Os companheiros da alegria e o joelho de Claire.

Nos obituários de Eduardo Prado Coelho, sobressai sempre uma ideia matricial: a ideia de esquerda.

Um dos mais influentes membros dessa particular inteligentsia pátria é, sem qualquer dúvida, José Carlos de Vasconcelos, antigo director de O Jornal e ainda director do Jornal de Letras, um dos produtos culturais do grupo que também teve O Sete, a História e agora detém ideologicamente a Visão.

Este Jornal de Letras, dedicado aos aspectos culturais em modo de ler, ver e ouvir, com predominância para o sentido do olhar, faz na sua última edição, uma homenagem de primeira página a Eduardo Prado Coelho e a “tudo o que escreveu”.

O simples obituário de José Carlos de Vasconcelos (JCV), suscita logo o mote perfeito para a abordagem imperfeita do assunto vasto: a intelectualidade lusa dos últimos 40 anos, centrada em EPC.

JCV declara-se amigo de EPC, “há muitos anos”, o que lhe retira logo a carga de objectividade que poderia esperar-se do escrito. Mas nem por isso se evitaria a repetição dos lugares e tempos que a esquerda portuguesa visitou nestes últimos anos. Digo esquerda, porque não há melhor termo para o definir.

Tal como Tom Wolfe, no seu pequeno ensaio sobre os “três pontos” ( "my three stooges", publicado em Hooking Up de 2000), em que nomeava nas pessoas de Norman Mailer, John Irving e John Updike, o sentido de serem os melhores apontadores de deixas para o que pretendia dizer sobre os mesmos, também JCV se afigura como o exemplo perfeito de “ponto” para uma peça em vários actos que começa ainda antes de 25 de Abril de 1975.

O cenário é a sociedade portuguesa e o enredo, a política e os políticos que nos saíram em rifa nas eleições previstas.

JCV declara-se de esquerda há muito tempo e desde o tempo em que iniciou essa famosa aventura de O Jornal, de O Sete e ainda do Jornal de Letras, para não falar da pequena revista História. Por isso, é com um pequeno orgulho indisfarçado que lembra a sua contribuição para o percurso peculiar de EPC, ao convidá-lo, ainda nos anos sessenta, para redigir textos para a revista Vértice, essa “resistente revista de esquerda e de cultura e arte”.

Esta pequena declaração, contém em si todo um programa político, porque inefavelmente circunscreve à área da esquerda, no sentido afectivo e efectivo do termo, as matérias de cultura e arte. A direita, seja lá isso o que for, afectiva e efectivamente, não tem direito de uso sobre esses campos lavrados pelos cultores da igualdade social, sustentada por teóricos marxistas- leninistas. O privilégio da cultura e da arte, para o público apreciar a ler, ver o ouvir, é apanágio desta esquerda que vem de longe, de muito longe e muito andou para aqui chegar.

Em nome da ideia de esquerda, indefinida mas sempre presente nas apresentações públicas, a cultura portuguesa acantonou-se em nomes, pequenas correntes e capelinhas de culto privado para os connoisseurs de realidades mediatizadas por livros e filmes, como EPC e uns tantos que dominaram por completo o panorama da crítica e da opinião, na imprensa em Portugal, nos últimos decénios e impuseram um modelo de pensamento único sobre estas matérias. Fora da esquerda, não há salvação para a cultura e a arte, em português.

Provavelmente, a influência dessas poucas dúzias de pessoas, foi mais forte e mais implacável sobre a sociedade portuguesa das últimas décadas que os discursos políticos do partido comunista e socialista juntos e em companhia com os extremistas da esquerda do poder popular.

JCV cita Augusto Abelaira e Fernando Assis Pacheco como outros compagnons dessa route em que rodam ainda milhentos de outros corredores que perseguem a utopia que situam sempre do lado esquerdo da estrada que chegará um dia à meta da igualdade entre os Homens e à Harmonia universal, onde de cada um deles se pedirá apenas o que pode dar, e a cada um se poderá dar o que precisa. A definição destas necessidades e potencialidades, não se questiona, porque na ausência de uma mão invisível, lá estará sempre, até se chegar à meta, o Estado protector geral.

Esta utopia fantástica, animou a alma de milhares, mas o seu evangelho foi apenas proclamado por uns poucos, entre os quais, JCV e EPC.

Portanto, a crítica, o ensaio, o estudo universitário e as crónicas simples de jornal, circularam pela escrita de EPC como um contributo para essa esquerda militante da utopia e que nunca desapareceu do imaginário dos seus cultores. Mesmo depois do colapso de sociedades inspiradas no modelo avançado e proclamado por essa esquerda, as mudanças de velocidade engrenadas pelos seus pilotos, nunca os levaram a estações de serviço para mudar conceitos ou afinar ideias feitas. A maior parte deles mudou apenas de veículo e nunca de direcção ou sentido.

