A utopia ao virar da Esquerda IV

A Esquerda não será um todo? Há esquerdas diversas e diversificadas do pensamento que as une? E qual é esse pensamento básico, originário, fundamental? É possível defini-lo, de modo a circunscrever uma Esquerda modelo, de modo a sustentar que determinadas ideia são apanágio típico da esquerda e outras o não serão?

Nos escritos antecedentes, propus uma ideia distintiva: a crença inabalável na igualdade dos Homens e por arrastamento e acrescento, a sua bondade intrínseca.

Na discussão filosófica que se poderia seguir, mas não segue, há quem tenha organizado bibliotecas, sobre essa ideia simples.

Assim, aqui, há apenas afirmação empírica e tão válida como o seu contrário: não há distinção entre Esquerda e Direita que possa fazer-se por aqui, neste campo semântico da igualdade do Homem.

Portanto, para operar com ideias e conceitos mais ou menos consensuais, haverá que buscar noutros lados e paragens, os paradigmas.

Poderia assim sintetizar-se que a Esquerda defende, desde sempre, os valores do igualitarismo e da solidariedade, com a protecção dos mais fracos e principalmente a ideia básica de que o colectivismo e acção colectiva se torna indispensável para prosseguir e defender esses valores. Daí o papel do Estado a sua intervenção determinante na definição de políticas sociais e não só.

Ora, virando a agulha em direcção a Portugal, quem, de entre todas as forças políticas, prosseguiu estes objectivos com maior afinco e determinação?

O Partido Comunista Português, sem dúvida alguma. O Partido, concitou a atenção de muitos intelectuais, antes e depois do 25 de Abril, encantacos com ideias simples, enunciadas por Marx, Engels e ainda Lenine, mais prático e operacional. Algumas dessas ideias simplistas e de filosofia antiga e eventualmente inspirada em Hegel e demais pensadores da margem correcta, podem enunciar-se de modo a todos entenderem:

Toda a História é a história da luta de classes.”

"De cada um segundo as suas possibilidades, a cada qual segundo as suas necessidades.”

“A Religião é o ópio do povo.”

Todo um programa político nasceu destas simples ideias que arrastaram multidões de fanáticos e ainda mais de carenciados pela economia do começo do século. Na Rússica czarista, foi implantada a primeira experiência de Estado, em que estas ideias foram tomadas como dogmas e formado um partido que congregou as aspirações populares, tendentes ao desaparecimento do Estado, logo após a destruição das classes, principalmente a opressora, identificada como a burguesia. A teorização do comunismo é arrogantemente simples e sustentada por aparentes evidências que só se revelaram logros, para o mundo dos anos oitenta e após experiências económicas e sociais catastróficas.

O Partido Comunista Português, à semelhança de outros partidos comunistas, foi um dos que sustentou em Portugal, a validade intrínseca dessas ideias que se estendem por toda o espectro social, económico, artístico e abrange todos os sectores da vida do Homem. Tal como o Humanismo, ao comunismo nada é estranho desde que tenha a ver com o Homem em articulação colectiva.

O seu líder mais carismático e intelectualmente superior, Álvaro Cunhal, declarava simplesmente, no tempo em que a utopia parecia à mão de semear:

Para nós, marxistas-leninistas, o Estado é o instrumento de dominação de uma ou várias classes sobre outras classes. (…)
Criar um Estado democrático significa criar uma política democrática, um exército democrático, uma justiça democrática(…).

E para que não houvesse qualquer dúvida sobre o pansocialismo:

Para quem lute pela transformação progressista da sociedade é justo defender que o artista ( porque a sua obra intervém na sociedade e é um elemento e um factor de emoções, sentimentos e ideias) leve à sociedade com a sua obra uma mensagem que integre valores de classe que, num momento histórico dado, constituem a força de transformação voltada para o futuro.”- Álvaro Cunhal, em A Arte, o Artista e a Sociedade.

Esta visão do mundo e das coisas, determinou programas políticos em Portugal, discursos estruturados e luta política acesa, dentro e fora das instituições a ela vocacionada e influenciou opiniões ao longo dos anos, directa e indirectamente. Opiniões determinantes para opções políticas.

Em 1974 e durante vários anos, o Partido Comunista Português, foi uma das forças mais influentes na determinação das políticas concretas tomadas pelos vários governos por uma simples razão: as ideias comunistas, de Esquerda, foram dominantes na Constituição de 1976, por adesão e aprovação dos partidos maioritários, com destaque para o partido Socialista e por via travessa, diversas ideias de esquerda fizeram caminho, completamente livre de obstáculos, durante anos a fio, em Portugal.

A Constituição aprovada em 1976, apenas com o voto contrário do CDS, dizia expressamente no seu primeir artigo programático:

"Portugal é uma república soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes." O artigo seguinte, fala expressamente no "exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras"

Estas afirmações, absolutamente marxistas e de Esquerda, matniveram todo o seu valor e actualidade, até finais dos anos oitenta e o programa se lhes seguiu, continua a insistir em ideias tipicamente de esquerda, se bem que podadas do marxismo-leninismo das anteriores.

