O que vem à Rede é perigoso

Ciclicamente, José Pacheco Pereira , lá do Abrupto, atira à Rede, para apanhar peixes incautos Desta vez, a crónica no Público, ( citada aqui) em modo de pesca de arrasto, pretende apanhar novamente os blogs, particularmente os ignóbeis anónimos que pululam aos milhares pelo éter, e ainda os sítios de referência que sistematizam informação, como a Wikipedia e outros lugares de culto de textos grátis e de consulta aberta.

O pretexto, é um livro de ensaio de um obscuro autor, conhecido de uns tantos, mas que Pacheco Pereira publicita como a última voz autorizada, embora em tonalidade simplista, em comentários sobre a Rede.

Pacheco Pereira, cita a tese central do livro de Andrew Keen, para enfatizar que “múltiplos aspectos da nossa cultura milenar ( do Ocidente) estão a ser postos em causa pela potenciação que as novas tecnologias associadas estão a dar à ignorância presumida de saber, ao “amador” que pensa que pode competir com o profissional ( seja jornalista, seja crítico literário, seja cientista, seja especialista de qualquer área do saber), apenas porque pode livremente e sem edição colocar num blog o que lhe vem à cabeça; pela erosão do direito de autor pela pirataria generalizada na rede, com o consequente desinvestimento em estúdio e qualidade de gravação); pela vulgarização do plágio”, etc. etc. até chegar ao ponto crítico do mundo obscuro dos avatars, das identidades virtuais na rede, aos comentários anónimos que tanto o afligem e aos malditos blogs anónimos que surgem como cogumelos nesta anarquia virtual e sem controlo à vista.

Pacheco Pereira, acha tudo isto “um “assalto moral” em que se dissolvem as regras e comportamentos éticos valorizados no mundo real e em que o “culto do amador” legitima uma degradação acentuada dos critérios de qualidade de muitas actividades que implicam ou um saber especializado, normalmente resultado de muitos anos de estudo e trabalho, ou de uma prática profissional extensiva.”

E atira-se à Wikipedia como modelo de ressentimento contra este estado de coisas. A Wiki, para Pacheco Pereira, citando Keen, é o melhor exemplo de perda de critérios de qualidade e rigor, a favor de uma ideologia utópica do homem comum, das massas, escrevendo por tentativa e erro, uma enciclopédia colectiva. O Horror intelectual, em suma. A que se soma o Horror supremo, de ver a substituição da comunicação social de referência, pela “cultura dos blogs”.

Este “culto do amador” está a matar a nossa cultura, segundo Pacheco Pereira, secundando o tal Keen que ninguém sabe quem é, mas que a Wikipedia já define como um crítico acerbo da Web.2 e que Pacheco Pereira omite como informação relevante, na sua referência ocasional. Valha-nos a Wikipedia criticada por Keen e Pacheco, para podermos saber quem será o tal Keen…e já agora, o próprio Pacheco Pereira.

A Wikipedia, acompanhando perigosamente os argumentos de JPP, também diz que Keen considera a Web 2.0 como um grande movimento utópico, semelhante ao do comunismo imaginado por Marx, ao mencionar a emergência do amador que se contrapõe ao profissional, disputando-lhe o público e o campo de intervenção. A Web 2.0 seria por isso o maior inimigo do elitismo tradicional, nos media e a ideia de luta de classes, entre o lumpen anónimo e a elite de retrato posto em jornal, está assim na ordem do dia, o que aliás, já fora mencionado antes, por JPP, em escritos diversos de ataque aos blogs.

Não obstante estas críticas ao lumpen intelectual que pulula na Rede, não se pense que Keen é adverso aos seus instrumentos. Tem um blog e intervém activamente na Rede. Coisas das elites. Do que parece não gostar, é destes proletários do verbo e da verve que se pronunciam abertamente sobre tudo e todos e fatalmente sobre ele próprio de os vários JPP. Keen, à semelhança destes, preferiria o sistema tradicional dos jornais de antanho que pediam a colaboração de especialistas em assuntos gerais, e a entidades míticas da cultura, a proeminências intelectuais que a democratização arredou das colunas. Os Vitorinos Nemésios que falvam com a mesma desenvoltura, da cibernética ou das sementeias de girassol e os detentores das cátedras de jornal, em modo de comentário sobre os acontecimentos da semana, perdem agora para o espaço da Rede onde se pode aprender mais em cinco minutos do que dantes num mês de consultas em bibliotecas centralizadas.

