Jornalismo de valor diminuto

Os factos, aparentemente, serão simples. A jornalista Tânia Laranjo, já por diversas vezes aqui citada e que passou do Jornal de Notícias para o Público e deste para o Correio da Manhã, a saltar poças de notícias judiciárias, contou no passado dia 4 do mês que corre, a história pungente de uma idosa que …bem, deixem contar a Tânia que escreve melhor que isto:
Maria (nome fictício) tem 70 anos e actualmente está bastante debilitada fisicamente. O processo onde responde devia ter começado anteontem e remonta a Outubro de 2005, quando a septuagenária, depois de mais uma consulta no Instituto Português de Oncologia, foi apanhada pelo segurança do supermercado Lidl. Maria levava escondido debaixo da roupa que vestia um simples creme de beleza. Custava 3,99 euros, mas como Maria não tinha dinheiro o funcionário obrigou-a a devolvê-lo ao estabelecimento.Maria assim o fez e em Janeiro deste ano, mais de 14 meses depois do furto, recebeu a acusação do Ministério Público do Porto. Responde então pelo crime de furto simples. Neste processo, o Lidl também não pede nenhuma indemnização, mas Maria poderá vir a ser obrigada a entregar ao supermercado o valor do produto que tentou roubar.

Nesta pequena prosa da jornalista, agora do Correio da Manhã, esconde-se uma floresta de enganos e perde-se a oportunidade de discussão do essencial de um sistema, em detrimento da acessoriedade das suas eventuais perversões.

O que está em causa, neste caso que nem é singular mas representa a pequena criminalidade, bagatelar e corrente, é o modo como o sistema jurídico penal existente em Portugal, encara o problema dos pequenos furtos massificados pelo consumo em série e de coisas com valor reduzido. Mas nem é esse o ângulo de observação jornalística do facto relatado...

Como é que o sistema penal substantivo, de 1982 e o processualmente adjectivo de 1987, sucessivamente revistos e reformados, lidaram com esta questão dos furtos em supermercados? Está tudo na lei e na jurisprudência publicada e de acesso rápido, por consulta em linha…

Quem chegar a um supermercado tipo Lidl, - seja quem for, mesmo velhinha e doente-, deve respeitar os bens alheios e se lhe apetecer algo como um creme de beleza, deve pagá-lo na caixa e não surripiá-lo, pensando que escapa. É essa a regra de conduta geral que todos conhecem e é por isso que a sua violação é uma infracção criminal e não uma simples contra-ordenação social. Sendo crime, mesmo em forma de bagatela, implica logo o funcionamento da máquina policial e judicial, de acordo com os princípios legais. Não há em Portugal o princípio da oportunidade, pelo que, em princípio, um crime de valor elevado é investigado como um crime de valor diminuto.
A partir do momento em que a velhinha passa a caixa ou é detectada com o objecto em seu poder com suficiente grau de certeza que não o pretende pagar e sim surripiar, tendo-o já feito coisa sua, comete um crime de furto que já está consumado. Para definir este conceito de consumação, diferenciando-o da mera tentativa, já foi preciso escrever livros, prolatar sentenças e participar em conferências que a jornalista provavelmente nunca leu ou viu anunciadas.

No entanto, a participação criminal desta pequena criminalidade, nos supermercados, é assunto banal, corrente, habitual e nem é notícia, a não ser para o escutismo jornalístico de uma Tânia Laranjo em busca de assunto para descredibilizar algo que não conhece, nem aparenta querer conhecer.
Uma vez na polícia, o Inquérito é comunicado de imediato ao MP das pequenas causas criminais e a instrução pode ser rápida, passando pela avaliação do objecto, a audição de testemunhas dos factos e o interrogatório da autora do facto. Havendo prova indiciária suficiente, o MP tem que acusar ou optar por outra solução processual que não passe pelo arquivamento, com base no critério do valor diminuto.
Perante o valor do objecto, que nem chega aos 5 euros, subsiste um inquestionável desvalor da acção que a lei configura como crime de furto simples, no artigo 203º do Código Penal e ainda a circunstância de se poder avaliar se o valor em causa será irrelevante para efeitos jurídicos de incriminação como furto. Aparentemente, qualquer pessoa de senso comum mediano, dirá que pôr uma máquina com dezenas de pessoas, incomodar algumas outras, obrigá-las a perder tempo com um bagatela destas, é um contra-senso evidente e é isso que a jornalista pretende demonstrar com sua singular esperteza que ninguém contesta, mas pretende provar demais.