O marxismo-leninismo enquanto ideologia básica e definidora de princípios, mantém integralmente o prazo de validade para os seus antigos cultores mais notáveis, entre os quais se contam EPC e JCV. A moderação dos sentidos e a normalização da democracia portuguesa, manteve sempre e constitucionalmente, a ideia básica de que Portugal continuaria a seguir o caminho rumo ao socialismo, agora eufemisticamente modificado para um empenho na construção de uma sociedade livre, justa e solidária. A semântica constitucional, contudo, não alterou o conceito básico, essencial que preside desde há décadas à orientação ideológica da esquerda: o caminho é e será sempre para o socialismo, nesse entendimento canhoto. Um socialismo democrático, no entender evoluído e aggiornato, da intelectualidade espelhada nos escritos de EPC e JCV, mas ainda assim, um socialismo, mesmo travestido de uma inefável social-democracia que conserva as ideias básicas da utopia igualitarista. A matriz original, nunca se substituiu, porque alimenta ainda todas as esperanças da utopia e portanto, as variações de conceitos são apenas tácticas, porque imprescindíveis ao seu funcionamento imaginário.

Não existe, no Portugal actual, discurso político que a esquerda possa sustentar e que não percorra esses conceitos originários. A esquerda portuguesa não se actualizou ou evoluiu como as restantes esquerda por essa Europa fora. Não abandonou as referências de 1975, nem suplantou as esperanças ocultas num destino incerto e inconfessável, em nome do bem geral.

Tudo o que ultrapasse, pela direita, esse perfume invisível da ideia peregrina de finais do séc.XIX, que percorreu o leste da Europa e implantou a democracia social, com a sinalização mesmo equívoca, do caminho para o socialismo, é intelectualmente proscrito na afectividade desses amadores de utopias.

Um dos teste mais eficazes para se situar um esquerdista, na sociedade portuguesa, é muito simples de realizar: perguntar-se-lhe o que pensa do jornal O Diabo. Era o diabo, em figura de jornal, afiançam e continuam a colar-lhe o rótulo de jornal de extrema-direita. Outro teste infalível, é perguntar pela natureza do regime salazarista. Fascista, pois claro e nada menos do que isso.

O regime de Salazar e Caetano, foi, aliás, onde cresceram e aprenderam o que sabem. Foi nesse tempo que se formaram e em que se formaram os seus professores e nem a censura os impediu de aprender o que era então perseguido, numa lógica de regime autoritário que no entanto, não os impediu de lerem o que quiseram e seguirem quem entenderam.

Entre os filósofos, escolhem sempre Sartre, em contraponto a Raymond Aron. Não é que o não possam ou devam fazer. É apenas porque não dão espaço a outros para o fazerem. Ocupam todo o tempo e espaço mediáticos e nem se dão conta disso. São geralmente ateus militantes ou apaziguados, mas separam a esquerda e a direita num campo improvável: o da irracionalidade. Perguntados pelas razões da preferência em seguir sempre pela esquerda, mesmo numa altura em que já viram, desse lado, a destruição, a morte, a opressão e a involução, tudo aquilo que consensualmente é a maldade humana, não desarmam e apresentam o argumento de sempre: erros passados que não se devem repetir; mas a substância, essa continua válida e operante. É só esperar por melhores dias.

Em função desse idealismo com bases ideológicas falidas ou demonstradamente erradas, apostaram numa linguagem que moldou a sociedade portuguesa das últimas décadas e condicionou as políticas de governos sucessivos. A Educação em Portugal tudo lhes deve ideologicamente, claro, com os resultados que vemos.

Os mais idealistas de entre eles, incluindo naturalmente EPC e JCV, juraram sempre pelos mais próximos do poder perfeito para essa esquerda temperada. Após uma experiência PRD, surgiu Pintassilgo como candidata. Depois, foi a travessia do deserto, sempre contra a direita fantasmática e por fim, a promessa fugaz de Manuel Alegre continua a alimentar a ilusão de destino ideal, enquanto votam sempre naqueles que prometem a ideia de esquerda.

Os livros que se escrevem e que não lemos, o cinema que se vai filmando e ninguém vê; a linguagem escrita que se utiliza em jornais e revistas, tudo ou quase tudo lhe devem.

Na base destas asserções, reside a verificação empírica derivada da leitura da nossa imprensa e dos jornalistas que se formaram ao longo dos anos e aprenderam com os mestres da esquerda ideologicamente demarcada.

