Afinal, diz tinto ou diz branco?

Ontem, o argumento era simples: um “director de um museu do Estado” não poderia criticar a política da tutela sem se demitir (ou ser demitido), por não ser “possível executar lealmente uma política de que se discorda”. Era uma questão de coerência e bom senso.

Como ninguém conseguiu vislumbrar, como regra, uma tal impossibilidade, que teria como corolário uma visão da administração pública totalmente politizada e partidarizada, Vital Moreira adaptou o argumento às conveniências do patrocínio e vem hoje, mui doutamente, explicar ao vulgo a distinção entre os “cargos públicos de livre nomeação” e a “função pública propriamente dita”. Traduzindo por miúdos a lição magistral, conclui-se que, afinal, a directora do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) foi demitida por ... motivos políticos. E muito bem, porque - ensina o mestre - no dia em que os ministros não pudessem demitir livremente, por razões políticas, os titulares dos cargos de livre nomeação, “deixaria de haver governos capazes de levar a cabo as suas políticas”.

Vamos por partes - e falemos claro.

Antes de mais, uma constatação. Ontem, a tese de Vital Moreira era geral e abstracta. Aplicava-se a qualquer “director de um museu do Estado”. Hoje parece que, muito convenientemente, só se aplica ao responsável pelo MNAA que, ao que se noticia, é o único director de museu do Estado cujo cargo é de livre nomeação, por ser equiparado a cargo de direcção superior (os demais directores de museus são nomeados por concurso). É evidente que se trata de uma distinção meramente formal, uma espécie de status honorífico e para enquadramento remuneratório, uma vez que, na prática, o MNAA não dispõe de autonomia administrativa e financeira, sendo a autonomia de gestão do seu responsável idêntica, no essencial, à dos demais directores de museus do IMC (era esse, aliás, o pomo da discórdia entre a directora cessante e a tutela). Imagino que os politólogos estarão maravilhados com o, até aqui insuspeitado, relevo político do cargo de director do Museu Nacional de Arte Antiga e as exigências de estrita confiança política que, Vital dixit, lhe são inerentes... mas adiante.

Dando de barato que, no plano jurídico, a demissão da dirigente não é questionável (estaria, até, em regime de gestão corrente, por efeito do PRACE), não está em causa saber se a Ministra podia demitir a directora do MNAA. O que está em causa, é saber se devia fazê-lo e qual a real leitura política de tal decisão, no caso concreto.

Não se vê que o Governo possa argumentar que, caso não demitisse a Directora do MNAA, deixaria de ser capaz de “levar a cabo as suas políticas” para a área dos museus ou, em particular, para o MNAA.

Do que veio a público, parece adquirido que a directora do MNAA nunca se furtou a executar, com diligência e profissionalismo, a política definida pela tutela e que, não obstante ter entendido dever criticar o modelo de gestão superiormente perfilhado, no âmbito da preparação de uma reestruturação, revelou, mesmo no enquadramento de que discordava, um desempenho excelente e invejável, que até o PR enalteceu.

Assim, a leitura política possível é – uma vez mais – a de que o Governo cultiva o seguidismo na administração pública e trata as críticas como delito de opinião. Prefere a fidelidade acrítica à competência - e não tolera a irreverência.

Ao que tudo indica, a directora do MNAA não foi demitida por incompetência, por não atingir resultados ou por não dar garantias de cumprimento da política do Governo. Foi demitida por ter ousado quebrar a tal lei do silêncio, por discordar (com razão ou sem ela), por não ser um instrumento atento, venerador e obrigado, por não ser muda, afinal.

Bem pode Vital Moreira continuar a singrar placidamente as águas virtuais do politicamente correcto, seguro da distinção teórica de que, apesar de tudo, esta exigência de fidelidade política absoluta, em pensamentos, palavras, actos e omissões, a existir, só se aplicará – por excepção – aos "cargos públicos de livre nomeação".

Os funcionários de carreira da administração pública, que vivem no mundo real, não se enganam na leitura dos reiterados sinais políticos que o Governo está a dar. Em tempos de PRACE, de novas regras de avaliação, de quadros de disponíveis e afins, sabem bem com o que podem contar, na prática, se divergirem do pensamento único. Como Sophia, não ignoram “...as outras maneiras que sabemos, tão sábias tão subtis e tão peritas, que nem podem sequer ser bem descritas”.

A continuarmos nesta senda, os ilustres constitucionalistas da nossa praça ainda vão ser forçados cunhar um novo (velho) conceito: a liberdade de expressão ... a que temos direito.

Publicado por Gomez 21:51:00  

2 Comments:

  1. Adjectivos said...
    Este bonito arrazoado aplica-se só ao sector público ou também ao privado? É que não vejo toda essa preocupação em relação ao que se passa no BCP...
    contra-baixo said...
    De facto o doutor Vital Moreira parte do pressuposto (verdadeiro) da livre exonerabilidade pelo governo, sempre que esteja em causa o desempenho de altos cargos na AP, para concluir pela insidicância de actos praticados pelo mesmo governo quanto está em causa matéria política. Ou seja não se pode contestar a medida política de fundo (substituição da directora geral) tão-somente porque a lei confere ao governo a possibilidade de praticar a medida. É um argumento que revela o entendimento que a liberdade de expressão só deve ou pode ser legitimamente exercida... quando a lei permite (a tal a que temos direito).

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