Hoje há conquilhas
domingo, dezembro 03, 2006
No final do mês passado, foi reeditado um dos grandes trabalhos musicais da música portuguesa de expressão quase erudita ( mpeqe).
Em tempos tinha já referido essa obra ímpar da mpeqe, que se chama Hoje há conquilhas, amanhã não sabemos, editada em finais de 1977, pelo grupo Banda do Casaco. Por causa disso, uma alma caridosa, deu-me a conhecer uma cópia do disco perdido.
A apreciação crítica do disco, na altura, ficou-se pela pequena croniqueta assinada por Manuel Cadafaz de Matos, na revista Música & Som , de 1 de Fevereiro de 1978. Crítica, aliás, em moldes culturais que hoje, pura e simplesmente, desapareceram da nossa imprensa. O que temos e lemos hoje, são meras recensões de discos, sem gosto pessoal exposto e sem qualidade suficiente para despertar a leitura dos sons que dantes superava por vezes, a própria música criticada.A actual e recentíssima reedição do disco, em cd, nem foi mencionada nos jornais de “referência”. Ironicamente, dei por ela, ao ler um catálogo da FNAC, vindo em apêndice aos jornais de fim-de-semana. A partir daí, a referência à reedição é visível na Rede. Felizmente, temos a Rede e os blogs! Os actuais escribas que recenseiam música editada nos jornais, não deram conta. Deram conta de Dulce Pontes e…Julie London!
No entanto, a obra musical da Banda do Casaco, em cinco discos fundamentais e de que ainda falta a edição em cd, de Contos da Barbearia, de 1978, é um marco na música portuguesa, mpeqe ou não.
A grande inovação da banda de Nuno Rodrigues e António Pinho, a que se juntaram outros músicos em estúdio, reside numa singela combinação de sonoridades da música tradicional popular, antiga e de raízes seculares, com os sons novos e velhos inventados pela dupla, nos instrumentos de sempre. Flautas e violinos, cruzam arcos de sons sustenidos, com violoncelos e adufes bemóis, misturando guitarras aumentadas com saxofones diminuidos, pífaros, cítaras e xilofones. As vozes, em capella ou a solo, agasalham a música de Nuno Rodrigues, nos textos em tom maior, de António Pinho, nunca mais seguidos ou sequer imitados, na música portuguesa.
Em 30 de Junho de 1993, por iniciativa de António Magalhães, no Público, a banda aceitou tirar o casaco e falar sobre a música que vestiram de roupagens e adereços de luxo. Nessa altura, Nuno Rodrigues disse que “a maior parte do que fizémos há 20 anos continua totalmente actual, precisamente por causa dessa ausência de seguidores. Houve críticos que disseram que nós éramos uma escola mas nunca se falou no nome dos alunos. Ficamos sem saber se alguém aprendeu alguma coisa” (…) Na altura as pessoas pensavam que éramos comunistas. Hoje, o grave na nossa sociedade é que as pessoas não se chocam- e porquê? Porque estáo demasiado evoluídas ao ponto de náo se chocarem? Ou porque não têm bases nenhumas para se chocarem? Penso que seja isto, que as pessoas têm hoje menos bases. Uma das minhas filhas tem 13 anos. Não posso ligar a televisão, não por causa dos filmes pornográficos mas por causa dos atrasados mentais que lá aparecem. Por exemplo, uma imagem da Assembleia da República : o que é que vou eu dizer? Meu filho, tenta estudar para te tornares um burgesso como aquele deputado, que está ali apenas por se ter inscrito na merda de um partido qualquer. Neste momento, vamos bater em quê? Não vale a pena andar aos tiros à direita e à esquerda, isto é anarquicamente.”
Estas declarações são de 1993. Pasaram mais de treze anos e que poderemos acrescentar? Apenas isto, talvez: conseguimos piorar…e não há qualquer perspectiva animadora de melhoria à vista.
