Já não há heróis.


No dia 29 de Dezembro de 2006, na madrugada que durou mais de três horas, até às 10 da manhã, seis pescadores de Vila do Conde, a seguir ao naufrágio do barco em que pescavam, perderam a vida a escassas dezenas de metros da praia da Légua, perto de Nazaré e na comarca de Alcobaça. A demora no socorro, foi-lhes fatal. O sobrevivente disse agora( ao Expresso ) que se salvou devido ao facto de estar “mais habituado que eles à agua gelada” e que os outros “foram perdendo as forças”.

Nestes dias que entretanto passaram, os media, com destaque para os jornais, foram dando notícias e publicando opiniões que não se poupam à sindicância das responsabilidades das diversas entidades, incluindo as dos próprios pescadores perecidos. Estes, são responsabilizados por não terem bóias e coletes, por não terem bote, por pescarem ilegalmente perto da praia e, -obviamente-, por isso tudo fazer muito jeito a quem pretende de algum modo desresponsabilizar as más consciências da res publica…

Para além dos jornais, rádios e tv´s, existe agora, porém outro meio: os blogs. Alguns blogs, entenda-se.
No entanto, todo este assunto se evidencia cada vez mais como o exemplo do grande falhanço dos mentores dos nossos Praces, Simplex, autores e executantes dos demais estudos, pareceres e processos de modernização administrativa.
Tal como no caso dos incêndios sazonais, esta tragédia e outras recentes, como a de Entre-os-Rios, para não ir mais longe no tempo, mostram a indigência das soluções encontradas por quem de direito, para engendrar estruturas e esquemas de funcionamento simplificado, eficaz e adequado à nossa protecção colectiva.
Torna-se patético ver, ler e ouvir declarações e relatórios de inquérito de quem tem a estrita obrigação legal e institucional de zelar pelo bem estar colectivo- e disso fazem a sua vida profissional- a desviar, despudoradamente, culpas e responsabilidades.

Não obstante, por muito que isso custe a admitir, ironicamente, até poderão ter alguma razão...

Há alguns décadas atrás, ninguém se lembraria de responsabilizar governantes pela ocorrência de incêndios ou tragédias de naufrágios. A culpa era sempre do destino, do tempo, do mar-cão, do nosso fado centenário e assim ficava distribuída a pena colectiva.
Actualmente, com o Estado social e o devir dos tempos modernos, comparados com os de outros países civilizados, organizaram-se esquemas e tramas legislativas que implicam profissionais da segurança colectiva e que serviram para nos iludir quanto à nossa real capacidade organizativa.

Há umas décadas, os bombeiros voluntários de cada cidade, chamados do seu trabalho habitual, pela sirene que se fazia ouvir em toda a urbe, faziam gala em chegar primeiro ao local dos incêndios que os bombeiros municipais, sempre de serviço, numa antevisão ainda ténue, dos problemas gerados naturalmente pela burocracia e as responsabilidades escritas em papéis.
Este aparente paradoxo permanece actualíssimo e a burocracia foi apontado pelo semanário Sol, como a responsável directa pela morte dos seis pescadores.
O exemplo encontrado para sustentar o argumento, encontrou-se no facto de haver motas de água, nos bombeiros da Nazaré, potencialmente salvadoras, não tendo as mesmas sido utilizadas, porque um bombeiro de serviço( certamente cumprindo regras escritas) entendeu que os bombeiros não foram chamados pela entidade oficial que se ocupa de naufrágios…