Assim, a questão judicial que serve de fundo à notícia de crítica ao sistema, feita pela jornalista especializada na causa do desprestígio da justiça, é apenas uma, muito simples para quem quiser saber algo mais do que as aparências permitem:
O valor de 3,99 euros, no caso concreto de um crime de furto, merece ser considerado um valor atendível para investigar num processo crime e levar alguém a julgamento num processo que se sabe será fatalmente mais oneroso do que isso?
Para a questão de saber se um crime de furto de um objecto, num supermercado, deixará de o ser se o objecto furtado tiver um valor desprezível, que noção exacta se deve dar a este conceito “desprezível”?
Quem vai definir o limite para o desprezível e o relevante para este efeito, se a lei o não disser e mesmo assim se tiver que respeitar o princípio da legalidade? É este o problema de base que muitos têm enfrentado e resolvem de acordo com métodos que a jornalista indicia como ridículos e pretende denunciar.

Então será altura de perguntar se a esperteza da jornalista descobriu aqui um intransponível muro de estupidez sistémica e endémica, na máquina judicial.
Para tal, no entanto, vai ser preciso mais do que uma simples notícia a apelar ao sentimento de pena para com a velhinha simpática que esconde o creme de beleza porque é pobrezinha está doentinha.
Vai ser preciso questionar a escola de Direito de Coimbra, com os seus lentes exemplares e os seus manuais anotados; vai ser preciso questionar centenas de juízes e magistrados do Ministério Público; questionar métodos já com dezenas de anos; rotinas com outras tantas e ensinamentos de cartilha veiculados em ofícios-circulares e reuniões, conferências e seminários.

A jornalista saberá ponderar e equacionar a questão nestes moldes, ou o direito penal só lhe mete pena?

Claro que neste texto nem sequer levanto a questão singela e prosaica de a jornalista nem ter perguntado qual a razão de um supermercado alemão, não ter desistido de uma questão deste género por causa de um valor tão diminuto...ou nem sequer ter apresentado queixa. Não pergunto, porque estou convencido que isso lhe estragava a história.

Em tempo:
Afinal, no Público de hoje, aparece na penúltima página, um artigo de opinião, assinado por Nuno Pacheco, um director adjunto do jornal, a glosar o mesmo mote: "alguns juízes andam a ser criticados por quererem educar-nos. Não está certo. Deviam louvá-los, já que a instrução básica é uma lástima e, porque ninguém sabe o que é o respeito...", bla bla bla.

Com directores de jornais, deste calibre, estamos entendidos. Quem não consegue perceber o sistema judicial em que se insere e criticar a espuma do que aparece como notícia, falhando a essência do problema, que resta mais ao público leitor?
Passar a ler o Guardian on line? O El Mundo? O La Repubblica? O Liberation ou o Le Monde?
Os jornais perdem leitores? Perdem. Assim, perdem.

Ainda a tempo :

No blog InVerbis, sobre este assunto, transcreve-se uma pequena crónica de Manuel António Pina, no JN, em tudo diversa da do director adjunto do Público. O cronista Manuel A.Pina diverge substancialmente do cronista Nuno Pacheco, porque percebe o cerne da questão.
Então, porque é que Nuno Pacheco não quer perceber?
No mesmo blog, um comentador refere a circunstâncias de ser possível resolver algo, ainda "no domínio das instâncias formais de controlo". E cita em concreto a " suspensão provisória do processo e muito especialmente, o processo sumaríssimo, que são de utilização raríssima nos tribunais portugueses."
Terá razão o comentador/a do InVerbis?
Processo sumaríssimo é apenas um modo de levar a julgamento um facto. Neste caso, a diferença é quase nula. Tudo continua na mesma, com Inquérito, acusação e julgamento em processo para se discutir em sala de audiência, com juiz, advogados e MP.
Não resolve a questão de fundo e no caso nem sei se resolve qualquer questão, porque apenas concede ao MP a possibilidade de fixar uma sanção-se o juiz concordar...
Por isso, não é por aqui que se compõe a resolução deste problema. Aliás...qual era o problema?!