O cd que agora reedita Hoje há conquilhas amanhã não sabemos, provém de “recuperação do vinil e masterização de José Fortes” ( humm…), efectuada neste ano da graça de 2006. Segundo indicações da contra-capa do cd ( em elegante formato digipack, embora desmaiado na cor, em relação ao original), a reedição fica mais a dever-se a Nuno Rodrigues do que a António Avelar Pinho. Este limita-se a dar o seu imprimatur, agradecendo o esforço…
De resto, as referências ao desaparecimento do original do disco, deixa a desejar uma cabal explicação dos autores: não havendo original, a cópia fez-se a partir de um disco de vinil existente. Gostaria de ter lido referências técnicas ao processo, como se faz lá fora, até porque o som audível é bem aceitável ( longe do mp3...). Ficamos à espera de José Fortes…Fotos: Público de 30.6.1993.
Música & Som de 1.2.1978
Reprodução da foto original do LP ( a do cd é menos viva)
Aditamento em 5.12.2006:
Por indicação preciosa de um leitor andarilho, fui ter a um sítio da rádio portuguesa Antena 1, onde pude escutar agora mesmo, cerca de 56 minutos do programa Vozes da Lusofonia, animado por Edgar Canelas. No programa de 3.12.2006, da parte da manhã, pode ouvir-se Nuno Rodrigues e António Pinho a falar sobre o disco das Conquilhas.
Pode ouvir-se António Pinho a dizer que o título do disco saiu da inspiração de uma frase lida numa tasca. Aliás, a propósito disso, António Pinho chama a atenção para os títulos das canções dos discos da Banda do Casaco, que foram sempre muito felizes. Concordo e acrescento: não são apenas os títulos, mas todas as letras. Algumas do primeiro disco, de 1974 ( Dos benefícios de um vendido...) , merecem a leitura, só por si e pelas aliterações, imagens e figuras de estilo esparsas e de referência.
António Pinho salienta ainda a noção que tem do seu trabalho, ao dizer que se fosse hoje, repetiria os temas e as formas, talvez até com mais alguma agressividade.
No campo musical, considera-se, tal como Nuno Rodrigues, um medíocre, o que não deixa de ser curioso para quem explorou como poucos as sonoridades ímpares que tornam a música da Banda do Casaco, inclassificável e actualíssima.
Uma das explicações adiantadas é no sentido de a nossa música popular ser relativamente pobre e sem influências marcantes de outras culturas, como a brasileira o é. Mesmo assim, interessaram-se pelas sonoridades recolhidas e gravadas por Lopes Graça e Michel Giacometti, acrescentado o som original que veio das ideias musicais de ambos, arranjado por todos os que tocaram no grupo.
Falaram sobre os aspectos técnicos do disco Hoje há conquilhas, para salientar o extraordinário trabalho do técnico de som, José Fortes, explicando o que se deixou apenas mencionado: o som do cd agora editado, foi recuperado de alguns LP´s. Repicado e misturado por José Fortes, num trabalho notável de aproximação ao som da gravação original e até melhorado em parte, por via da deficiente prensagem dos LP´s existentes, a qual permite uma melhor recuperação da memória sonora original.
Finalmente, uma revelação: Nuno Rodrigues e António Pinho têm mais sons na gaveta, guardados do tempo dos LP´s da Banda do Casaco!
Então, de que estão à espera? Que se percam para sempre, como o master original do LP?
Por mim, não posso esperar. E espero que José Fortes seja entrevistado ou escreva o que entender sobre o magnífico trabalho que efectuou. Onde é que poderemos ouvi-lo ou lê-lo?
Por mim, era mesmo aqui.
Publicado por josé 17:14:00
";O)
Não fazia ideia que estava à venda. Só tenho a versão em mp3
"Não há cu que não dê traque ..."
o "Não há cu que não dê traque..." é do "Natação Obrigatória" ("Mal a gente vem ao mundo, logo a gente vai ao fundo", numa grande antecipação aos B52's :), no "Jardim da Celeste", excelente edição de 1980.
Acabei agora mesmo de ouvir a entrevista e vou passar a escrito em aditamento o que me ocorrer.