Perdidos no nevoeiro de Londres
segunda-feira, setembro 24, 2007
«Gostava que te fosses embora... e voltasses quinze anos atrás.
A frase pareceu-lhe familiar, como se a tivesse ouvido antes, mas não dita por ela, não naquele tom melancólico que era quase um gemido.
Mas estava demasiado ocupado a investigar o mistério dos seus cabelos, aquele louro, castanho, que a uma certa hora do dia era quase acobreado, o mistério dos olhos azuis, que por vezes eram quase cinzentos, e que ele não compreendia, por vezes eram tão vazios, como se não tivessem nada por detrás, um templo vazio, com flores e velas, mas onde não havia ninguém, ou talvez se sentisse, só, a presença de deus. E a sua boca, o desenho dos lábios, passou os dedos nos seus lábios quase com incredulidade, ela fora uma imagem distante e havia algo de irreal na forma como agora era possível tocá-la, e só se atrevia a fazê-lo devagar, a emoção concentrada nas pontas dos dedos, o pescoço dela...
De qualquer modo, quase não se lembrava do que fizera quinze anos atrás, devia estar ainda na universidade, planeando a entrada na Academia do FBI, fora há muito tempo... e não era importante.
Mas sentia que tudo o que lhe acontecera na vida tinha por finalidade a sua presença ali naquele momento, o encontro com a mulher loura de olhos azuis, que fechara os olhos debaixo dos seus dedos, sentia-lhe as pálpebras pesadas, pensou pela milésima vez que nunca vira nada tão bonito como ela, que talvez as coisas se tivessem passado daquela forma porque nenhum deles vira nada tão bonito como ela...
Era estranho que tudo tivesse começado apenas algumas semanas antes, a casa estava pesada da presença deles, talvez porque ela era demasiado leve, e com ela a casa estivera sempre vazia, os seus pés descalços pareciam não tocar o soalho de madeira, sem tapetes, as suas pegadas no jardim pareciam ter estado ali sempre, nunca conhecera alguém que se confundisse assim com o mundo, e no entanto estivesse tão sozinho.
Mas a história começara, só, umas semanas antes. Finais de Outubro, tinham marcado a data com antecedência, tinham planeado o assalto ate ao mínimo detalhe, e bastara o acto de um guarda que quisera armar em herói para que os acontecimentos se precipitassem e o que estava traçado tomasse um rumo diferente. Não havia quase ninguém no pequeno banco de província, os vidros embaciados tornavam a rua invisível, os funcionários pareciam estátuas, o gerente era um homem magro com um ar assustado que lhes abrira o cofre sem dizer uma palavra (o mais estranho de tudo era o silêncio), e as coisas pareciam correr bem ate que o guarda surgira na sua frente com uma pistola em punho. Byrne perguntava a si mesmo quem era aquele homem, o que provocara o gesto suicida, mas os poucos jornais que conseguira arranjar mal falavam dele. George disparara imediatamente e atingira-o no lado esquerdo do peito, a loura bonita encostada à parede começara a gritar e dai a instantes ouvia-se a serena de um carro da policia não muito longe.
A neblina era como um muro esbranquiçado que escondia tudo o que estivesse a mais de dois metros. Byrne lembrara-se de ter lido algures que se alguém se perdesse no nevoeiro de Londres devia procurar um autocarro vermelho, mas não estavam em Londres...
Johnny esperava-os no automóvel estacionado ao voltar da esquina, um Fiat cinzento-metálico roubado no princípio da tarde.
Johnny esperava-os no automóvel estacionado ao voltar da esquina, um Fiat cinzento-metálico roubado no princípio da tarde.
Tinham saído da cidade ao anoitecer, no meio de farrapos de neblina, o Fiat afundara-se nos campos, e ao fim de umas horas parecia ser o único veiculo a circular naquela estrada dos bosques, que tinham assinalado previamente no mapa mas que nenhum deles conhecia. Nessa altura estavam todos mais descontraídos, Johnny assobiava baixinho uma melodia em voga, George ia ao seu lado sem dizer uma palavra, Byrne e Madsen no banco de trás.
Byrne infiltrara-se no bando alguns meses antes, e sempre perguntara a si mesmo o que fizera que aqueles indivíduos se juntassem. Tinham trabalhado sozinhos durante muito tempo, eram três solitários. Mas o acaso reunira-os num negócio de trafico de droga e a partir dai actuavam juntos. George era o que tinha uma ficha mais suja. Matara um policia dois anos atrás, num assalto a uma ourivesaria, e ferira dois civis durante a fuga. Madsen era no entanto o mais violento, o seu vulto pesado tinha algo de ameaçador, as mulheres achavam-no atraente, e seria capaz de matar alguém com um soco. Johnny era demasiado jovem, vinte e poucos anos, fugira de casa aos catorze, fizera alguns assaltos de pouca monta, mas George parecia gostar dele e confiar na sua inteligência e habilidade com as armas.»
in «A Dança dos Fantasmas», Ana Teresa Pereira, Relógio D'Água, 2002
Publicado por André 02:16:00
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