Outra perplexidade digna de simplex, encontra-se no facto de terem sido “populares” residentes próximos do local, a alertar as “autoridades” para o sítio exacto onde se encontrava o barco, através de telefonemas e mais telefonemas, para o INEM, para os Bombeiros de várias localidades e até para a capitania do porto da Nazaré.
É provável que todas estas entidades tenham ou arranjem desculpas aceitáveis para as omissões e intervenções intempestivas, na origem desta tragédia.
É provável que o inquérito criminal, daqui a uns meses, chegue à conclusão habitual: arquivamento por ausência de indícios suficientes de prática de crime de homicídio negligente. Tudo fundamentado com os relatórios da praxe e as perícias do costume.
Porém, quanto a mim, resta uma grande, enorme, avassaladora evidência: a morte destas seis pessoas, com família e filhos menores, deveu-se não apenas à incúria individual ou colectiva das entidades responsáveis, em culpas concorrente; deve-se ainda, principalmente, à manifesta incapacidade de quem organiza a nossa vida colectiva, em prover legislação, métodos e meios necessários, suficientes e adequados, com chefias e comandos experimentados e competentes
Desde há uns anos a esta parte que o problema da organização das cadeias de comandos e da interligação entre as várias entidades responsáveis pela prevenção ou combate a calamidades ou tragédias, é o cerne desta questão.
Desde o momento em que se delinearam modelos e esquemas profissionalizados de organização de meios de socorro, o paradigma até então existente, modificou-se.
Gradualmente, as pessoas que contavam, em primeiro lugar, consigo mesmas e com os seus meios próprios, passaram a acreditar num Estado protector, capaz, eficiente e organizado e que supriria as incapacidades e ineficiências que eram a regra comum.
A modernização administrativa tem vinte anos, se tanto. A modernização das mentalidades, demora mais um pouco e em certos casos, a ancestralidade atávica, nunca deixará de se fazer sentir. É mais fácil modernizar equipamentos do que mentalidades e estas são quem mais conta, neste jogo
O INEM, um serviço do Estado, dependente do Ministério da Saúde, destina-se a socorrer pessoas, em situação de emergência.
A sua recente regulamentação e a dos meios de transporte e locais de referência, são uma trama de leis, regulamentos e interditos que implicam uma formação adequada dos seus funcionários. Tê-la-ão, ao ponto de poderem nessas situações, impedirem acontecimentos funestos que constituem a razão da existência do serviço? Ou a organização e métodos foi delineada sem atender a válvulas de segurança, sempre necessárias para um bom funcionamento de um sistema? Será que o respeito de regras escritas que deixam morrer pessoas, é aceitável ou é apresentado como o perfeito absurdo que de facto, representa? Que formação têm os elementos activos do INEM?.
Por outro lado, quem responde pelas falhas de funcionamento do INEM, no que se refere à adequação dos seus regulamentos às circunstâncias da vida real, fora dos gabinetes legislativos?
Ninguém responderá, certamente. Os governantes entram e saiem e as leis ficam, mesmo as que conduzem directamente a absurdos e atentados ao senso comum.

O Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil, tem poucos anos de experiência, enquanto estrutura organizada e integradora . Porém, acumula já muitas críticas públicas: Tem mesmo uma lei, de 2003, que reconhece no seu próprio preâmbulo o problema da articulação como um dos mais graves e que justificou a alteração de orgânicas e organismos, por “impedir ou dificultar o melhor aproveitamento dos recursos humanos e materiais”.

Só estas duas entidades, no decurso dos inquéritos em marcha para apuramento de responsabilidades, terão quase tudo a dizer acerca do que correu mal, na tragédia da praia da Légua.
Mas ainda nem ficamos pelas duas. Temos a acrescentar, a Marinha. A Marinha Portuguesa que constituiu justamente um dos motivos de orgulho de sermos portugueses e que conservava na altura da tragédia de Entre-os- Rios, comandantes que pareciam mostrar que sabiam o que se devia fazer e ainda por cima sabiam comunicar, desta vez ficou mal. Muito mal.
Terão, provavelmente e como de costume, muitas razões justificativas para o atraso fatal na “articulação” com a Força Aérea. Por sua vez, este ramo das nossas Forças Armadas terá outras tantas razões, como sejam, por exemplo, a de os meios aéreos serem de uso muito dispendioso e lento ( os helis, segundo parece, demoram muito tempo a aquecer os motores …).
Uma coisa parece certa: ainda não atingimos a maturidade cívica, organizacional e política, para deixarmos de depender de heróis por conta própria e podermos confiar em quem nos orienta os destinos colectivos. Como se demonstra mais uma vez, a competência, o verdadeiro profissionalismo e a excelência, nestas matérias, ainda não moram cá. Precisamos sempre de pareceres e estudos para entender realidades paradoxalmente já muito estudadas e que deviam estar sabidas. Nós , ou seja, quem nos governa, é que ainda andamos a descobrir a pólvora, com nomes pomposos como PRACE ou mais simplórios como SIMPLEX, entregues ao cuidado de diletantes que apenas nos mostram a sua arrogância inconsistente.
Somos ainda uns simples, de facto, porque continuamos a acreditar e a votar, por veze maciçamente, nestes autênticos aprendizes de feiticeiro que querem substituir o voluntarismo dos antigos heróis, que com poucos meios faziam milagres, pela tecnocracia, aprendida à pressa e que nos conduzem a desastres frequentes, em todas as estações do ano.
O da praia da Légua é apenas o último. Outros virão.

Imagem: Expresso de 6.1.2007

Publicado por josé 18:04:00  

1 Comment:

  1. António Balbino Caldeira said...
    E a vergonha, caro José, em último grau, deslizar para nós que consentimos a negligência e irresponsabilidade.

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