, o socialismo democrático do liberalismo. Julgo que a única distinção possível reside na desconfiança do socialismo face às liberdades económicas e ao funcionamento do mercado livre (o que pode conduzir à socialização de alguns meios de produção, ou à resistência à sua privatização). Não é assim no pensamento liberal. Os liberais aderem às liberdades económicas e ao mercado por razões de eficiência, mas também por razões morais. Os liberais consideram que a economia capitalista, para além de ser a única que funciona bem, é também aquela que melhor assegura a autonomia individual e a manutenção de uma sociedade livre. Os socialistas, por seu turno, consideram que a liberdade económica e o mercado escondem a pura lógica dos interesses que nenhuma “mão invisível” consegue compatibilizar. Os socialistas podem aceitar a liberdade económica e o mercado por razões de eficiência, mas fazem-no com uma relutância baseada em princípios.

No entanto, até mesmo este socialismo residual deixou de fazer sentido depois do fim da Guerra Fria, num contexto de expansão da democracia liberal e de abertura de espaços de troca de bens e serviços e de circulação de pessoas cada vez mais vastos. Neste quadro, um país que queira ater-se ao que restou do socialismo está condenado ao isolamento, ao empobrecimento e, no limite, à sua autodestruição como entidade viável. Por isso, muitos partidos ditos socialistas adaptaram-se – e ainda bem – ao novo contexto. Como reconhece Vital Moreira, eles passaram a ser genuinamente liberais na política e na economia; mas associaram o seu liberalismo de base à defesa dos direitos sociais, da justiça social, etc. Ora, o grande equívoco de Vital Moreira consiste em pensar que a defesa deste conjunto de valores configura ainda uma forma de socialismo.

O programa político que Vital Moreira considera socialista é, na verdade, o programa do liberalismo social tal como foi pensado desde Stuart Mill e, muito especialmente, pelo chamado “novo liberalismo”, associado a autores como John Rawls, Ronald Dworkin, Bruce Ackerman, Amartya Sen, etc. Estes autores representam um pensamento inquestionavelmente de esquerda, mas que não é socialista. Parece-me que eles fornecem também o melhor enquadramento teórico possível para a acção política de muitos partidos ditos socialistas na actualidade. Neste sentido, também os argumentos que Vital Moreira costuma apresentar em defesa das políticas prosseguidas pelo actual Governo do PS se inserem muito melhor numa visão liberal social do que na tradição do socialismo democrático. A única vantagem inerente à utilização de uma linguagem socialista, como Vital Moreira acaba por reconhecer no final do seu artigo, é de natureza simbólica e estratégica: ela impede que a extrema esquerda se aproprie desse património. Porém, o meu argumento sobre o esgotamento do socialismo enquanto projecto político é de cariz substantivo e não meramente estratégico.
Vital Moreira, promete polémica. Veremos, então, a seguir, como a vai desenvolver. Aqui serão dados os resultados e comentados a preceito. O tema tem interesse; quase ninguém o debate publicamente; e no fim de contas, os polemistas, são professores universitários de ciências da política. Um, prefere por vezes a política da causa; outro, abandonou a causa da política.
Isto promete.

Publicado por josé 10:45:00  

1 Comment:

  1. Vasco said...
    O engraçado é verificar como fora dos países centrais o socialismo está cada vez mais vivo fruto do beco sem saída em que a "Social-Democracia" capitalista está (terá já esgotado todos os seus truques para dar cobertura ao sistema capitalista?). A esmagadora maioria do planeta mostra todos os dias como o Socialismo é urgente e como Marx, Engels e muitos outros estavam muito à fente do seu tempo nas análises e trabalho que construíram.
    Os fracassos, como bem explica o método científico, servem para com eles se aprender. E apesar deles a ideia Socialista vive e assusta muita gente, essencialmente a preocupada com os seus interesses, negócios... Tal como o Capitalismo não vingou à primeira tentativa, ninguém pode enterrar o Socialismo e a sua crítica e alternativa ao Capitalismo só porque as primeiras tentativas, de aprendizagem necessária, falharam. Se calhar já cá não estaremos para ver quem tem razão... Mas como nada é eterno, o Capitalismo também há-de cair e ser substituído por um outro sistema, esperemos, mais avançado, mais justo. O único que até hoje soube dar uma resposta teórica (e não só) objectiva a muitos dos problemas do Capitalismo foi o Socialismo. Já antes de Marx e Engels que dele se falava. Não foi inventado do ar... foi fruto de muita experiência e análise dos mecanismos históricos sociais, económicos, etc, apesar de muitos dele se terem apropriado para em contextos de assalto ao poder para fins ditatoriais, desviantes (tal como o Capitalismo...). E a História também nos ensina que em tempos de crise, como a actual, o autismo do sistema se exacerba exponencialmente e que a repressão aumenta proporcionalmente. Não nos podemos esquecer de que muitos pacotes legislativos estão já em vigor para dar legalidade à repressão que se adivinha. O Patriot Act nos EUA é um deles... Mas na Europa percorre-se o mesmo caminho a passos largos. Novas formas de fascismo estão a bater-nos à porta e, ironicamente, trazidas pela mão da "Social-Democracia"... aguardemos pelas cenas dos próximos capítulos.

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