O monopólio do saber livresco e catalogado por autores, burocratizados em fichas, deixou de existir, conotado e acantonado com esses especialistas da generalidade. Esse saber catalogado, deixou de ser monopólio e passou a produto de nicho, para ratos de biblioteca. As principais revistas científicas, estão na Rede. A própria enciclopédia da elite, a Britânica, cedeu os seus direitos de exclusividade às exigências da Rede. A Wikipedia é uma concorrente séria daquela, pela actualização constante e permanente, mesmo com os riscos conhecidos e sempre sobrevalorizados por estes críticos suspeitos. Não permitindo a transferência integral do todos os saberes, a Rede permite um acesso facilitado a muitos deles e isso é arma mortal para quem vivia do mercado restrito do saber empacotado em colunas semanais.

Como exemplo, o verbete sobre Andrew Keen, na própria Wikipedia ( e que permite que o próprio autor a corrija se entender mal escrita) permite ler o que só seria possível a uns poucos iluminados pela cultura livresca e que vivessem no país de origem do autor e ao mesmo tempo, permite contextualizar o que diz o citado e o que dele dizem outros.

Em matéria de listas, nomes, estatísticas, referências, sobre as principais actividades artísticas, a Rede, através de motores de busca fornece um manancial impressionante de informação que dantes era perfeitamente impossível de obter, em pouco tempo e a custo zero, a muito estudioso da elite que se abalançava às teses de centenas de páginas. Para além disso, há uma área do saber que não pode circular na Rede: a das experiências práticas e científicas que não prescindem de tempo, balões, tubos de ensaio e circuitos artesanais. Mas, ainda assim, até esses não prescindem da Rede.

Assim, como entender esta reticência ácida à democratização do acesso à informação que nem é necessariamente, à Cultura?

A Rede ainda não dá licenciaturas ou cursos integrais de especialidades universitárias, mas tendo em conta algumas que são propostas em certas universidades, poderia perfeitamente concedê-las. A diferença não se notaria, e os exames far-se-iam por...fax ou mais prosaica e modernamente, por email.

Salvo algumas experiências singulares, a Rede ainda não permite o acesso à leitura integral de livros interessantes, com a mesma facilidade do manuseio do papel impresso e encadernado, mas permite o acesso a nomes e catálogos e principalmente a lugares de compra. A Rede, transformou-se em pouco tempo, também em lugar de mercado.

Aqui há uns anos quem quisesse um disco antigo, ou um livro de referência, tinha que percorrer quilómetros e procurar em curiosos que se guiavam pela memória dos antigos. Agora, a descoberta e obtenção rápida e barata de muitos desses produtos culturais, está à distância de alguns cliques, através de lugares virtuais como a ebay. Com a vantagem de se poder procurar livremente e sem custos de maior, o que se pretende e aguardar as oportunidades que surgem.

A possibilidade de aceder a lugares de informação especializada, é quase ilimitada, se a informação estiver disponível. Assim, quanto maior a quantidade de informação disponível em rede, mais a democratização do saber avulso ou de referência ficará assegurado. As mnmónicas para localizar textos, autores, versos, imagens, permitem aceder a pequenas maravilhas que só o advento da Rede permitiu e sítios como o Google autorizam.

Este é um admirável mundo novo, sem a carga de cinismo da antiga referência orweliana.

As limitações do saber em Rede são óbvias, mas inevitáveis: só procura saber quem tem conhecimento e a Rede é apenas um modo de aceder a certo conhecimento. Quem não sabe, não pergunta. Quem não pretende saber, não precisa da Rede para isso, embora a utilize para outras coisas.

O conhecimento específico, especializado, não se obtém satisfatoriamente através da Rede como não se obtém satisfatoriamente através de autodidactismo, apanágio da maior parte dos generalistas que concluíram cursos secundários para “dar aulas”, em qualquer disciplina específica e acabaram cursos superiores para perfazer currículo exigível . Não sendo o caso de Keen, é certamente o de alguns outros.

Ora esta pecha, é a que geralmente se pode apontar aos especialistas de tudo e alguma coisa, geralmente situados na área das Humanidades, com incidência na Sociologia e parentelas. Estes especialistas de coisa nenhuma é que se costumam convencer da sua própria capacidade em conseguir comentar tudo o que mexe à sua volta. É destes especialistas que saem os comentários na televisão sobre fait-divers sociais, ligados ao crime ou aos negócios e fatalmente à política, campo aberto onde disparam à vontade contra o que mexe e lhes parece caça para abater, apoiados em armadilhas para os gambuzinos.

Neste aspecto, não será a Rede que vem ampliar o nível de ruído, sobre aquele que os mesmos inevitavelmente provocam. A Rede, particularmente os blogs, neste caso, contribui apenas para aumentar o leque de intervenção comentarística, diversificando eventualmente o ruído e desvalorizando o oficial, genuíno e de nicho, próprio dos comentadores encartados pelos jornais e media em geral. Restringe-se assim, fatalmente, o interesse no mercado de opinião e só sobreviverão os mais fortes, como em toda a concorrência aberta e livre. É esse o problema detectado por este tipo de críticos, na “cultura dos blogs” . E mais nenhum. E esse problema só afecta quem vive do mercado tradicional: perder o interesse de quem lê ou ouve, por causa da variedade que aumenta a oferta de opiniões interessantes.