Publicado por josé 10:45:00  

5 Comments:

  1. Unknown said...
    Perdoe o despropósito mas gostava de o "ver" em comentários, dislates e despautérios a esta rubrica, mais tarde Tea,Scones and Books, para toda a gente...

    http://absolutamenteninguem.blog...- junho2007.html

    Até à Proxima
    Carlos Medina Ribeiro said...
    Quando, no passado dia 4, o «Correio da Manhã» meteu essa notícia como sendo a mais importante do dia, resolvi colocá-la em discussão no meu blogue oferecendo um prémio (o livro «Crime Impune», de Simenon) para a resposta mais fundamentada.
    ___________

    Ontem, o «Correio da Manhã» trazia, como notícia principal, que uma senhora idosa estava a contas com a Justiça devido ao furto, praticado num supermercado, de um creme de beleza no valor de €3,99.
    Proponho, pois, que matutemos no seguinte:
    * Aparentemente (?), a senhora não roubou para comer, visto que o objecto do furto foi um creme de beleza.
    * Haverá uma idade acima da qual o estatuto de idoso permita "certas coisas" - para além de descontos nos cinemas, museus e transportes?
    * Haverá algum valor para os furtos - abaixo do qual deixam de ser punidos (ou mesmo censuráveis)?
    * O facto de haver, por esse país fora, crimes económicos (de valores de milhões) que ficam impunes, será motivo para a Justiça não actuar nos menores?
    * O facto de a vítima ser uma superfície comercial é desculpabilizante?
    * Rudolf Giuliani, Major de Nova Iorque, dizia que não se deve descurar o combate à pequena criminalidade - pois o sentimento de impunidade que pode resultar disso é um passo para a maior. Terá razão?

    _

    Bem ou mal, o prémio já foi entregue...
    http://sorumbatico.blogspot.com/2007/05/proposta-de-discusso.html
    Gomez said...
    Nenhuma criminalidade, nem mesmo a mais pequena, deve ser, ou não, reprimida, apenas com base em critérios economicistas. Pôr a questão nesses termos, não passa de demagogia ou sensacionalismo.
    O paradigma axiológico do direito penal mínimo tem de ser conjugado com as exigências de prevenção.
    Não oferecerá dúvidas a ninguém que a pequena criminalidade só se contém se for sancionada de forma rápida e efectiva. Caso contrário dispara, pondo em causa a paz social (quando não evolui para formas de criminalidade mais complexa).
    A esta luz, a atitude do estabelecimento comercial que opta por suportar encargos desproporcionados para perseguir criminalmente os pequenos furtos é perfeitamente compreensível. Limita-se a seguir o que os (verdadeiros) criminalistas recomendam.
    O que não se compreende é que o Estado não se dote de mecanismos adequados a essa realidade específica e que o sistema processual penal trate a pequena criminalidade praticamente da mesma forma que trata crimes mais graves.
    As melhores práticas estrangeiras demonstram à saciedade que é possível criar mecanismos para reprimir a pequena criminalidade em processos expeditos - sem prejuízo das garantias de defesa - e que a inerente elevada probabilidade de sancionamento efectivo, num curtíssimo prazo, tem contribuído para a diminuição drástica da prática desses ilícitos.
    O que nos falta é olhar para essas boas práticas e adaptá-las, a sério, à n/ realidade, esquecendo os Olimpos teóricos de muitos dos n/ processualistas universitários e/ou as tentações "chico-espertas" de iludir a realidade (como a que foi pré-ensaiada e depois abandonada durante a preparação da reforma em curso, no sentido de, em alguns destes casos, se passar a exigir a constituição de assistente e dedução de acusação particular...).
    Em abono da verdade, também é preciso dizer que alguns mecanismos já disponíveis, ainda que de alcance limitado (como a suspensão provisória do processo) não têm sido usados com a frequência que se justificaria, vá-se lá saber porquê...
    Mas, uma coisa me parece certa: este post ajuda a discutir as questões de fundo; o que temos lido nos jornais, não.
    Os blogs são mesmo uma vergonha!
    Carlos Medina Ribeiro said...
    Aqui deixo algumas respostas que recebi no "concurso":

    RESPOSTA-1:

    Desde momento que a senhora foi apanhada, o funcionário do supermercado tinha de fazer qualquer coisa, pois está lá para isso.
    Já vi isso suceder e julgo que, normalmente, a questão se resolve ali mesmo, sem mais questões nem desenvolvimentos (à parte a vergonha, pois há sempre gente a ver). Mas pode não ter sido esse o caso.

    Vamos, então, supor que a queixa teve seguimento.

    Ora, como não há valores "abaixo dos quais o crime de furto não existe", a senhora teria de responder por ele e, de qualquer forma, ressarcir o roubado e/ou pagar uma multa, mesmo simbólica.

    Para essas questões menores é que existem os "Julgados de Paz", como víamos n' «O Juiz decide». Outras vezes (pelo menos noutros países é assim), há juizes de turno, nas esquadras, que em 2 minutos resolvem estes casos de chacha. Mas alguma coisa tem sempre de ser feita. Se não (e por absurdo) podemos admitir que a velhinha todos os dias regressa e rouba outra coisa no mesmo valor.
    Ou, então, o supermercado aproveita a coisa para promoção e mete um letreiro à porta: «GRANDE PROMOÇÃO!! Venha a este supermercado, onde roubos até 3,99€ podem ser praticados por pessoas com mais de 65 anos!!»