O Partido Socialista foi fundamental para que estas ideias ficassem assim plasmadas na Constituição portuguesa, pelo que é de elementar justiça afirmar que o PS sempre se reclamou de esquerda e não enjeitou o marxismo, tal como se apresentava - programático e ideal.

Pode argumentar-se que o Partido Socialista não comunga das ideias colectivistas e totalitárias do comunismo o que é verdade evidente.

Mas o partido Socialista é, actualmente, após guardar o socialismo na gaveta, o que aliás só aconteceu, em data bem posterior ao 25 de Abril, uma força que continua a reivindicar-se "de Esquerda".

As nacionalizações de 11 de Março de 1975, uma das mais evidentes manifestações da vontade da esquerda em colectivizar a economia, tiveram o apoio incondicional do PS.

Aliás, sem perder muito mais tempo com esta questão que parece pacífica, no recente livro acerca da história do PS, dá-se conta da génese do partido: em que "convergiam várias tradições, a democrática republicana e liberal, a socialista portuguesa do primitivo PSP, as correntes neo-marxistas dos anos 60, a corrente leninista pretensamente purificada das deformações estalinistas e uma corrente trotskista. "

Não há neste PS a mais leve afloração de Direita assumida, pelo que Esquerda é a margem em que o partido se coloca sempre, independentemente de acusação da Esquerda comunista de que governo PS faz a política da Direita.

O partido Socialista é um partido social-democrata, tal como o PSD. A diferença entre ambos, programaticamente, é nula, porque partem ambos, na raiz, do revisionismo das ideias comunistas de Esquerda.

O teórico Bernstein, entendia a revolução popular como improvável, devido a entendimentos prosaicos da natureza humana, em que se percebia a tendência para o bem-bom e aburguesamento dos trabalhadores. Tal verificação prática e empírica, levou ao abandono da ideia de revolução socialista e à contemporização pela mudança do capitalismo, gradual, por dentro do sistema e em conquistas graduais e regulares de poder, o que diferencia os partidos social-democratas do modo radical, defendido pelos leninistas e bolchevistas.

Mesmo assim, serão os partidos social-democratas parentes da Direita ou herdeiros directos da Esquerda? A resposta, neste contexto, de tão óbvia que é, prescinde de mais explicações.

Assim, em Portugal, ainda antes de 25 de Abril, nos principais media lidos e com interesse, passou a exprimir-se opinião sobre os mais diversos assuntos e a relatar notícias e fazer reportagens, de um ponto de vista prometido: o da futura libertação do jugo ditatorial imposto à sociedade portuguesa por Salazar e Caetano.

A vontade de mudança era tamanha e com tão elevado grau de desejo que em 25 de Abril de 1974, a explosão social foi das mais impressionantes de sempre, em todo o mundo, numa revolução pacífica ( meia dúzia de mortos, se tanto e poucas prisões).

O Povo estava efectivamente com o MFA da primeira semana de Revolução.

O que é que aconteceu depois, para a tomada de poder da Esquerda em toda a linha e em todos os domínios, incluindo o judiciário, o da educação pública, das opções económicas e principalmente, no domínio da opinião pública e publicada? Aconteceu uma razia. E disso se dará conta a seguir.

Nota: em resposta às observações judiciosas de JSC, no Incursões, espero apenas que me faça justiça de não escrever que a afirmação de domínio da Esquerda se deveu exclusivamente à intervenção de cronistas e opinadores em geral. Isso é ver a árvore. A floresta, reside no "pathos", no ambiente que se instalou e generalizou. Coisa inefável, mas sentida e real e de que esses opinadores dão devida conta. E só por isso são citados. Porque não havia outros, entenda-se.

Publicado por josé 15:06:00  

3 Comments:

  1. Anónimo said...
    Este comentário foi removido pelo autor.
    lusitânea said...
    Concordo com a sua análise.Até com essa afirmação lá para o fim de que o povo estava com o MFA na 1ªsemana.Também eu , mas só durou mesmo essa semana...
    JSC said...
    Caro José

    Julgo não ter entendido mal, mas creio que foi você que tentou demonstrar, com recortes e tudo, que os jornais à época eram dominados pela esquerda e que foi esta que nas últimas dezenas de anos impôs o discurso único. É óbvio que não só não subscrevo esta tese como penso que a partir deste pressuposto, para analisar o desempenho do multifacetado binómio esquerda / direita, nos últimos 30 anos, não o pode conduzir a conclusões fiáveis. Este é pelo menos o meu entendimento.

    Confesso que também não vejo mal nenhum em existirem forças políticas com discursos estruturados e forte intervenção ideológica. Pior, muito pior, é a lassidão de ideias em que vivemos, em que tudo se mistura e confunde sob o manto do cinzentismo e do clientelismo

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