Os diários de época, como A Capital, o Diário de Lisboa, o Diário de Notícias, mesmo o Diário Popular e semanários como O Jornal e depois a Visão e ainda o Expresso, em menor grau, mas com parentelas similares, moldaram o modo de escrever notícias e relatar acontecimentos em Portugal.

As gerações que se seguiram não fizeram qualquer corte ideológico com essa mentalidade específica, porque lhes herdaram os lugares de redacção, onde vicejava a cultura já sedimentada.

A melhor síntese do fenómeno, é apresentada por Nuno Júdice, um dos sobreviventes dessas máquinas voadores sobre a realidade, e que escreve no seu obituário na última edição do Jornal de Letras, o seguinte:

Talvez por isso a tua arte preferida, para lá da literatura, fosse o cinema ou o bailado- onde os corpos se movem e impõem a sua dimensão física, dando essa possibilidade de contacto que pode começar pelo olhar, e acabar no gesto físico de uma ilusão fusional de que o intocado “joelho de Claire” é uma metáfora. O corpo- eis a suprema utopia; e a linguagem tenta envolvê-lo e vesti-lo, ou despi-lo, com a espessura significante que nos ensinou a linguística que aprendemos nos lisboetas anos de 1960 dessa faculdade de Letras que te inspirou um poema, a “Descida ao inferno” do bar de Letras onde se sonhava resolver todos os problemas do mundo.

Nesta simples frase, se pode revolver e explicar todo o fenómeno Zita Seabra, por mais improvável que pareça. Continuando…

“Raciocinavas com o sentimento; e sentias com a razão: o que explicava que só tivesses falado dos autores e dos livros de que gostavas, sem de modo nenhum teres recuado ao impressionismo que, nesses anos 60 era a “bête-noire” da época ( e João Gaspar Simões sentiu-o na pele).

Logo em 1972, dois livros indicam essa dupla tensão entre o “logos” e a “anima”; A palavra sobre as palavras e o Reino Flutuante. Compreendeste, Eduardo, que a palavra sobre a palavra seria o reino da redundância; e passaste a esse reino flutuante onde intervém, de modo surpreendente, uma “liquefacção” do signo, permitindo essa flutuação do discurso que segue a direcção das correntes do poema, mas em que o crítico pode também orientar a navegação segundo princípios que vão desde uma “letra litoral” de 1979 ( no qual publicaste a entrevista que te fiz, numa varanda do Restelo onde o António Sena nos fotografou para uma Vida Mundial de 1972)., em que a “letra” é essa margem verbal onde se começa já a avistar o litoral que irá desembocar no “fio do horizonte” das tuas crónicas até à Mecânica dos fluidos ( 1984) descobrindo que o imaterial obedece a uma máquina construída para que ela se mova, e fazendo do movimento o motor mesmo da vida do poema. Era por isso que o formalismo, o experimentalismo, que fixava artificialmente a dinâmica do texto nunca te atraiu.”

Este naco de prosa judiciosamente articulada a propósito de EPC, é o exemplo do solipsismo deste mundo intelectualmente fechado sobre si mesmo. Um outro, nas mesmas páginas e assinado por Mário de Carvalho dá o retrato perfeito de época, em que nem falta sequer o historial caucionador e antifascista de quem teve o pai preso e sofreu as consequências horrendas do fascismo luso, numa repetição de enredo que constitui todo o universo do imaginário do PCP.

A esta racionalidade cercada pelos preconceitos esquerdistas, no final de contas extremamente conservadora dos parâmetros estreitos dos afectos, prefiro a loucura dos sentimentos anarquistas, sem dono ideológico e que admite ao seu redor quem lhe aparece, sem situar o outro em campos de luta.

Todas estas considerações, no entanto, apartam-se da idiossincrasia das personagens e personalidades que evoluem neste meio. A de EPC, portanto, merecia melhor atenção. Filho de professor catedrático notável, logrou atenção especial da inteligentsia das épocas. Antes de 25 de Abril, o conhecimento pessoal e familiar dos protagonistas políticos acabou por influenciar a vida particular de alguns deles, como EPC. Foi para o estrangeiro de França, porque alguém se interessou por isso. Esteve no PCP, onde defendeu o extremismo possivelmente revolucionário e mudou-se logo para paisagens mais serenas, após o comício da Fonte Luminosa. Foi o governo de Cavaco, com Santana Lopes como secretário de Estado da Cultura quem o pôs em Paris, em actividades culturais.

Não admira por isso que um esquerdista do mesmo género, tenha dito em modo de epitáfio que “tinha mundo”. Pois tinha, mas um mundo pequeno e que não abrangia tout le monde, mas apenas o monde des siens. E foi esse que foi explicando, crónica atrás de crónica, livro após livro.