    Quantos aos crimes maiores, a resposta é simples: as penas devem também ser maiores.

    *************
    RESPOSTA-2:

    Há algum tempo, a Inspecção Económica apanhou uns taxistas do Aeroporto da Portela a roubar turistas, sob a forma de preços inflaccionados.

    Sem pejo de dar a cara, dizia um deles para as câmaras de TV:

    «Ora, ora...! Que mal é que faz roubar um euro ou dois a um turista?» - é o princípio «Correio da Manhã» segundo o qual "um roubo, se for pequeno, já não é roubo - ou, mesmo que o seja, não faz mal".
    -
    Por mim, só posso dizer que já fui roubado da mesma forma por um taxista de uma cidade europeia, tendo sido informado, por um prestável cidadão indígena, que não valia a pena queixar-me, pois a polícia local não faria nada - é que a sua ideia de "patriotismo" implica proteger os nacionais (mesmo gatunos!) contra estrangeiros (mesmo roubados)!!

    Como resultado, nunca mais me esqueci da cena (que passei a associar sempre a essa cidade, a esse país e a essa patriótica polícia), e conto-a a todos os amigos que lá vão.
    Por mim, nunca mais lá voltei.

    *************
    RESPOSTA-3:

    No seu livro «Sol Nascente», Michael Crichton diz que no Japão a criminalidade é muito baixa (embora as penas não sejam muito pesadas) porque a probabilidade de se ser apanhado, na sequência de um acto ilícito, é de quase 100%.

    Por cá, como a impunidade reina, a opção do legislador é sempre aumentar as penas (o que conta, para efeitos de dissuasão, é a "esperança matemática", o produto da pena pela probabilidade da sua aplicação).

    Depois, e como, mesmo assim, a Justiça não funciona, o legislador desata a despenalizar crimes (como o que recentemente sucedeu com os cheques carecas até 150 €), e as polícias deixam para trás os crimes menores, dando prioridade aos maiores (o que até parece lógico).

    No entanto, a percepção pública da insegurança é motivada pela pequena criminalidade de rua e não pela grande.

    Há que, pois, enfrentar ambas, com meios e penas diferentes, evidentemente, mas nunca deixando alastrar, na sociedade, a ideia de que os crimes pequenos não importam.

    Se foi essa a mensagem populista que o «CORREIO DA MANHû quis fazer passar, prestou um péssimo serviço à comunidade.

    *************
    RESPOSTA-4:

    Em casos "pequenos", a censura social pode ser muito eficaz.
    Imagine-se que o «Correio da Manhã» (ou o «24 Horas») trazia, ao outro dia, a seguinte notícia:

    «A senhora fulana (*), que ontem foi notícia por (...), foi mandada em paz, tendo apenas sido admoestada e obrigada a pagar os 3,99€ do roubo que cometeu ou, em alternativa, a devolver o artigo em causa»

    (*) Com o nome escarrapachado, como fazem sempre esses conceituados jornais...
    MARIA said...
    Prezados Senhores,

    Com muito respeito, há que compreender que o cidadão comum não faça destas realidades a mesma leitura que um jurista que además tem ainda que aplicar o direito instituído.
    Alguém se recorda de , criança, olhar embevecida para um brinquedo numa montra ou para um doce que no momento não podia comprar ?
    Assim também olha para um creme de beleza essa velhinha que aos 70 anos se trata no IPO, por já nem mesmo a 3,99€. a poder alcançar...
    Não deveria o direito ser feito mais à medida da dimensão e condição humana ?
    Tema para pensar, não ?
    A verdade é que pessoalmente me irrita bem menos que a incapacidade de alguns para respeitar o alheio, que os Tribunais sejam inundados pelas queixas das grandes superfícies comerciais porque o Nicola se "abarbatou" a um pão e umas fatias de fiambre no valor de 1,99€, ou o Zé Brasileiro, ilegal em Braga, fez os pés a uns sapatitos que ainda assim não podia comprar porque custavam 4,99€...
    É claro que além de nunca se desistir de tais queixas, ainda se deduz pedido cível pela imobilização do caixa e o serviço do segurança que arrecadou o fiambre.
    Sabem que mais, eu pago o creme à senhora. Com muito gosto. Espero que a faça sentir linda !
    Enfim...
    Sensibilidades femininas...

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