«Estranha Forma de Vida»

É um livro que se lê num fôlego, bem escrito e cheio de pormenores suculentos, de Carlos Ademar, professor no Instituto Superior de Ciências Criminais e da Polícia Judiciária, que trabalhou na PJ durante quase 20 anos, na Secção de Homicídios.

Mesmo sob a capa de romance, este livro surpreende-nos com um Portugal sinuoso, complexo e (não tenhamos medo de o assumir) muito mais violento do que poderá parecer. Vale a pena, sobretudo, conhecer as relações demasiado próximas que se estabelecem entre sectores da sociedade que, à primeira vista, não deveriam ter qualquer ligação entre si.

E impressiona, claro, o desfecho sangrento de várias das situações retratadas, a fazer lembrar casos bem recentes da noite do Porto. Alguém falou em… brandos costumes?

Quem quiser continuar a viver numa ilusão, é capaz de ser melhor não ler…

Aqui ficam dois excertos elucidativos, um sobre um depoimento na PJ relativo a uma investigação de um homicídio e no outro o recurso às «off-shores»:

«-- Senhor inspector, penso saber quem matou o homem e quem estava presente. A minha única condição é esta: não quero ser emvolvido no processo. Estes tipos não brincam, matam se entenderem necessário. E tem de ter muito cuidado com as testemunhas importantes, pois pode ficar sem elas a todo o momento.
-- Eh lá, são assim tão maus? – perguntou, irónico e céptico.
-- São do pior que o senhor possa imaginar – respondeu a olhar fixamente o outro.
-- Já ando nisto há muitos anos, já conheci muitos piratas, alguns mais como as cobras, mas no fim, depois de presos, são quase todos iguais: homens com as suas fragilidades, exactamente como todos nós».
(pág. 122)


(contexto: almoço ‘de negócios’ entre responsáveis de um grande banco e o proprietário de um bar de ‘strip’ com ligações ao tráfico de droga)
«Agrada-me pagar menos imposto e mais me agradaria não pagar. Mas pensei que os senhores tinham solução para as minhas necessidades… -- de novo fixou o olhar no seu interlocutor.
-- Decerto temos, só precisamos que o senhor nos elucide sobre a natureza dessas necessidades.
-- Pois bem: por vezes, preciso de fazer desaparecer com alguma rapidez uma certa quantia de dinheiro, geralmente muito, e essa história do offshore agrada-me. É possível ou não? -- Tudo o que o senhor quiser, e quanto maior for a soma melhor. O nosso banco agradece. – respondeu, categórico, Esteves.
-- Assim é que eu gosto. Soluções e não problemas. Ainda bem que vim almoçar convosco. Agora vamos aos pormenores.
-- Ora bem, o senhor concentra todo o seu dinheiro numa conta especial que nós lhe vamos abrir, e instantaneamente todo esse quantitativo está, por exemplo, nas Ilhas Caimão.
-- Onde diabo é isso?
-- Olhe, nem sei bem, mas é longe! Posso dizer-lhe, porém, que a partir daí jamais terá problemas com impostos, e se for o caso também temos soluções para pôr o dinheiro a correr…
-- A correr? Não percebo…
-- Há dinheiro que às vezes está demasiado parado, cheira a mofo. Se o pusermos a correr ele liberta esses cheiros desagradáveis e fica mais… como direi? Limpo.
-- Não está a sugerir que o meu dinheiro é sujo?
-- Pelo amor de Deus, senhor Lima, nunca tal me passou pela cabeça. Aliás, comecei por lhe dizer que não pactuamos com ilegalidades.
-- Ah! Assim, já gosto mais. E então, como fazemos isso?
-- O senhor nem tem de se preocupar. Nós temos os nossos métodos altamente experimentados e com óptimos resultados.
-- Mas, enquanto estamos aqui, podiam aproveitar para me falar um pouco sobre essa matéria, de que nada sei.
-- Por isso há bons e maus bancários, senhor Lima. Nós somos dos bons, e por isso não tem que se preocupar.
-- Mas o senhor Lima deseja saber um pouco do circuito. É isso, não é senhor Lima? – interveio, então, Matias, que até aí estivera como mero assistente. (…)
-- Então, em traços muito gerais, é assim, senhor Lima: o seu dinheiro vai ser dividido em tranches e todas elas vão circular em várias contas com montantes sempre diversos. No fim de um determinado número de passagens não há qualquer hipótese de as autoridades seguirem o rasto. O dinheiro arejou, já não tem cheiro, logo, o trabalho deles está muito mais dificultado.
-- Não é que isso me incomode, porque não tenho nada a temer. Mas isso resulta mesmo?
-- Tão certo como estarmos aqui os três, senhor Lima.
-- Pensava que era só nos filmes. Mas, então, porque raios não podem os Estados intervir nessas questões, para não serem prejudicados?
-- Porque, no fundo, senhor Lima, a economia paralela interessa a todos, só que os políticos para darem uma imagem de impolutos não o podem admitir. E, depois, praticamente todos os principais países têm uma ou mais zonas francas, onde quase não se cobram impostos pela circulação monetária. É perverso, é verdade que corrompe, mas todos o querem perto de si. Falo do dinheiro, claro (…)
-- Não tem quaisquer desvantagens, senhor Lima. O aspecto de que falta falar é para mim o mais interessante e prende-se com a confidencialidade.
-- E isso quer dizer exactamente o quê?
-- Quer dizer que lhe posso garantir quase a cem por cento que as autoridades jamais ficarão a saber a quem pertence a conta X ou a conta Y.
-- Quase a cem por cento?
-- Sim, porque depende sempre da convergência de variadíssimos factores, muito difícil de obter, para que se quebre essa confidencialidade.
-- Isto afinal é ainda mais complicado do que eu pensava…»
(págs. 154 e 155)

Publicado por André 19:42:00  

3 Comments:

  1. MARIA said...
    Parece absolutamente fascinante o teor do livro. Procurarei não perder.
    Pelo que percebi, o livro toma por base casos efectivamente investigados pelo Autor quando Inspector da PJ ?
    Deve ser realmente interessante .
    Obrigada pela referência.
    Um beijinho.
    Maria
    André said...
    Ainda que não assumido directamente, é óbvio que a inspiração vem dos quase 20 anos de casos investigados por ele.

    Trata-se de ficção nos nomes e casos concretos, mas é uma radiografia do submundo português, tendo enormes pontos de contacto com a realidade...
    MARIA said...
    É de facto então um livro a não perder.
    Um bj
    Maria

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