Uma boa metáfora, para este mundo particular, reside na circunstância de EPC, à semelhança de muitos outros, olhar para Françoise Hardy, com admiração, conforme escreve Rita Garcia na Sábado que designa aquela como “actriz”.

De onde viria a admiração de EPC por Françoise Hardy? Dos anos sessenta, seguramente, mas muito mais do que isso. Perceber o resto, é entender uma boa parte do esquerdismo: a irracionalidade e a impossibilidade em esclarecer positivamente as opções pessoais.

Tudo isso seria interessante, na sociedade portuguesa, conformando-se ainda como irrelevante, não se dera o caso de ser essa a mentalidade que prevaleceu nestes decénios.

Conhecer o percurso de EPC, como o de JCV ou de outros, como o já falecido e saudoso Fernando Assis Pacheco ou ainda de certos amigos ( que tenho como tal e que são de boa cepa) que aparecem por vezes em tertúlias no Incursões, ou na Margem Esquerda ( et pour cause) é perceber as razões do nosso estado presente , perante o passado recente.

Foram eles, enquanto dominadores da cena político-mediática que determinaram as políticas fundamentais para o nosso modo de viver actual.

Provavelmente, nem se dão conta disso mesmo, mas se Portugal fosse mais plural e não confinado nesse gueto de esquerda ideológico-afectiva em que permanece, o nosso modo de viver seria talvez melhor e mais democrático, no fim de contas.

Imagem: O Jornal de 12.5.1978

Publicado por josé 15:32:00  

3 Comments:

  1. M.C.R. said...
    isto dava para discussão, lá isso dava. Mas há em todo o articulado uma premissa falsa e desde o princípio. A esquerda foi mesmo nos momentos mais dificeis, plural. Ou seja não é possível reduzi-la ao esquematismo (bem inteligente por sinal) do texto. Há mais esquerda além da que é mencionada e com mais vida.
    depois há alguns erros facruais: EPC não foi nomeado por Lopes mas por Teresa Gouveia para só citar este porquanto compromete.
    Em segundo lugar a esquerda nunca foi dominante no campo cultural. E não foi porque nos old times aparecia pouco e clandestinamente e no pós 25 A se dividiu nas capelas que se conhecem. Saramago fusilava (lá do DN) os esquerdelhos, estes respondiam com gtranadas defensivas (da vida Mundial, p.ex.) e por aí fora. Ate o Tempo e o Modo estava nas mãos de outro pequeno grupo o MRPP...
    A direita aparecia pouco? Talvez. Mas a verdade é que sem a esquerda, Agustina Bessa Luis seria ignorada, por exemplo.
    josé said...
    A esquerda foi plural?

    É por aqui que tentarei começar. Com apoio documental, se conseguir.

    Antes do mais, defino já o meu conceito operativo de esquerda : uma das margens do rio da História que olha para a outra e se recusa a confundir com ela, julgando isso impossível.
    É um conceito fluido ( et pour cause) e que parte de premissas erradas: a História não é um rio e as margens não se definem a si mesmas, porque a convenção sobre esquerda e direita pode mudar conforme o ponto de observação.

    Ainda assim, porque me parece suficientemente operativo, é por essa via fluvial que sigo, de barca, para tentar olhar para os dois lados.
    josé said...
    Quanto à nomeação de EPC:

    A informação, recolhi-a do JL, no artigo não assinado "Uma vida entre livros", o qual refere expressamente que "fora durante o longo consulado como primeiro-ministro do actual P.R. Cavaco Silva, pelo qual diversas vezes manifestou apreço, sendo Durão Barroso ministro dos Negócios Estrangeiros e Santana Lopes secretário de Estado da Cultura que EPC seria ( em 1989 e até 1998) nomeado conselheiro cultural da nossa Embaixada em Paris e depois ( entre 1997 e 1998) também director, aí, do Instituto Camões".

    Não disse há bocado, mas digo agora:

    Esta discussão que vou encetar, não se destina necessariamente a polemizar com alguém que respeito e entendo que nem queira entrar por esta via de discussão. É mais uma reflexão pessoal, sempre adiada e sempre desejada ao longo destes últimos 30 anos.
    Nem sei se terá canbimento aqui neste blog colectivo e nem sei se continuará ao fim de um ou outro texto.
    Tentarei, mesmo em monólogo, atingir o meu ponto de vista e a minha tese essencial: a esquerda tem uma matriz essencial e foi essa matriz quem nos lixou a vida colectiva ao longo de 40 anos.

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