Assim, os generalistas da cultura do comentário avulso, sentem-se prejudicados na sua área de mercado específico e reagem por isso com a naturalidade dos privilegiados que vêem a ameaça ao seu feudo que tanto custou a conquistar. Esta é uma interpretação possível e realista. A inveja, afinal, atinge os acusadores de putativos invejosos, tal como l´arroseur foi arrosé, no cinema mudo de antanho.

E afinal, nem haveria necessidade. Enquanto os comentadores oficiais e reconhecidos em Público, continuarem a ser alvo da atenção dos comentadores, mesmo anónimos, na Rede, a fatia de mercado continua assegurada e eventualmente aumentada. O perigo advém da lassidão. Um dia destes, o que JPP ou outros, dizem ou deixam de dizer passará a ser igual ao litro, e isso já é norma para muitos dos anónimos em Rede. Continua por isso, o debate.

Publicado por josé 18:12:00  

8 Comments:

  1. Luís Negroni said...
    Keen tem toda a razão naquilo que enuncia: A internet propicia a perigosa ilusão global de que qualquer um pode ser tão criativo e sabedor como qualquer outro, basta poder aceder-lhe e a partir daí estamos todos em pé de igualdade. É a ilusão de uma espécie de comunismo na afirmação individual do "saber", que leva à proliferação do plágio presumido de originalidade, da banalidade presumida de qualidade, da ignorância presumida de sabedoria, da vulgaridade presumida de elevação. O subproduto gerado, qual "monstrum horrendus", é um cada vez maior caos de "informação" e "saber", onde por cada verdade há mil mentiras, por cada encanto há mil torpezas, por cada subtileza há mil boçalidades e onde, consequentemente, o esforço para obter qualquer dado válido é enorme e cada vez mais enorme, porque o "monstrum horrendus" cresce incessantemente, exponencialmente e nada nem ninguém lhe consegue travar o maligno crescer.
    A internet, é o grande "monstro" ainda não reconhecido da civilização actual.
    josé said...
    Parabéns pela escrita escorreita que desta vez não me leva a aconselhar outro poiso.

    Hélas...essa escrita é a da lambebotice aos instalados e temerosos de perder o lugar ao sol da escrita de jornal e opinião na tv.

    Seja no caso de Keen, seja nos nossos caseiros abruptos, o problema é sempre o mesmo: vamos ficar sem lugar se isto assim continuar.
    Começo a perceber claramente essa linha divisória. Por uma razão:

    O lixo da Rede só pode incomodar os cultores da verdade preocupados com a formação dos outros.

    Quem souber distinguir o lixo do ouro, não se incomodará muito com estas pequenas questões. Ou pelo menos incomodar-se-á tanto como ver nos escaparates dos supermercados a Caras, a Flash, e outras maravilhas culturais, do género.
    Anónimo said...
    Só tem medo da Rede quem tem alguma coisa a perder com ela.
    josé said...
    Os que se incomodam com a formação dos outros, em geral, são os mestres das obras educativas. Mas não é esse o terreno dos abruptos nem dos keens.

    Estes mistificam. Nada mais.
    josé said...
    E quanto a mim, a Internet não propicia qualquer ilusão específica sobre qualidades putativas.

    O que a Internet propicia é um acesso mais amplo a informação que de outro modo não seria possível. Informação séria, de boa qualidade e diferenciada da dos bonzos de sempre.

    No reino da opinião, uma bem fundamentada equivale a outra. Normalmente, os bonzos, fundamentam o que escrevem com a sua imagem. A Internet, vai faltalmente provocar a erosão desse precioso asset.
    E isso é uma coisa magnífica. Se tiverem qualidade, que escrevam sem nome...
    É isso: tornem-se anónimos.
    António Balbino Caldeira said...
    Sem ofensa, aos excepcionais, vejo mais amadorismo do lado dos media tradicionais: ignorância completa e notícia ou comentário apressado e displicente...

    O que custa a Pacheco é a perda do elitismo, a falta de um critério e juízes que limitem quem entra e mantenham quem está.

    Viva a liberdade, então.
    Luís Negroni said...
    Opiniões são opiniões, embora algumas reflictam a realidade e outras sejam puros devaneios.
    A minha opinião reflecte fielmente a realidade, as vossas, lamento dizê-lo, reflectem apenas benévolas ilusões.
    A realidade não se compadece de benignas ilusões.
    josé said...
    luís:

    Vá ao espelho mais próximo e repita a frase que escreveu. Se continuar sério, venha cá escrever outra vez, que é para ficarmos a saber.

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