Sombras do passado











Estaline. Rússia. A revista francesa L´Express desta semana tem a capa e um artigo de fundo, como nunca veremos por cá, consagrados ao ditador russo, apresentado como o antepassado directo de Putin e o que explica a Rússia actual.

Vladimir Fédorovski, escritor, ex-diplomata, dedicou à personagem histórica um livro – O Fantasma de Estaline e diz na entrevista: A personagem de Estaline é a chave do funcionamento da Rússica actual. Mais de 30 museus foram-lhe consagrados nestes últimos três anos. Vladimir Putin, cita-o nos discursos e os jovens são atraídos à sua imagem. Putin pede emprestado a Estaline o tema da Rússia como cidadela cercada, o governo do terror, a nomenklatura renovada e sobretudo, o recurso a um passado inventado. A diferença entre ambos, é que Estaline evocava uma personagem de Shakespeare, enquanto Putin, faz pensar no Espectro, dos livros de James Bond.

O artigo do L´Express, da autoria de Jean Jacques Marie, historiador, especialista da URSS, também biógrafo de Lenine e Trotski, começa com uma citação de Churchill : “Temo que tenha sido morto o porco errado”, referindo-se a Hitler e Estaline.

Apesar dos milhões de mortos, que impressionarem mesmo Lenine que terá dito que Estaline era demasiado brutal, este triunfou, na União Soviética e tornou-se em pouco tempo o "pai dos povos", o ídolo adorado, mesmo no Ocidente, pelos comunistas em ascensão. Em 1929, com 50 anos, Estaline, tinha eliminado a oposição à esquerda e à direita, ficando na posição de senhor absoluto que lhe permitiu abusar do culto de personalidade, começar uma colectivização forçada das terras, com perseguição aos camponeses que provocou milhões de mortos e um êxodo rural nunca visto na História, acompanhado da formação de campos de concentração na Sibéria, para os adversários das políticas do “pai dos povos”. A condenação à morte, como pena, baixou para os 12 anos e a violência do Estado, extrema e sem paralelo, tornou-se um modo de governar um país imenso.

Nada disso impressionou a intelectualidade ocidental. Os panegíricos na data da sua morte, em 1953, foram sintetizados pelo editorial do L´Humanité, jornal do PCF: “ Luto para todos os povos que exprimem no recolhimento, o seu amor imenso para com o grande Estaline”. O poeta Louis Aragon, cantado e celebrado pela Esquerda, escrevia : Estaline é o maior filósofo de todos os tempos…aquele que educa os homens e transforma a natureza; aquele que proclamou que o homem é maior valor sobre a terra. O seu nome é o mais belo, o mais próximo e o mais espantoso em todos os países, para todos aqueles que lutam pela sua dignidade, o camarada Estaline…”

Segundo o L´Express, Estaline teria um dia confiado ao chefe da Tcheka, a polícia política da época: “Escolher a vítima, preparar minuciosamente o golpe, efectuar uma vingança implacável e, em seguida, ir dormir…não há nada mais doce no mundo.”

É este personagem sinistro, psicopata sem exemplo recente, (a não ser, talvez, o caso dos líderes reclusos da Coreira do Norte), que por cá continua a ser adulado em segredo, por quem nunca se desligou ideologicamente do seu modo de pensar e lhe herdou os tiques semânticos.

Um canalha ( voyou) que lia Platão, é o epíteto que o historiador inglês Simon Sebag Montefiore , encontra para classificar o ditador russo. Simon, que acedeu aos arquivos russos, recentemente, com autorização da administração Putin, faz um retrato interessante do antigo ditador e um paralelo com Putin:

Estaline foi seminarista e foi no Seminário que aprendeu os métodos que usou depois no exercício do poder político: vigilância, controlo psicológico, perseguição. E foi na escola religiosa que aprendeu a evitar e contornar os efeitos desse exercício de repressão, através da clandestinidade, adquirindo ao mesmo tempo o gosto da conspiração e do segredo. Toda uma escola que o partido comunista conhece muito bem.

Quando ainda nem tinha 30 anos, Estaline tinha já organizado numerosos assassinatos políticos. A prática não desapareceu de todo…e penso em Alexandre Livitnenko, envenenado o ano passado, ou na jornalista de investigação Anna Politkoskaia. Tudo isso, a meu ver, germina já, na juventude de Estaline, desde a primeira metade do séc. XX. E penso que daqui a dez anos, a historiografia russa evocará “ o grande Estaline”.Haverá eleições, claro, mas o poder controlará todos os media e o desenrolar dos escrutínios. O Estado será forte e apreciado de toda a gente enquanto as cotações do petróleo e do gaz continuarem a subir. Os serviços de informação, mesmo no tempo de Beria e Andropov, nunca foram tão poderosos como hoje.

Apesar de todo este historial, conhecido do mundo, na Rússia, o culto de Estaline não acabou. E não importa sequer o perfil psicológico ou os efeitos historicamente comprovados da sua acção política e pessoal.

A tradição e as raízes de um povo, residem no passado e é a esse passado que os russos pretendem ligar, quando precisam de uma identidade. Quem não perceber isto, se calhar não entende Putin. Ou, pior ainda, ao aceitarem este método de governar, imitando-lhe os tiques, mesmo com as devidas distâncias, pretendem apenas uma democracia de pacotilha e de fachada onde sobreleva a propaganda e o autoritarismo, justificado por maiorias absolutas e o carácter particular de quem manda.


Publicado por josé 22:11:00  

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